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Por Rafael Teles — Salvador


Durante a campanha na Copa do Mundo de 2014 a Alemanha balançou as redes 18 vezes. Sete delas contra o Brasil. Mas tem um gol que não entra na contagem. Não foi registrado em nenhuma súmula. Um Gol vermelho, ano 2013. Um Gol que é legado da passagem alemã por indígenas da etnia Pataxó em Santa Cruz Cabrália, no extremo sul da Bahia.

Veja como foi a preparação para receber a Alemanha na Bahia na Copa do Mundo de 2014

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Enquanto estavam hospedados na vila de Santo André, os jogadores da Alemanha vestiram a camisa do Bahia, dançaram com indígenas e conheceram um pouco da cultura local. Na despedida, deixaram um cheque de 10 mil euros. Um presente usado por quatro aldeias Pataxó para comprar um carro que atende emergências médicas. É essa história que você conhece agora.

Carro comprado pelos pataxós com dinheiro doado pela federação de futebol da alemanha — Foto: Arquivo pessoal: Cacique Sinaldo

Troca de presentes

Alguns meses antes da Copa do Mundo, a Federação Alemã de Futebol (DFB) surpreendeu ao anunciar Santa Cruz Cabrália como sede da Seleção no Brasil. Enquanto os então tricampeões planejavam ter privacidade em um cenário paradisíaco, quem lá vivia também começou a fazer planos: usar a inevitável exposição para ajudar a comunidade.

- Fui até o hotel pessoalmente. Fui pedir uma ambulância para a comunidade da Nova Coroa. Primeiro disseram que eu não poderia entrar porque eles estavam treinando. “É o seguinte, índio. A seleção está treinando agora. Não sei se vão poder atender você”. E aí eu falei: “Guerreiro, se precisar eu amanheço o dia aqui. Mas preciso que o treinador da Alemanha assine esse documento”.

Quem conta é Sinaldo, indígena de 62 anos, que desde 2006 é cacique da tribo de Nova Coroa, em Santa Cruz Cabrália. O "documento" era um termo para que a DFB se comprometesse em comprar uma ambulância para a aldeia. Ele não conseguiu o veículo na primeira visita, mas saiu do Centro de Treinamento com uma promessa de ajuda.

- Eu tinha essa ideia de comprar um carro para atender a comunidade. Fiz um documento com mais quatro pessoas e fui levar onde a seleção da Alemanha estava hospedada. Deixei o documento com um ex-jogador, eu não lembro o nome porque não sei falar inglês. Depois de três dias ligaram para mim e me convidaram para voltar ao hotel - completa o Cacique.

Cheque simbólico entregue aos índios pataxós no sul da Bahia — Foto: Arquivo pessoal: Cacique Sinaldo

Nos dias seguintes, as relações foram estreitadas, agora com visitas dos alemães aos moradores locais. Antes de ganhar o carro, Sinaldo deu três presentes aos europeus: um colar de sementes vermelhas, uma flecha e uma lança.

"Quando eu fui ao hotel, levei três presentes. Um colar para o rapaz que recebeu o documento, uma flecha para o capitão do time (Philipp Lahm) e deixei uma lança para o técnico do time (Joachim Low)".

O cacique também apresentou a cultura local para os alemães, como a dança do anguaré. Quando foram campeões no Maracanã, os jogadores mostraram que aprenderam bem e reproduziram os passos em volta da taça. Alguns meses depois, os indígenas rodearam o carro vermelho e também dançaram o anguaré.

Imagem Reprodução / TV Globo Imagem Arquivo pessoal: Cacíque Sinaldo
Alemães em comemoração após conquista do Mundial e índios dançam o anguaré após compra do carro — Foto 1: Reprodução / TV Globo — Foto 2: Arquivo pessoal: Cacíque Sinaldo

- Foi a dança do anguaré, ela atrai a paz, a sorte, a felicidade. É uma dança de união. E aí quando eles foram campeões, colocaram a taça no meio e fizeram a dança do anguaré, uma dança muito importante para nós - explicou.

O carro vermelho

A promessa alemã foi paga dois dias antes da Seleção vencer a Argentina no Maracanã. Em 11 de julho de 2014 a delegação se despediu de Santa Cruz Cabrália e deixou um cheque no valor de 10 mil euros (cerca R$ 30 mil na época). O dinheiro não deu conta da sonhada ambulância, mas foi suficiente para comprar um carro usado, com “pouco mais de 10 mil km rodados”, como lembra Sinaldo.

- Demorou alguns meses para conseguir comprar o carro, teve o tempo de transferir o dinheiro. Mas deu tudo certo. O carro tinha uns 10 mil km rodados, mas a gente comprou dentro da loja, lá em Porto Seguro. Um Gol bola, como o pessoal fala. O dinheiro foi transferido para a conta do presidente da associação da Aldeia Nova Coroa.

Aldeia Nova Coroa adradece a doação da seleção da Alemanha — Foto: Arquivo pessoal: Cacique Sinaldo

O Gol vermelho, o "19° da Alemanha em terras brasileiras", foi entregue no dia 27 de novembro de 2014. Quase dez anos depois, ele ainda atende quatro tribos do sul da Bahia: Coroa Vermelha, Nova Coroa, Aroeira e Tapororoca. O carro é usado para levar indígenas que precisam de atendimento médico fora da região.

"O carro a gente usa até hoje. Para nós é muito importante, ele tem salvado vidas. Já levou mulheres para ganhar neném, pessoas doentes, já fui com esse carro três vezes para Salvador a benefício da comunidade. Esse carro já foi até Belo Horizonte por questões de saúde, conta o cacique da tribo de Nova Coroa".

Carro comprado pelos pataxós com dinheiro doado pela federação de futebol da alemanha — Foto: Arquivo pessoal: Cacique Sinaldo

O Gol vermelho fica em uma "cobertura" construída pelos indígenas. Quando é necessário a utilização, duas pessoas da liderança da tribo estão aptas para conduzir o carro, como explica Sinaldo.

- Eu fiz uma cobertura, e o carro fica embaixo dessa cobertura aqui na minha casa. Está no nome da Associação. Temos duas pessoas que dirigem esse carro. Paulo, que é o atual presidente da Associação, e um rapaz chamado Jó, que também é uma liderança da aldeia.

O carro vermelho mostra, portanto, que a passagem da seleção alemã pelo Brasil não foi só de traumas. Houve brasileiro que tirasse proveito de um "gol alemão". Não aqueles marcados por Muller, Klose, Khedira e companhia. Mas um que salva vidas.

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