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Cinco anos após a tragédia que a deixou tetraplégica, Laís Souza fala da recuperação e sonha em construir uma família
Acho que ninguém sabe ao certo o que está fazendo aqui... qual o roteiro? O que temos que aprender? O que temos que ensinar? Lembro bem do dia em que acreditei ter a resposta para tudo isso pela primeira vez. Quando eu entrei no ginásio de Ribeirão Preto, minha cidade, e vi meninas da minha idade fazendo piruetas e dando mortais com aqueles colantes lindos, cabelos presos... Que euforia! Parecia um sonho, mas era bem real. Voltei ao ginásio no meu aniversário de quatro anos - 13 de dezembro. O presente não poderia ser melhor: entrei para o mundo da ginástica olímpica. Era lá que encontrava o lúdico e a competição lado a lado. O frio na barriga, a vontade de saltar cada vez mais alto e a ânsia por melhorar a cada treino... Não tinha dúvidas de que aquilo iria me acompanhar por toda a minha vida.
Tanto que aos 10 anos eu optei por sair de casa para me dedicar integralmente aos treinos. Mesmo muito nova, sabia que eu precisava daquela responsabilidade. A rotina incessante nunca tirou minha alegria de viver aquilo. Nem mesmo as lesões, que me levaram a passar por 17 cirurgias ao longo da minha trajetória na ginástica. Muito pelo contrário. Caí algumas vezes? Caí. Perdi outras tantas? Perdi. Mas carrego na memória cada vitória. Quando entrei para ginástica, a ideia era me divertir, e foi com esse desejo de ser feliz que disputei Pan-Americano, fui alçada ao posto de promessa da ginástica brasileira, disputei as Olimpíadas de Atenas e Pequim...
Laís Souza era tida como uma das principais promessas da ginástica brasileira — Foto: Jeff Gross / Equipa Getty Images
Superar meus limites e seguir em frente sempre foram uma rotina, mas quebrar o quarto metatarso da mão direita a duas semanas da Olimpíadas de Londres me pôs no chão. Foram semanas me perguntando o porquê daquilo. Lamentar, no entanto, nunca foi um verbo que combinou com a minha personalidade. Não demorou para ver que mesmo fora dos Jogos era hora de seguir adiante. Precisava mudar e mudei. Não foi fácil sair da ginástica. As brincadeiras com minhas amigas, os treinos, as risadas, as competições. Tudo fazia parte de mim. Talvez fosse a hora de me dedicar aos estudos, buscar uma forma de me manter no esporte de outra forma.
Na minha cabeça, o esporte seria uma página linda da minha vida, mas que tinha ficado no passado. Foi aí que percebi que o futuro não é algo que possamos prever. O convite da Confederação Brasileira de Desportos na Neve para que eu começasse a treinar esqui aéreo fez meus olhos brilharem.
Deu medo, evidentemente, mas injetou aquela vontade de sentir adrenalina de novo. A adrenalina e o medo sempre me motivaram. Sempre me deram um gás para viver. No esqui aéreo eu encontrei os dois.
Lais Souza e a amiga Josi Santos optaram por deixar a ginástica artística — Foto: Divulgação
Olhando agora, eu não consigo entender como eu saltava naquelas rampas imensas. A single nem era tão assustadora, mas a double, meu Deus do céu. A barriga gela só de lembrar. Um dia desses estava até conversando com a Josi - minha amiga, que assim como eu aceitou o desafio de trocar a ginástica pelo esqui aéreo - como a gente era maluca ao ponto de enfrentar aqueles saltos. Mas a verdade é que era bem divertido. O pior é que aquela maluquice deu certo. Treinei com os melhores, aprendi, voltei a me superar e, surpreendentemente, me classifiquei para as Olimpíadas de Inverno de Sóchi. Algo que nem era esperado: o foco era 2018, em Pyeongchang.
Aprender fácil é algo que posso dizer que faz parte de mim. Mesmo novinha, ficar de ponta-cabeça e fazer pirueta foi algo que consegui rápido quando entrei na ginástica. Encarar as rampas gigantes, rodopiando no ar, com um esqui em cada pé, também. Eu só não estava preparada para reaprender a viver.
Foi basicamente isso que aconteceu comigo desde o dia 28 de janeiro de 2014. Naquele dia ensolarado, em Salt Lake City, o que eu e a Josi queríamos mesmo era ir para Vegas. Relaxar um pouco, após algumas semanas puxadas de treinamento. Faltava pouco para as Olimpíadas de Sóchi e a ideia era reduzir a intensidade. Então, decidimos fazer um treininho leve. Nada de saltos, nada de aventura, só uma descidinha para movimentar. Coloquei meu capacete, a Josi preferiu nem pôr o dela. Era só uma descida rápida. Descemos, e o vento forte me fez ter a ideia de pedir para que a Josi viesse do meu lado. Era melhor, mais tranquilo. Ela não ouviu, aí olhei para trás e chamei mais uma vez e tudo mudou.
Lais Souza decidiu entrar para o esqui aéreo após o convite da CBDN — Foto: Mauro Horita
O choque contra as árvores me deixou desacordada. Entre flashes de consciência, ouvia a voz da Josi, alguns médicos, um helicóptero... Quando abri os olhos, me assustei. Com todos os fios que alguém possa imaginar ligados ao meu corpo, um cano que me impedia de mexer a cabeça, num quarto de hospital, sem nem sequer saber direito o que estava fazendo ali. Tentei pedir, algumas vezes, que alguém me desse o celular. Em vão. A falta de explicação me fez saber que tinha algo errado. Só não esperava que fosse tão errado quanto o que o médico me informou: "Laís, você sofreu um acidente e está tetraplégica. Não vai mexer nada do pescoço para baixo e se voltar a falar e respirar sem ajuda de aparelhos será muita sorte".
Não foi fácil ouvir isso. Não foi fácil entender o que aquilo representava e muito menos entender o porquê de aquilo acontecer comigo. Questionei Deus, lamentei, pensei que era o fim. Não era. Perder os movimentos não é sinônimo de perder a vida.
Às vezes, atrelamos felicidade ao que somos acostumados, ao que consideramos normal. Mas a verdade é que podemos ser felizes de diversas formas. E existe um caminho essencial para isso: o amor.
Lais Souza com as amigas Ingrid Messias e Daiane dos Santos — Foto: Marcos Ribolli
Foi o amor à vida que me fez reerguer. É esse sentimento que, a cada dia, me faz reencontrar a adrenalina que me instiga a cada sessão de fisioterapia. Não é fácil. Evidente que não é fácil. Levei três meses para recuperar a voz e parar de precisar usar plaquinhas para que as pessoas soubessem o que eu queria, depois comecei a sentar e tento, todos os dias, dar um passo para a minha recuperação. Ano passado, quando usei o Ortowalk, um robozinho fisioterápico que me permite ficar em pé, senti o mesmo de quando eu dava piruetas. Aquilo me deu asas e me fez aumentar, ainda mais, a minha esperança em uma evolução cada vez maior.
Tudo isso é caro? Claro que é. Mas felizmente, por obra do destino ou pela força do meu positivismo, tenho pessoas queridas que estão me ajudando nessa jornada. Amigos incríveis, como a Josi e a Daiane, que enchem meus dias de alegria, assim como o Neymar e o Doda Miranda. Figuras que se aproximaram após o acidente para me dar suporte. Isso sem contar na peça principal dessa engrenagem, a minha esposa, que me fez aprender que há vida amorosa com restrições de movimento.
Neymar virou amigo de Laís Souza após o acidente com a atleta — Foto: Reprodução Instagram
Agora, aos 30 anos, me dou o direito de sonhar. Diria até que mereço sonhar. Afinal, neles eu nunca estou em uma cadeira de rodas, neles eu posso me mexer e fazer todas as aventuras que sempre gostei. Mas se tem algo real em meus sonhos, é meu desejo de montar minha família. Ao lado da minha mulher, encher a casa de crianças, curti-las correndo pelo quintal, brincar com elas, com meu gato, Baguera, e com o meu cachorro, Stunt. Essa é a adrenalina que busco para ser cada vez mais feliz. Olhando para trás, para o dia que eu me vi cercada por fios e questionamentos, eu acredito que descobri o porquê de tudo isso acontecer na minha vida: eu nasci para levantar.
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