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Por Erica Hideshima, Laura Rezende, Ludi Cianci e Roger Casé — Belo Horizonte


Abre Aspas: Douglas Souza pede respeito às diferenças e detalha problemas de saúde mental

Abre Aspas: Douglas Souza pede respeito às diferenças e detalha problemas de saúde mental

Apesar de o esporte ter como um de seus objetivos promover inclusão e diversidade, estas premissas ainda estão longe de acontecer dentro e fora do ambiente do alto rendimento. No Dia Internacional do Orgulho LGBTQIAP+, o entrevistado do Abre Aspas é o campeão olímpico Douglas Souza, um atleta que nunca escondeu sua orientação sexual e sempre lutou contra o preconceito e a homofobia.

Douglas não teve receio de falar sobre vulnerabilidade, a certeza de não mais voltar para a seleção brasileira, o boato, que ele classifica como fake news, de que não se relaciona bem com Wallace - que será seu companheiro de time no Cruzeiro - e, especialmente sobre a fragilidade de sua saúde mental, que o levou "ao fundo do poço". Enquanto falava, o noivo Gabriel se emocionava no fundo do estúdio. A plenitude e o tom de voz do ponteiro, de 28 anos, medalha de ouro na Rio 2016, não transparecia os momentos difíceis que enfrentou na carreira, relatados na entrevista ao ge.

"Tinha muito medo de acontecer algo grave" - Douglas Souza

Primeiro campeão olímpico assumidamente gay do vôlei masculino brasileiro, Douglas ressalta que já está de olho na próxima temporada e que o foco está em defender o Cruzeiro e no casamento, programado para 2025. O gigante de 1,99m, que deixou a casa da mãe aos 14 anos para se dedicar ao esporte, mostra estar calejado diante do preconceito.

- Não é que eu era superaceito, que todo mundo adorava o “viado” no time, não, mas eu me fazia ser, porque iam precisar de mim, na minha cabeça era isso. Sempre deixei isso muito claro, porque eu sabia que, se ficasse entre o Douglas e o heterozinho padrão, iam ficar com o heterozinho padrão. Então eu sempre tentei o meu máximo para que o time precisasse de mim, que precisasse do Douglas para ganhar jogos, para ganhar campeonatos. Eu meio que forçava, 'vai me aceitar, sim'.

"Eu sempre fui muito linguarudo, então se você falasse alguma coisa, você ia escutar, você tinha que aguentar, porque se você bater de frente, a gente vai bater de frente".

Douglas Souza em entrevista para o Abre Aspas — Foto: Leandro Pacheco

Durante a entrevista, Douglas comentou sobre momentos de depressão e ansiedade. O jogador também explicou a aposentadoria da seleção, anunciada em 2022 e muito relacionada às suas questões de saúde mental. Neste ano, o jogador chegou a ser convocado pelo técnico Bernardinho para a disputa da Liga das Nações, mas recusou. Assim como desistiu de jogar na Itália em 2021, quando se transferiu para o Vibo Valendia, para participar do Campeonato Italiano de vôlei. A experiência durou pouco. Depois de 10 partidas pelo clube italiano e com problemas de adaptação, o jogador decidiu voltar ao Brasil.

Outro episódio marcante foi o de sua chegada ao Cruzeiro. Quando foi anunciado como reforço da equipe, alguns torcedores usaram as redes sociais para criticar a chegada de Douglas Souza ao clube. O Cruzeiro publicou um manifesto pedindo respeito e igualdade.

Neste 28 de junho, Dia Internacional do Orgulho LGBTQIA+, Douglas lamentou ainda ter que falar sobre o tema, mas com otimismo quanto ao fim do preconceito.

- É meio exaustivo todo santo ano ter que ficar falando sobre sexualidade dentro do esporte, mas infelizmente é uma coisa que a gente tem que falar. (Estamos em) 2024 e a gente ainda está falando sobre isso, 'Ah, o Douglas é homossexual', tá, mas e daí? O Douglas vai ser cobrado do mesmo jeito, sendo homossexual, sendo heterossexual, sendo o que for, ele vai ser cobrado se não tiver 50, 60, 70% de ataque em um jogo.

Ficha técnica

  • Nome completo: Douglas Correia de Souza
  • Nascimento: 20 de agosto de 1995, Santa Bárbara d'Oeste, SP
  • Carreira: Pinheiros (2012/14), São Bernardo (2014), Sesi (2014/18), Taubaté (2018/19), Vibo Valendia (2021/22), São José (2022/24) e Cruzeiro (2024)
  • Títulos: Campeão olímpico (Rio 2016) e vice-campeão Mundial (2018)

Abre Aspas: Douglas Souza

ge: Você sabe da importância, o que você representa para a comunidade LGBTQIAPN+? Tem muita gente que não tem voz, que não tem coragem. Você sabe o quão importante é a sua voz?

Douglas: Sei, é por isso que eu dou espaço e eu me doo para isso. (...) Um dos meus sonhos é que futuramente, não sei daqui quantos anos, o menos possível, 10, 20, não sei, a gente não precise mais estar nesse tipo de debate, que seja uma coisa mais natural, que seja uma coisa da vida pessoal das pessoas, que ninguém liga, que ninguém se importa, mas eu entendo que a gente precisa, porque infelizmente muita gente sofre muito preconceito, as portas se fecham para muitas pessoas só por conta da sexualidade.

Você acha que o preconceito vai acabar?

- Eu acredito. Não sei se vou estar vivo para isso, infelizmente, mas eu acredito. Eu acredito que principalmente agora com essa nova geração, a geração Z. Eles estão vindo totalmente diferentes, com informação muito diferente, com a cabeça muito diferente.

O Cruzeiro fez um pedido de respeito após anunciar a sua contratação. O que você acha disso?

- É legal que eles estão preocupados com essa situação, então eles pedem sempre muito respeito, muito carinho, para as pessoas entenderem isso. Mas infelizmente é nesse ponto que a gente precisa chegar. Uma grande instituição ser obrigada a fazer um post na rede social para pedir, para deixar claro, que não tem nenhum tipo de preconceito, para todo mundo tentar respeitar e não sei o quê.

"Se o Cruzeiro fosse preconceituoso, eles jamais iriam contratar um homossexual, então o preconceito já não existe só na contratação. Eu estou muito tranquilo".

As Olimpíadas estão se aproximando. Como que é para um cara que viveu tudo isso ficar vendo pela televisão?

- Eu não sei, porque, provavelmente, eu não vou nem assistir. Eu torço muito para o Brasil, mas eu não assisto a todos os jogos. Eu não costumo acompanhar muito vôlei. Eu sou muito dos jogos (games), então eu passo o pouquíssimo tempo que a gente tem, que a gente não está treinando, que a gente não está malhando, eu passo jogando, passo com o meu noivo, eu passo fazendo algo fora do vôlei, fora do trabalho, para que isso me acalme, não me deixe ansioso.

Ponteiro Douglas Souza em entrevista ao Abre Aspas — Foto: Leandro Pacheco

As Olimpíadas de Tóquio foram uma virada na sua vida? Tanto profissional quanto pessoal, por tudo que acontece dentro de fora de quadra. Você virou uma celebridade de fato depois das Olimpíadas, isso foi uma virada de chave?

- Uma subcelebridade, mas com certeza. Deu uma grande virada, porque tudo mudou. Na Olimpíada eu estava em uma outra vibe, porque aquilo era quase como se fosse um documentário para mim. Não sei se já contei isso para algumas pessoas, mas para mim era um documentário real, porque eu já sabia que eu ia me aposentar da seleção, que Tóquio ia ser o meu último campeonato. Desde 2017, eu já sabia.

Por que você estava tão determinado assim para a aposentadoria da seleção?

- Eu tinha comentado com o meu empresário, que é um pai para mim. Em 2017, eu cheguei a comentar com ele que começaram a acontecer coisas muito pesadas na minha vida. Depressão, ansiedade, eu não sabia de nada dessas coisas, eu não tinha essa informação tão clara. Eu falei para ele que estava acontecendo isso, isso e isso, eu estava me achando muito estranho, não sei se isso iria crescer, se iria aumentar, mas eu não estava me sentindo feliz e alguma coisa estava acontecendo comigo.

Eu tenho medo principalmente pelas pessoas que estão a minha volta, pelo meu noivo, que na época era namorado, pela minha família, então eu tinha muito medo de acontecer algo grave.

Douglas Souza comemora ponto do Brasil nas Olimpíadas Tóquio — Foto: Gaspar Nóbrega/COB

O seu empresário te aconselhou a fazer terapia?

- Não é que eu não acreditava em terapia, mas o atleta tem muito isso de “eu preciso lidar com isso sozinho”. Eu fui vivendo, passou a temporada com a seleção, eu voltava para o clube, aí era uma correria, então eu ia mascarando tudo, ia fingindo. Aí chegou 2018, que fui convocado para o Mundial, que fui o melhor ponteiro, ali eu estava no fundo do poço e ninguém sabia, estava careca, eu raspei a cabeça justamente por isso. Era a fase final, e a gente foi macetado. Eu já não estava muito bem, aí vieram todos esses comentários negativos, todas essas coisas, aí eu fiquei pior.

Douglas Souza faz um V na comemoração após vitória da seleção brasileira — Foto: Divulgação/FIVB

Eu comecei a pensar, a ter certeza de que a seleção para mim era muito pesado, o tempo longe de casa. Isso tudo para mim poderia ser complicado e aí aconteceu, na final da Liga das Nações, uma coisa que para mim foi o pior que foi você não sentir nada. Você não sentir gosto das coisas, não ver cor nada coisas, isso foi o pior para mim, pensar fazer as coisas erradas comigo mesmo, aí foi o estopim para mim.

Como foi para você aceitar essa mão estendida?

- Meu noivo falava para mim que precisava fazer terapia, e eu enrolava, colocava para frente. Aí fui para o Mundial e raspei a minha cabeça, para mim, é horrível falar isso, mas na minha cabeça era exatamente o que eu pensava, eu entrei no avião falando que esse campeonato ia mudar a minha vida, o rumo da minha vida vai ser esse campeonato. Deu tudo certo, fui o melhor ponteiro do campeonato, voltei e segui mascarando. Eu só fui começar a fazer terapia na pandemia em 2020 mesmo. Mudei de terapeuta várias vezes, mas foi de boa, foi um processo.

O que te moveu para voltar da Itália?

- Todo mundo fica falando na orelha do atleta, tipo: 'você tem que sair, lá fora você recebe em euro, lá fora é isso, aquilo, melhores campeonatos, melhores estruturas, melhores ginásios'. Eu tinha acabado de ser campeão aqui, eu morava em uma casa maravilhosa em Taubaté, eu tinha tudo do jeitinho que eu queria, mas aí eu falei: 'não, eu vou'. Aí começaram a acontecer muitas coisas que me desiludiram muito, que eu olhava e falava: 'não é tudo isso que falaram não'.

Abre Aspas: Douglas Souza fala de expectativa no Cruzeiro e relembra saída da Itália

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Fui eu e meu noivo, esperando que no outro mês a gente ia levar as nossas filhas também, nossas duas cachorras, mas quando a gente chegou lá e vimos o pouco espaço que a gente tinha, a gente falou 'não tem condição de a gente trazer elas, porque vai ser desumano'. Chegou em um ponto que eu estava voltando para o buraco como eu estava naquele ano e isso começou a me preocupar. Falei com o meu noivo, e ele falou: 'olha, se você estiver se sentindo mal, eu quero que você me fale e a gente vai voltar'.

Douglas Souza e o noivo, Gabriel — Foto: Reprodução/Instagram

Fui para a quadra, e aí, um cara, um dos centrais do meu time, eu nem tinha muito contato com eles assim, ele chegou do meu lado e falou assim: 'tá tudo bem?'. Eu falei que estava tudo bem e perguntei o porquê. Ele disse: 'você tá com um olhar bem triste, você não está bem, você não está'. Aí aquilo me pegou, uma pessoa que nem me conhece direito, vira para mim e me fala isso, antes de um jogo. Durante o jogo eu já comecei a sentir umas coisas, não sentir na verdade.

Ponteiro Douglas Souza durante entrevista ao ge — Foto: Leandro Pacheco

Aí eu falei: 'vamos pegar as nossas coisas e vamos embora'. Já compramos a passagem, aí meteram uma mentira descarada de que eu fugi, mas não tinha como eu ter fugido, porque o meu passaporte estava com eles. Falei com eles, escutei um tanto de coisa, falaram que nunca mais ia jogar vôlei na minha vida, falaram um monte de coisa, acabaram comigo, e eu: 'tudo bem, só quero o meu passaporte, me dá meu passaporte que eu vou embora, não quero escutar nada de vocês, não quero ver nada de vocês, só quero ir embora, depois pago multa, pago rescisão'. Foi isso; depois meteram, enquanto eu estava no aeroporto vi um tanto de notícia de que eu fugi, um bando de mentiroso, mas faz parte.

Queria que você falasse um pouco da sua relação com o Wallace, que vai ser seu companheiro no Cruzeiro.

Douglas Souza nega problemas com Wallace: "Grande mentira"

Douglas Souza nega problemas com Wallace: "Grande mentira"

- O povo cria uma fake muito grande que nós somos mega rivais, que nós somos inimigos, que é uma grande mentira. Eu conheci o Wallace em 2014, na minha primeira aparição na seleção adulta, eu era juvenil ainda. Eu sempre me dei muito bem com a esposa dele, com o filho dele, que era muito pequeno na época, agora já deve ser gigantesco. A gente sempre teve esse contato muito próximo, eu nunca tive problema com o Wallace, ele nunca foi desrespeitoso comigo de forma alguma. A gente sempre teve essa proximidade.

Você sabe de onde surgiu essa fake news?

- Política, é lógico, é óbvio. Porque o Wallace apoiava uma coisa, eu não necessariamente, não sou de esquerda, não sou PT, mas rolava né, tipo: 'Ah se o Wallace apoiava o Bolsonaro, o Douglas é contra, ou o Wallace é contra o Douglas'. Rola muito dessas coisas nas redes sociais, mas é uma grande mentira.

Cruzeiro anuncia a contratação de Douglas Souza

Cruzeiro anuncia a contratação de Douglas Souza

Fala um pouco sobre substituir o López e trabalhar com Filipe Ferraz, no Cruzeiro.

- Isso de substituir o López é meio complicado, as pessoas vendem isso e algumas acreditam que eu estou para substituir o López. Não é uma verdade, o López é um jogador totalmente diferente do que o Douglas é. Eu não estou aqui para substituir ninguém. Eu só vou fazer o meu trabalho como fiz em todos os lugares que participei e tentar ajudar o time de alguma forma. O Filipe foi um dos grandes motivos de eu ter fechado no Cruzeiro, porque joguei muito contra o Filipe, já apanhei bastante, já perdi muito. Para mim, você trabalhar com um técnico que recentemente era um dos melhores ponteiros do Brasil, era muito constante, ajudava o time em tudo que podia. Se eu conseguir fazer um pouco do que ele fazia como ponteiro para mim, já vai ser fenomenal.

Douglas Souza foi recebido pelo grupo do Cruzeiro vôlei — Foto: Agencia i7

Como está a vida pessoal? Você vai se casar. Como é a relação com a sua família hoje?

- A minha família é muito importante pra mim, assim, ao longo dos anos, a gente foi meio que se afastando assim, porque é muito trabalho, é muita coisa pra fazer, aí não consigo estar em todos os aniversários, essas coisas. A minha família também adora o Gabi, sempre trataram ele muito bem. O casamento vai ser ano que vem. Teve pedido. Eu pedi ele (em casamento) no ano passado. Fez um ano e um pouquinho agora, a gente já tá começando a correr atrás de tudo, meu Deus, tem muita coisa para pagar, eu tô ferrado (risos).

Douglas Souza no Abre Aspas do ge — Foto: Leandro Pacheco

E a vida de gamer?

Douglas Souza fala de lado gamer: "É uma coisa que me alivia"

Douglas Souza fala de lado gamer: "É uma coisa que me alivia"

- Eu sou bem gamer. Se eu não estou jogando no computador, eu estou jogando no celular. É uma coisa que me alivia bastante, que ajuda a falar com outras pessoas que também gostam, de falar de outras coisas além do trabalho, que para mim é muito importante. Meu maior hobby com certeza é jogar alguma coisa.

Douglas Souza atua como suporte no LOL — Foto: Reprodução

Alguém já descobriu o seu nick e disse “tô aqui dando uma surra no Douglas”?  

- Antigamente eu jogava um jogo, League of Legends, jogo também, mas jogo com bem menos frequência, mas o seu nick era exclusivo, e aí era muito mais fácil. Algumas pessoas reconheciam, algumas xingavam, outras mandavam beijo, outras faziam graça. Sempre tinha, mas hoje todo mundo já pode ter o mesmo nick, então é bem mais difícil. É mais tranquilo para mim também, ficar ali desconhecido, é óbvio.  

Como que você lida com a fama? 

- Eu gosto da parte de tirar foto, de ter essa interação com o público. Isso fez de mim um pouquinho mais caseiro, porque é muito olhar o tempo todo. Eu acabei de chegar a BH, então fui a um shopping, e uma menina já gritou: 'Meu Deus, é o Douglas'. Rola um pouco disso, às vezes te assusta um pouco, às vezes você até esquece, mas é legal. É bem divertido.

E quem é o Douglas?

- O Douglas é uma pessoa muito extrovertida, mas também muito quietinha. Ele não dá liberdade para quem ele não conhece, mas aí quando vai conhecendo aí ferrou, porque é risada o tempo todo, brincadeira o tempo todo. É uma pessoa que está aí no esporte, lutando por respeito, por carinho, que não pede nada mais do que isso, só respeitar as diferenças, espero muito que daqui a alguns anos a gente não precise mais estar falando sobre isso, e que tem muitos sonhos ainda, assim como o seu filho que está vendo isso, assim como qualquer pessoa que seja próxima de você que faça parte dessa sigla, dessa diversidade. Acho que é isso, o Douglas é amor.

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