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      Há 25 anos, Schumacher começou a escrever sua fantástica história na F1

      No dia 23 de agosto de 1991, no Circuito Spa-Francorchamps, a F1 viria a conhecer o alemão, que entraria para a história como o maior campeão de todos os tempos

      Por Nice, França

      header livio oricchio (Foto: Editoria de Arte)
      Michael Schumacher na Jordan (Foto: Divulgação)Michael Schumacher na Jordan (Foto: Divulgação)

      Foi no dia 23 de agosto de 1991, portanto há exatos 25 anos, no Circuito Spa-Francorchamps, que a F1 viria a conhecer o piloto que entraria para a história como o maior campeão de todos os tempos, ao menos nas estatísticas, Michael Schumacher. O GloboEsporte.com narra, agora, com entrevistas exclusivas, os detalhes da estreia na F1 desse alemão tão notável quanto controverso, hoje, aos 47 anos, limitado a contemplar a vida na sua residência, na Suíça, em decorrência das lesões neurológicas sofridas em um acidente enquanto esquiava, em dezembro de 2013.

      Provavelmente Schumacher será lembrado também no fim de semana durante o GP da Bélgica, 13ª etapa do campeonato, na volta da F1 às atividades, depois das férias de agosto. Além de ter sido lá que iniciou a trajetória de grande sucesso na categoria automobilística, Schumacher nunca escondeu sua profunda empatia com o traçado de Spa-Francorchamps, a uma hora da sua casa, em Kerpen, na Alemanha, onde venceu nada menos de seis vezes.

      Na primeira reportagem, os envolvidos diretamente na primeira aproximação de Schumacher com a F1 contam como tudo aconteceu. São passagens ricas, curiosas, intrigantes. Não escondem a surpresa com a súbita competência demonstrada por aquele jovem até então desconhecido no paddock. Irá ao ar, ainda hoje, o capítulo seguinte da história, o incrível jogo de interesses que levou Schumacher trocar a modesta equipe Jordan, a de estreia, pela Benetton, bem mais bem estruturada, já na prova seguinte, em Monza.

      Nesta quarta-feira, o GloboEsporte apresenta uma entrevista com Bertrand Gachot, o piloto que, por ter sido sentenciado a dois anos de prisão, permitiu à Mercedes pagar 150 mil libras a Eddie Jordan para aceitar Schumacher como seu substituto, ao menos em Spa-Francorchamps.

      + CAPÍTULO 1: Há 25 anos, Schumacher começou a escrever sua fantástica história na F1
      + CAPÍTULO 2: Depois de treinos em Spa, houve caça a Schumi. E usaram todas as armas
      + CAPÍTULO 3: Inesperada prisão de Gachot abriu as portas da F1 para Schumacher

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      primeiro capítulo

      O telefone tocou no fim daquela tarde de 14 de agosto de 1991, quarta-feira, na sala de Eddie Jordan, definida por uma simples divisória na modesta sede da equipe Jordan, em frente ao autódromo de Silverstone, na Inglaterra. O irlandês levou um choque: “Fui informado pelo advogado de nosso piloto (Bertrand Gachot) que ele havia sido preso. Não sabia o que pensar na hora”.

      O francês reagiu ao ser puxado pela gravata para fora do carro em que estava, com a namorada, em Londres, e lançou um jato de gás CS na face do motorista de táxi, pronto para lhe desferir um soco. Eddie agradeceu o advogado e começou a pensar o que faria para ter um piloto já na semana seguinte, a fim de disputar o GP da Bélgica, numa dos circuitos mais exigentes do calendário, Spa-Francorchamps.

      Michael Schumacher em 1991 (Foto: Divulgação)Michael Schumacher em 1991, na Jordan (Foto: Divulgação)

      Em conversa com o GloboEsporte.com, o ex-jornalista Ian Phillips, no seu primeiro GP como chefe da Jordan naquele evento, contou: “Eddie me pediu para procurar Keke Rosberg e lhe convidar para disputar a prova de Spa com o carro de Bertrand. Ele me deu como opção também, se Keke não concordasse, Derek Warwick e Stefan Johansson”. O finlandês havia sido campeão do mundo em 1982, com a Williams, e abandonara a F1 no fim de 1985, depois de um ano na McLaren.

      Jordan falou ao hoje repórter do GloboEsporte.com: “O nome de Michael Schumacher nem me veio à mente. Ele não disputava a F-3000, mas o Mundial de Esporte-Protótipos, não era um piloto em vias de estrear na F1. Eu sabia quem era porque, no ano anterior, venceu o GP de Macau de F3. Mais nada”.

      A notícia de que havia um carro da Jordan disponível correu solta no meio do automobilismo. Tinha concepção avançada. Schumacher fazia parte do time de jovens pilotos da Mercedes que disputava o Grupo C do Mundial de Esporte-Protótipos, junto de Karl Wendlinger e Heinz-Harald Frentzen, o dos carros mais potentes e rápidos, com seus 800 cavalos.

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      CAIU COMO UMA LUVA

      “No domingo, Eddie me ligou para dizer que havia sido procurado pelo pessoal da Mercedes, o diretor de competições, Jochen Neerpasch, e chegara a um acordo com um dos seus pilotos para correr na Bélgica conosco. Quando Eddie me falou o quanto eles pagariam eu levei um susto, 150 mil libras. Era tudo o que precisávamos. O time não tinha dinheiro para nada. Eu me hospedei em Spa num chalé do camping, minúsculo, dividia com Eddie. Lembro do preço até hoje, 5 libras por noite”, diz Phillips.

      Eddie acrescenta: “Houve uma corrida em que compartilhamos a mesma cama. Que loucura”. Aquela era a temporada de estreia da Jordan na F1. O diretor técnico, o também irlandês Gary Anderson, falou com o GloboEsporte.com. “Nosso orçamento não daria para ir até o fim do campeonato. Tínhamos de encontrar alguma fonte nova de receita.” O dinheiro que a Mercedes pagaria representava “uma dádiva”, segundo o técnico que assinara o primeiro carro da sua carreira, o Jordan J191-Ford, de aerodinâmica refinada.

      “Fomos informados por Eddie que o tal piloto alemão estaria na nossa fábrica na segunda-feira de manhã, junto do seu empresário, Willi Weber, para quem Schumacher competiu e foi campeão na F3 alemã no ano anterior”, lembra Anderson. “Era natural que eu perguntasse a Eddie se Schumacher conhecia a pista, pois poderia ser até perigoso.”

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      especialista em spa

      Na conversa com o GloboEsporte.com, Eddie explica o que ouviu de Weber a respeito de Schumacher ter experiência nos 6.940 metros do veloz e desafiador traçado de Spa: “Quando Willi me procurou oferecendo Michael, dentre as coisas que perguntei era se ele já havia estado em Spa. E ele me disse 'muitas vezes'. Eu, claro, acreditei”.

      Em bate papo informal com o repórter do GloboEsporte.com, Weber contou há alguns anos: “Eu não menti para o Eddie. Ele me perguntou se Michael havia estado em Spa. Eu respondi 'sim'. E era verdade. O circuito se localiza perto da cidade de Michael, onde ele cresceu, Kerpen. São 100 quilômetros, apenas. Se ele tivesse me perguntado se Michael já havia pilotado em Spa, a resposta seria não. Michael, como disse a Eddie, de fato conhecia a pista, mas de bicicleta”.

      Michael Schumacher com a Ferrari em Spa-Francorchamps, em 1992 (Foto: Getty Images)Michael Schumacher com a Ferrari em Spa-Francorchamps, em 1992 (Foto: Getty Images)

      Na segunda-feira de manhã todos se apresentaram na sede da Jordan. Anderson conta: “Estávamos tirando o molde para fazer o banco e enquanto Schumacher se ajeitava no cockpit perguntei sobre sua experiência em Spa, pois para mim, correndo no Mundial de Esporte-Protótipos, deveria conhecer bem a pista. Michael olhou para mim e falou 'nunca pilotei em Spa'. Disse a mim mesmo 'meu Deus'.

      Como Schumacher sequer sentara num carro de F1 até então, Anderson se mobilizou para que realizasse um teste em Silverstone, antes da estreia na F1 e em Spa. “Conseguimos um espaço na terça-feira, mas no traçado menor, não o de GP, de 3.150 metros. Já era alguma coisa”, lembra Phillips. “O chefe do grupo de pista, Trevor Foster, e Gary orientaram Schumacher sobre como o carro se comportaria, como os freios eram eficientes, enfim, antecipar o que enfrentaria na pista, uma realidade nova para ele.”

      Para aquela versão do circuito, o melhor tempo da Jordan era de 60 segundos, obtido pelo outro piloto da escuderia, o italiano Andrea De Cesaris, tido como rápido no meio. “Eu regressei para a nossa sede (possível de ir a pé) e numa das paradas do treino Trevor me ligou para dizer: 'Ian, esse cara é muito rápido. Depois de cinco voltas, apenas, parecia dominar o carro como quem disputava a temporada.”

      Trevor fez um pedido a Phillips: “Para eu ligar para o Eddie e dizer assim mesmo: 'Você conseguiu uma estrela'. Assim que dei a notícia ao Eddie ele me falou para dizer ao Michael que a vaga era dele”.

      Anderson acompanhou o teste de perto. “O que mais me impressionou foi sua forma de pilotar. Schumacher era muito veloz, mas não sobrecarregava o carro, não o expunha a esforços desnecessários.” De Cesaris tinha essa fama. Um piloto capaz de tirar velocidade do monoposto, mas ao mesmo tempo não ter nenhuma preocupação com poupar o câmbio, motor, a embreagem e os freios, notadamente.

      “Sempre gostei de trabalhar com pilotos jovens, eles buscam mais os limites do carro, da pista. Schumacher de novo comprovou o que espero deles”, comentou Anderson. Em 1988, o irlandês havia sido o engenheiro de pista do jovem Roberto Pupo Moreno na F3000 e foram campeões. Foi Anderson também que depois do primeiro teste de Rubens Barrichello, de 21 anos, com a Jordan-Yamanha, em dezembro de 1992, em Silverstone, deu o voto “muito favorável” a sua contratação para 1993.

      “Schumacher chegou rápido no limite e registrou o nosso melhor tempo naquele traçado, tudo muito impressionante.” O alemão obteve 59 segundos cravados, quase um segundo mais rápido que a volta mais veloz do J191.

      Depois do teste mais que promissor de Schumacher, os profissionais da Jordan foram para Spa bastante animados. “Sabíamos que seríamos velozes lá, o J191 era equilibrado em curvas rápidas e naquela pista há muitas”, falou Anderson, que junto com Foster realizou o trabalho de engenheiro de Schumacher no seu GP de estreia.

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      arrasou o companheiro

      Em 1991, havia uma classificação na sexta-feira e outra no sábado. Valia o melhor tempo em uma ou outra. No fim das contas, Schumacher obteve o sétimo tempo, excepcional para quem nunca havia pilotado um F1 num fim de semana de competição e desconhecia os muitos segredos de Spa. Para se ter uma ideia, De Cesaris estabeleceu o 11º tempo, nada menos de 774 milésimos mais lento que o alemão.

      “Andrea veio falar comigo. Estava arrasado”, disse Phillips. “Andrea me perguntou 'como esse cara pode ter sido tão mais rápido que eu?' Na reunião com os engenheiros, Foster mostrou a Andrea os locais onde Schumacher ganhava tempo. Recordo que na Blanchimont (a curva mais rápida, longa, à esquerda, no fim de um trecho em descida), Foster disse a Andrea que ele não fazia de pé em baixo enquanto Schumacher, sim.”

      O que Schumacher nunca soube, ou melhor apenas anos mais tarde veio a saber, é que correu sério risco de não disputar a corrida, domingo, apesar do brilhante trabalho de estreia no sábado. Phillips conta o que se passou: “Philippe Adams, um piloto belga, ganhou um recurso na justiça, lá em Spa. Os oficiais vieram até os nossos boxes, depois da classificação, e isolaram os carros. Não podíamos sequer nos aproximar”. Eddie era dono da equipe de F3000 até 1990 e Adams assinou contrato para correr no seu time. Mas depois decidiu competir por outro e Eddie não devolveu o dinheiro, 150 mil libras.”

      Andrea de Cesaris no GP da Inglaterra de 1981 (Foto: Getty Images)Andrea de Cesaris no GP da Inglaterra de 1991 (Foto: Getty Images)

      O dono da Jordan narrou a sequência dos fatos: “Fui procurar Bernie (Ecclestone), expliquei o que se passava. Ele adiantou o valor para nós”. Com isso a justiça liberou o carro de Schumacher e De Cesaris. “Procuramos ser o máximo discreto. Por sorte a mídia estava muito interessada no sétimo tempo de Michael e não se ateve ao que estava acontecendo.”

      Naquele fim de semana, Phillips conta que foi chamado à direção de prova junto de Schumacher. “Nós esperávamos que ele seria mesmo rápido e na sexta-feira em determinado momento Schumacher estava na pista com Alain Prost, da Ferrari, na sua frente. Para não bater, Prost teve de sair do asfalto. Perguntaram a ele por qual razão se comportou daquela forma e Schumacher respondeu que era porque Prost estava muito lento.”

      Essa característica, de procurar ser o primeiro, o mais rápido, o vencedor, não importando os meios, viria a acompanhar Schumacher até o fim da carreira, no distante 2012.

      Outra passagem vivida em Spa naquele fim de semana é lembrada por Phillips. “Creio que foi no sábado de manhã, não estou 100% seguro, os mecânicos detectaram perda de água no motor Ford Cosworth de Schumacher. Nesse mesmo treino, Andrea nos relatou sentir o carro estranho, meio imprevisível em algumas curvas. Nós o disponibilizamos o carro reserva. Trevor não queria ver Schumacher parado e enquanto reparavam a perda de água organizou com Gary o carro de Andrea para o alemão, ajustando os pedais, apenas. O mais incrível é que depois de poucas voltas Schumacher já era mais rápido que Andrea. Isso contribui ainda mais para desestabilizar o italiano, eu o via diferente naquele fim de semana, atingido.”

      Com Schumacher em sétimo no grid, De Cesaris em 11º, mas dispondo de um monoposto relativamente rápido ao longo das 44 voltas da corrida, Jordan viu crescer a chance de ter um aumento importante no orçamento do ano seguinte. “Não era segredo que nosso patrocinador, 7up, nos daria 1 milhão de dólares se terminássemos o campeonato com 15 pontos. E nós já tínhamos 13. Nossa esperança era enorme.”

      Em 1991, apenas os seis primeiros marcavam pontos na F1. O vencedor recebia 10 pontos, o segundo colocado, 6, o terceiro 4, o quarto, 3, o quinto, 2, e o sexto, 1. Era bem mais difícil conquistar pontos. A Jordan, apesar de estreante, já somava 13. E a Jordan, por incrível que pareça, não conseguiu em Spa e nas cinco etapas finais do campeonato os dois pontos que precisava. Jordan ficou sem o seu 1 milhão de dólares.

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      faltou experiência

      Treino é treino e corrida é corrida, como sempre se diz na F1. Schumacher pagou o preço da inexperiência na largada no GP de estreia. ��Ele nunca havia treinado largadas com o tanque cheio, que submetem o carro a esforços bem maiores da embreagem”, explica Anderson. “A Ford Cosworth estava disponibilizando uma embreagem nova, feita de titânio, mais leve e resistente da de alumínio, que utilizávamos. Nós não tínhamos dinheiro para comprar a de titânio e eu também não desejava ter no carro sem ter treinado com ela. Fomos para a prova com o que tínhamos.”

      A embreagem menos resistente e a total falta de vivência de Schumacher com os desafios da F1 fizeram com que logo depois da sequência Eau Rouge-Raidillon, segunda e terceira curvas após a largada, sua Jordan perdesse velocidade por o piloto não conseguir inserir nenhuma marcha, em decorrência da quebra da embreagem.

      “Se Andrea chegou a segunda colocação antes de o motor estourar, largando em 11º e sendo mais lento que Schumacher, tenho comigo que já na estreia o alemão poderia ter vencido. Senna tinha dificuldades com o câmbio”, afirma Phillips. A McLaren fez a dobradinha, Senna em primeiro e Gerhard Berger em segundo. Nelson Piquet, Benetton, foi o terceiro.

      Na sua primeira corrida Schumacher pilotou menos de dois quilômetros, mas uma longa e riquíssima história viria a se escrita a partir desse momento, com todos os ingredientes de um livro best-seller ou um filme digno de Oscar: risco, eficiência, intriga, heroísmo, fidelidade, acusações, profissionalismo, traição, jogo de interesses, mau caratismo, solidariedade, dedicação, dentre outros.