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Por Marcelo Barone — Paris, França


As 93 medalhas olímpicas do Quênia no atletismo - especialmente em provas longas, como a maratona -, alçaram a nação africana, sob a ótica mundial, à fama de "país dos corredores". Mas, para centenas de mulheres de comunidades da capital, Nairóbi, o boxe reluz mais do que ouro. É bem verdade que a nobre arte já consagrou atletas de lá em outras edições dos Jogos, entretanto, o interesse pela luta trata de temas mais complexos e sensíveis, assédio sexual, machismo e quebra de estereótipos.

Alunas do projeto: boxe é ferramenta de inclusão no país — Foto: divulgação

O BoxGirls Kenya é um clube composto por mulheres - embora tenha sido fundado por Analo Anjere, o Priest, que ainda trabalha na organização, em 2008. O projeto surgiu após a sangrenta eleição daquele ano, quando houve uma onda de violência, que vitimou meninas e mulheres, assediadas sexualmente em comunidades e favelas do país africano.

A queniana Sarah Ndisi, que está no BoxGirls desde o início, destaca a vocação empoderadora do projeto. Muitas alunas, antes de ingressarem na entidade, sequer sabiam sobre seus direitos como mulheres.

- O Priest treinava dava aulas de boxe para meninos. Duas meninas pediram para treinar, e ele deixou, ensinou-as a se defenderem. Com o passar do tempo, percebeu que havia uma lacuna no que diz respeito aos direitos das mulheres. Muitas não sabiam o que era bom ou ruim para elas. Por isso, nosso maior sonho ao tratar de boxe, não é sobre carreira, e sim, empoderar mulheres - explicou Sarah, atleta profissional de boxe da entidade, em entrevista ao ge.

BoxGirls contempla crianças e jovens das comunidades de Nairóbi, capital do Quênia — Foto: divulgação

Desde 2012 no BoxGirls Kenya, Emily Juma concorda com a amiga. O boxe e as aulas de defesa pessoal servem como proteção para mulheres que, cada vez mais, entendem os abusos sofridos ao longo da vida no país. A condição de vulnerabilidade vivenciada nas comunidades é um agravante neste cenário.

- Estamos criando plataformas para que as meninas possam se manifestar quando sentirem que serão direitos estão sendo violados. Para que controlem seus corpos, para que tenham voz. Consentir ou não quando se trata do seu corpo. No final de tudo, se conseguirem seguir carreira no esporte ou melhorarem financeiramente, sem depender de ninguém, ocupando espaços, será ótimo. O boxe mudou a minha vida. E, em termos de autodefesa, funcionou para eu me sentir mais segura dentro da favela onde eu moro - contou a atleta amadora, que trabalha na parte organizacional do projeto.

Projeto lança campanhas de empoderamento para as mulheres — Foto: divulgação

Além da defesa da vida contra abusos e assédios sexuais, uma campanha batizada como #quebrandoestereótipos também fez sucesso por lá. Florence Otieno, uma das líderes do BoxGirls na atualidade, conta que o machismo ainda é presente e, portanto, os homens não enxergam o boxe como um atividade destinada ao sexo feminino.

- Vivemos numa sociedade que acha que o boxe é masculino e violento. As pessoas pensam que "é coisa de homem". Estamos educando, conscientizando. O BoxGirls quer quebrar isso e criar um ambiente seguro para as mulheres participarem, sem estigma, sem percepções negativas da sociedade. E mostrar às pessoas que o boxe é bom para o crescimento físico e mental, além de ensinar as mulheres a se defenderem.

O BoxGirls disputou - mas não levou - o prêmio Laureus na categoria Sports For Good, em Paris, na França. Resultado à parte, foi uma rara ocasião em que o boxe no Quênia esteve mais em voga do que o atletismo. E, no que depender de Florence, a luta estará cada vez mais em destaque.

- Poderemos ser o país do boxe no futuro. Não é algo que está acontecendo agora, mas vemos uma grande diferença em relação a outros anos. Por enquanto, nossa visão é criar oportunidades, ajudar. Temos torneios de boxe, meninas interessadas em conhecer e aprender. Para as garotas que sonham com o boxe: corram atrás, não fiquem paradas. Sigam seus sonhos por amor.

Florence dá auxílio às mulheres: ensinamentos também fora do esporte — Foto: Arquivo Pessoal

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