Vidas na rua

Por Jornal Nacional


Maior economia do planeta tem mais de 650 mil pessoas em situação de rua

Maior economia do planeta tem mais de 650 mil pessoas em situação de rua

Nesta semana em que o Jornal Nacional examina a situação de pessoas que passam os dias e as noites na rua por falta de um teto, a segunda reportagem da série especial vem dos Estados Unidos. Mais de 600 mil seres humanos vivem assim no país que tem a maior economia do planeta. Mas foi lá que surgiu uma iniciativa que tem sido imitada no mundo inteiro.

Foi muito rápido que a vida da Sherelle descarrilhou.

“Primeiro perdi o emprego. Depois, perdi meu carro em um acidente que não foi minha culpa”, conta.

Não conseguiu mais pagar aluguel e começou a dormir em sofás de amigos.

“A polícia chegou. Eu fui para a cadeia porque me disseram que eu entrei ilegalmente na casa e que eu estava morando lá”, diz Sherelle.

Sherelle acabou de sair da prisão. Está acampada no centro da cidade de Houston, no Texas.

“Essa, por enquanto, é a nossa casa. Então, temos que deixar ela do melhor jeito possível. É uma situação temporária. Eu confio no processo”, afirma.

A assistente social Kris Donaldson chegou sem avisar. Acampamentos como o mostrado na reportagem são proibidos pelo estado. Então, o que a organização faz é ir conversar com as pessoas que estão morando na rua e tentar achar uma solução antes que a polícia chegue e tente tirá-las para outro lugar.

O pretexto para o início da conversa é entregar kits de produtos de primeira necessidade. O objetivo de verdade é conhecer a fundo histórias como a da Sherelle.

"Me ajudou muito entender que essa situação acontece com todo tipo de gente", diz Kris Donaldson.

A Kris sai e vai contar essas histórias para a chefe dela.

"Eu não posso acreditar que eu moro em um dos países mais ricos no mundo, mas tem gente que mora na rua”, diz a assistente social Ana Rausch.

Ana nasceu em Belém do Pará, mas foi para os Estados Unidos ainda criança. Depois que se formou, começou a trabalhar em um abrigo para mulheres em situação de rua.

“Eu fiquei pensando assim: como uma pessoa sai de um bebê e uma pessoa vai para frente e outra fica na rua? Era uma coisa que eu queria saber mais. Por quê?”, questiona Ana.

A curiosidade virou motor de vida. Hoje, ela coordena o dinheiro que chega do governo federal para a cidade de Houston para dar casa a quem precisa.

“Todo mundo é diferente. As coisas que eu preciso vão ser diferentes das coisas que você precisa”, afirma Ana.

Pessoas em situação de rua nos Estados Unidos — Foto: Jornal Nacional/ Reprodução

A ideia é entender histórias como a da Sherelle e identificar de onde tirar o dinheiro para conseguir uma casa para ela. São várias organizações diferentes, cada uma trabalhando com um tipo de situação.

“A gente atende pessoas que tenham algum tipo de deficiência e que estejam morando na rua há mais de um ano”, conta a assistente social Yolanda Jackson.

A organização da Yolanda também atende casos de estresse pós-traumático - alguém que tenha lutado em uma guerra e tenha sofrido danos irreparáveis, por exemplo.

“Meu aniversário de 20 anos foi no Afeganistão. Eu vivia com medo de não saber se veria o dia seguinte porque estava lutando uma guerra”, conta o veterano Fredrick Harris.

Quando voltou, não conseguiu mais esquecer do que viu. Fred perdeu o controle e acabou morando na rua. Foi quando a Yolanda apareceu.

“Eles me falaram que eu tinha uma deficiência. Em algumas semanas, me colocaram nesse apartamento”, diz Fredrick.

A política oficial do governo americano é "housing first" - significa casa em primeiro lugar.

“É muito difícil uma pessoa estar morando na rua, estar morando em um abrigo, tentar pegar trabalho. Se eu tiver morando embaixo de uma ponte, como eu vou tomar banho? A única coisa que a pessoa está pensando é: hoje eu tenho que sobreviver. Onde eu vou dormir? Onde vou comer?”, explica a assistente social Ana Rausch.

Por isso, a verba do governo federal americano é repassada para pagar o aluguel de pessoas em situação de rua e, só depois, prestar outras assistências necessárias.

“O que funciona é ajudar as pessoas a cruzar essa barreira. Ter uma casa limpa, confortável em que eles se sintam bem e seguros”, afirma Yolanda.

A assistente social Amanda Ligon ajuda a encontrar casa para mulheres vítimas de violência doméstica.

“Eu nasci em situação de rua. Quando criança, fui vendida sexualmente. Tenho dois irmãos, um deles está preso e o outro está em situação de rua. Tive apoio de centros comunitários e consegui me informar. E, hoje, eu tenho informação sobre o que é o trauma e posso prestar a ajuda necessária para quem está nessa situação”, afirma.

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O trabalho de gente realmente envolvida no assunto - como a Yolanda, a Ana e a Amanda - faz da cidade de Houston uma referência nos Estados Unidos. Eles conseguiram diminuir em dois terços o número de pessoas em situação de rua. E não longe dali, em Austin, também no Texas, um homem teve uma visão.

"Eu comecei a passar noites na rua com as pessoas tentando aprender o que acontecia com elas. Foi quando eu descobri que todas tinham algo em comum: experimentaram uma perda, profunda e catastrófica, de família e comunidade”, diz Alan Graham, fundador do Community First Village.

Community First: comunidade em primeiro lugar — Foto: Jornal Nacional/ Reprodução

Com o tempo, a visão dele se transformou em uma cidade. São centenas de pequenas casas enfileiradas no lugar chamado Community First - ou seja, comunidade em primeiro lugar.

As casas são pequenas de propósito. A maior parte delas não tem nem cozinha, porque a ideia é que as pessoas não passem muito tempo lá, mas que venham para a rua, e na hora de fazer o almoço usem cozinhas comunitárias em que as pessoas podem compartilhar comida, mas também receitas, conversas, podem se engajar com outras pessoas e construir dessa forma um espírito comunitário. Formam-se famílias de aluguel.

“Quando uma pessoa nova chega aqui, eu sempre tento conhecê-la. Todo mundo tem meu telefone e pode me ligar e me dizer o que está sentindo”, diz Blair.

O Blair é um dos moradores mais antigos.

“Todo dia, eu me levanto e dou uma caminhada para ver como estão os meus vizinhos”, conta.

Todo mundo lá paga cerca de US$ 400 (R$ 2.164) por mês de aluguel, em uma cidade em que um apartamento de um quarto sai por US$ 1,8 mil (R$ 9.738) mensais. Então, todo mundo tem que ter uma fonte de renda – seja pensão do governo ou um trabalho. É possível trabalhar no local mesmo, na horta, por exemplo.

"Todo domingo, nós colocamos as mesas aqui com vegetais e ovos. As pessoas têm comida de graça e as pessoas que trabalham podem ter uma renda”, conta Blair.

A comunidade é mantida com doações de empresas – apenas uma parte do dinheiro vem do governo. E quem trabalha com pessoas em situação de rua sabe que a grande maioria precisará de assistência pela vida toda.

O Fred é um caso raro. Conseguiu se reerguer, teve um filho e pediu para que o governo deixe de pagar o aluguel dele.

"Eu estou feliz agora e acho que o que eu coloco de positivo no universo volta para mim”, diz.

A crise nos Estados Unidos está longe de ser controlada. Hoje, são mais de 650 mil pessoas nas ruas em todo o país - mais do que o dobro do Brasil.

“Você não tem que ser um vagabundo para estar em situação de rua. Eu estou nessa situação e tenho trabalho e pessoas trabalhando para mim. Como vou pagar aluguel de US$ 2,5 mil por mês?”, questiona um homem em situação de rua.

Em Nova York, todo mundo tem direito a um abrigo para passar a noite. Mas o Juan conta o que se ouve muito: que lá é violento. Ele já foi roubado. Por isso, prefere ficar na rua.

"Eu estou fugindo de um casamento em que era ameaçada. Eu estava morando em um abrigo, mas fui expulsa porque me neguei a me prostituir", diz uma mulher em situação de rua.

São muitas histórias distintas. O mais fácil para a gente é não olhar para não sermos nunca lembrados que se essas pessoas não têm família - a família delas somos nós.

Essa série especial de reportagens volta na quinta-feira (11), quando o Jornal Nacional vai mostrar a realidade brasileira da população em situação de rua.

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