Vidas na rua

Por Jornal Nacional


‘Vidas na rua’: não ter onde morar é perder o acesso a uma série de direitos fundamentais

‘Vidas na rua’: não ter onde morar é perder o acesso a uma série de direitos fundamentais

Nesta semana, o Jornal Nacional está chamando a atenção para a situação peculiar em que se encontram milhões de pessoas no mundo todo. Gente que passa os dias e as noites na rua por não ter um teto. As duas primeiras reportagens da série especial mostraram que países ricos como os Estados Unidos e o Reino Unido têm milhares de seres humanos nessas condições. Nesta quinta-feira (11), o nosso olhar é para o Brasil.

Uma vez por semana a praça, em Copacabana, é o que foi feita para ser: um lugar de encontros. Moradores do entorno e voluntários dividem afeto e comida com quem também vive por ali, mas não tem endereço.

“Somos todos vizinhos. Assim como você conhece o vizinho, o padeiro, o jornaleiro, você pode conhecer a pessoa que está em situação de rua naquele momento”, diz Deborah Barrocas, diretora-executiva do Proj. Ruas.

“Boa noite, meu nome é Carlos Martins. Cheguei aqui cansado, receoso, agora estou feliz e grato”, diz um homem em situação de rua.

Olhar para uma pessoa e enxergar uma pessoa. Parece óbvio, mas esse é o primeiro passo. A chamada situação de rua vai muito além de dormir ao relento. Perder um teto é perder o acesso a uma série de direitos fundamentais que deveriam ser garantidos a todos.

“Habitação, trabalho, educação, assistência social, saúde. Essa é a realidade da rua: são andarilhos da alimentação”, afirma a defensora pública Cristiane Xavier.

Quando os voluntários vão embora, o lugar deixa de ser praça e volta a ser uma fronteira entre dois mundos que mal se olham.

“Muitos olham com cara de nojo”, conta uma mulher em situação de rua.

“Eu acho que elas enxergam o morador de rua como um verdadeiro trapo humano”, afirma um homem em situação de rua.

“Tem algumas pessoas que cospem, debocham. E tem algumas pessoas que chegam com uma comida, uma coberta”, diz outro.

“A gente sabe que a população em situação de rua cresceu. Para começo de conversa, o olhômetro das pessoas indica isso, quem mora nas grandes cidades sabe que aumentou, e o que a pesquisa do Ipea mostra é que essa impressão que a gente tem, ela condiz com a realidade”, afirma Marco Natalino, pesquisador do Ipea.

O último levantamento do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, de 2022, mostra que em 10 anos a quantidade de pessoas em situação de rua aumentou 211%. O número é ainda mais chocante se comparado com o crescimento geral da população: 2,4% no mesmo período.

“A pandemia pode ser considerada uma causa do crescimento nos últimos anos porque ela, na verdade, gerou uma série de vulnerabilidades, não só de ordem econômica, que é uma das principais causas, mas também fragilização dos vínculos familiares e de amizade, comunitários das pessoas”, diz Marco Natalino.

Crescimento da população — Foto: Jornal Nacional/ Reprodução

Um outro levantamento, mais recente, mostra que o número segue aumentando. Segundo o CadÚnico, no último mês de maio, mais de 290 mil pessoas estavam em situação de rua; 13% são mulheres - uma a cada cinco é mãe.

Em meio à multidão masculina e solitária, uma voz feminina se destaca ainda mais. Voz de comando. Nathália Mendes nasceu na favela, viveu de perto o problema das ruas e desistiu de enxugar gelo. Ela percebeu que não vai haver comida que chegue se, junto com o alimento, não oferecer oportunidades.

“É uma lenda, um absurdo quando falam que população de rua não quer trabalhar. Para a gente é o que eles mais pedem”, afirma Nathália Mendes, diretora da ONG Recomeçar.

Mas nessa busca, muitas vezes, a porta se fecha logo na primeira linha da ficha de emprego.

“Que endereço é esse? Abrigo? Não. Como uma pessoa em situação de rua vai em uma entrevista de trabalho? Ela não tem roupa. A gente tem que viabilizar roupa. A gente precisa inúmeras vezes... Toma aqui, vamos lá cortar seu cabelo para você chegar na entrevista apresentável”, conta Nathália.

VIDAS NA RUA

De roupa nova, cabelo cortado e barba feita, Arquimedes Pereira Lima relembra os tempos em que tinha casa, família, três filhos, e trabalhava em uma grande empresa.

“Quando eu separei, de lá para cá, minha vida começou a decair. Devagarzinho, mas decaiu. Você não percebe, mas vai caindo devagarzinho”, afirma.

Ele não percebia que estava doente: alcoolismo.

“Quando eu vi, eu já estava no papelão, deitado no papelão enrolado”, lembra.

Na calçada, se equilibrava entre os olhares tortos e o desprezo.

“Passei muita fome, passei muita fome. Eu passei muita fome. Pedia um pão e ninguém me dava, cara”, conta.

Ele nunca desistiu de tentar um emprego. Perdeu a conta de quantas vezes ouviu um “não”. Foi então que as histórias de Arquimedes e Nathália se encontraram.

"Não tinha R$ 1 no bolso. Recorria a Nathália. Era meu anjo, sempre foi o meu anjo", diz Arquimedes.

“Sem um trabalho onde a pessoa consiga autonomia para ela ter dignidade, para ela se suprir as próprias necessidades, pode ser que eu seja radical, mas sem isso não funciona”, afirma Nathália.

Com a ajuda da Nathália, Arquimedes arrumou emprego: serviços gerais em um hotel. Nem chega a ser uma visita. Ele está de licença enquanto se recupera de uma cirurgia que foi paga pelo plano de saúde da empresa. Para quem tinha o céu como telhado, a vida deu uma reviravolta completa.

“Agora eu tenho uma casa, graças a Deus, onde morar, onde botar minha cabeça”, comemora.

A história de Wallace percorreu outros caminhos, mas também passou pela calçada. Abandonado pela mãe, foi criado em um abrigo. Na adolescência, fugiu em busca de ser livre. Foram 13 anos de caminhada até descobrir que a liberdade mora da porta para dentro.

Habitação primeiro. Essa ideia inverteu a lógica do atendimento à população de rua, e fez o menino das calçadas, pela primeira vez na vida, ter quatro paredes só para ele. A moradia é mantida pela mesma ONG que atua na praça de Copacabana.

“A casa em primeiro lugar. A casa é um fator estabilizador para a pessoa que está em situação de rua. Em um modelo tradicional, a pessoa primeiro passa por diversas etapas e para depois conquistar a casa. No entanto, a casa é uma base, é um fator de segurança que entra como estabilizador para essa pessoa se cuidar, para essa pessoa se tratar”, explica Allini Fernandes, presidente do projeto Ruas.

Wallace tem a responsabilidade de cuidar desse pedacinho do mundo, e a oportunidade de decorar o próprio espaço. O que ilumina a casa é o sorriso do morador.

“Foram dois, três meses para eu me adaptar. Porque eu não estava acreditando que eu estava dentro de uma casa que seria minha”, diz.

Um cômodo, cozinha e banheiro. Um novo mundo para quem nunca se acostumou a dormir no chão duro da rua.

Repórter: O que você mais gosta da sua casa?

“É a cama. É que antigamente eu dormia no papelão. Tinha vezes que eu não conseguia achar um papelão devido à chuva e, hoje em dia, a cama para mim agora está sendo...”, conta.

No canto oposto, um objeto igualmente importante. O diploma de cozinheiro, um pedaço de papel capaz de transformar uma vida. O fogão é bem velhinho, deixado pelo antigo morador. Mas Wallace prepara quentinhas para distribuir pelas ruas. Quem ganhava comida hoje oferece.

Hora de descansar. Amanhã, ele vai acordar cedo. Sabemos disso porque a casa não tem cortina, a claridade não incomoda. Quem viveu tanto tempo nas ruas aprendeu que uma casa não resolve todos os problemas da vida, mas é o mínimo de que um ser humano precisa para se reencontrar.

Na sexta-feira, o Jornal Nacional vai mostrar a situação na cidade de São Paulo.

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