Propósito nos Negócios

Por Heiko Hosomi Spitzeck

Heiko Hosomi Spitzeck é diretor do Núcleo de Sustentabilidade da Fundação Dom Cabral


Escravidão — Foto: Unsplash
Escravidão — Foto: Unsplash

Há 136 anos, no dia 13 de maio de 1888, foi sancionado a famosa “Lei Áurea”, que, no primeiro artigo, declara “extinta desde a data desta lei a escravidão no Brasil”.

Recentemente, pude entender melhor os mecanismos da escravidão e ver as condições de vida das pessoas escravizadas. Na última viagem para Amazônia, fui com um grupo de executivos visitar o Museu do Seringal Vila Paraíso. O guia nos explicou que os donos dos seringais prometeram a moradores do Nordeste sofrendo com a seca uma vida melhor na Amazônia se trabalhassem como seringueiros. Porém, ao chegar no local, eles tinham de repagar a dívida da viagem, das ferramentas e da comida, entrando num ciclo de servidão perpétuo, passando as dívidas para seus filhos.

Quais são as características dos arranjos econômicos que exploram esse tipo de trabalho? Primeiro, se dirige a uma parte da população que não tem muitas opções para gerar renda. Segundo, um salário e condições de trabalho que os mantêm num lugar de dependência e sem oportunidades de melhorar as condições de vida.

Lamentavelmente, encontramos essas condições ainda em vários setores. Temos que ficar de olho, porque o modelo de servidão e terceirização é atrativo demais do ponto de vista econômico. O pensamento de vez em quando ainda é que “assim consigo trazer lucros maiores para meus investidores e são eles que importam”.

Um setor que recebeu atenção a respeito é o de aplicativos. Em 2020, uma reportagem intitulou os trabalhadores de apps como “escravos urbanos”. Como não têm vínculo empregatício, não têm assegurado os direitos trabalhistas. Para pagar as contas, precisam rodar de 10 a 15 horas, muitas vezes sem acesso a um banheiro, água potável ou equipamentos para recarregar o celular. Nem falar de seguro de acidente, saúde ou, muito menos, de uma aposentaria.

E eles estão lá, fa��a sol, faça chuva, entregando além de comida, compras e remédios. Na pandemia, foram um elemento importante para manter a sociedade funcionando. E muitas empresas do setor já debatem essas condições e procuram melhorias – porém, este deve ser um trabalho setorial, porque líderes que avançam sozinho confrontam desvantagens no mercado.

Os motoboys são só um exemplo – condições semelhantes existem em vários setores. O maior risco de condições equivalentes a trabalho escravo é relatado nos seguintes setores: agronegócio, construção civil, moda e mineração, além de trabalho doméstico. Na lista suja de trabalho escravo do Ministério do Trabalho, três dos primeiros quatro lugares são ocupados pelo setor agrícola.

Consequentemente, a luta contra a escravidão não terminou. De acordo com dados do Ministério de 2023, na média, 8 pessoas em situação de escravidão são resgatadas no Brasil por dia, o equivalente a 3.000 pessoas ao ano – o maior número desde 2009.

O quê você pode fazer, caso queira ajudar na luta:

1.Refletir sobre seu consumo – quem você apoia com sua compra? Importante não apoiar empresas e cadeias de valor que usem trabalho análogo à escravidão.

2.Fazer uma avaliação de riscos na sua empresa – onde podemos estar expostos a riscos de escravidão na cadeia de valor? Recomendo, sobretudo, para empresas que têm relações comerciais com a Europa, por causa da Corporate Sustainability Due Diligence Directive, que obriga empresas a provar que estão protegendo direitos humanos ao longo da cadeia de valor.

3.Apoiar novas legislações que tragam o espírito da Lei Áurea e das leis trabalhistas para pessoas que ainda não têm esse direito.

4.Apoiar ONGs que trabalhem em prol da luta contra a escravidão e em favor da proteção dos direitos humanos.

No final, se nossa sociedade gerar mais renda e qualidade de vida para essas pessoas, o Brasil vai voltar a crescer, além de ser mais justo e oferecer oportunidades de progresso. São milhares de pessoas de renda baixa que têm necessidades básicas que precisam ser atendidas. O maior consumo deles daria uma força inestimável para o mercado interno brasileiro.

*Heiko Hosomi Spitzeck é Diretor do Núcleo de Sustentabilidade da Fundação Dom Cabral

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