Já faz mais ou menos um século, circula entre nós um conceito que para muita gente não foi e não será superado: o de antropofagia cultural, proposto pelos mentores da Semana de Arte Moderna de 1922, e eternizado metafórica e poeticamente no Manifesto Antropófago, de Oswald de Andrade, em 1928. A ideia era aquela: como reação à postura subserviente e colonizada da elite intelectual de então, o grupo vanguardista reunido em São Paulo propunha não replicar, mas sim absorver e reinterpretar influências estéticas estrangeiras de maneira original. Em outras palavras, comer, devorar o que vinha de fora, e transformar em algo novo, autenticamente brasileiro.
![Yearbook 2024 da Casa Vogue apresenta os melhores projetos de arquitetura e decoração do Brasil — Foto: Fran Parente | Direção de estilo Adriana Frattini | Estilo Lucas Freitas | Produção Manu Figueiredo | Styling Daniela Mônaco](https://cdn.statically.io/img/s2-casavogue.glbimg.com/1ae6Jt7K7hZW5Z0yNsL6xSoxz0U=/0x0:2500x3125/984x0/smart/filters:strip_icc()/i.s3.glbimg.com/v1/AUTH_d72fd4bf0af74c0c89d27a5a226dbbf8/internal_photos/bs/2024/k/S/3YBPocSy6O7fxym0BjJw/capa-instagram-459-anuario2024-1-.jpg)
Embora muito ligada ao contexto da época, a noção de “canibalizar” as referências de outros para digeri-las e convertê-las em algo inédito permanece relevante até hoje, entre outras razões, porque explica de maneira fácil o processo criativo de um sem-número de profissionais – incluindo arquitetos e designers de interiores, as estrelas habituais desta Casa Vogue o ano todo, e em especial neste Yearbook.
Há uma pegadinha aí, porém: o produto desse movimento antropofágico tende a ser mais original quanto mais variada for a dieta do comensal. Não dá para se alimentar sempre da mesma coisa, é preciso misturar. Aí está o segredo que permeia os projetos de 22 escritórios de arquitetura e design de ponta exibidos sob o olhar ativo de seus autores, e também as reportagens para lá de especiais que trazemos neste número, como só acontece quando chegamos à nossa edição mais longa e longeva do ano (mais páginas, mais tempo nas bancas).
![Construída na década de 1940, esta casa de 1,1 mil m², em São Paulo, passou por uma longa reforma sob o olhar criterioso do arquiteto Dado Castello Branco. As características originais da construção foram preservadas e os interiores ganharam uma decoração contemporânea, onde brilham os designs brasileiro e italiano — Foto: Fran Parente](https://cdn.statically.io/img/s2-casavogue.glbimg.com/gmeAuwoMJTmRM5MxF7h6S6EynyY=/0x0:2000x1334/984x0/smart/filters:strip_icc()/i.s3.glbimg.com/v1/AUTH_d72fd4bf0af74c0c89d27a5a226dbbf8/internal_photos/bs/2024/m/l/TBzeMPSIyYVoVR0MJwHA/img-5099.jpg)
Exemplo: só num mês como este temos espaço suficiente para radiografar – com a preciosa ajuda de Lili Tedde e Ruy Teixeira – o movimento de transformação pelo qual passa o bairro da Barra Funda, em São Paulo, talvez o mais vibrante polo criativo de design no Brasil hoje. Coincidentemente ou não, quem conhece a história da vizinhança sabe nomear um de seus mais ilustres habitantes, que lá viveu entre os anos 1920 e 1940: Mário de Andrade, outro artífice fundamental do nosso modernismo. Partiu dele uma das tentativas mais notáveis de delinear o que seria a identidade nacional brasileira: Macunaíma. Mesmo em sua complexidade, trazendo alguns traços facilmente apropriáveis por todos nós que nascemos nesta terra, nem o “herói sem caráter” conseguiu, porém, abranger em si todas as nuances da população e da cultura do país em seus diferentes territórios. Essa diversidade aparece, inclusive, no design que é produzido aqui, como bem mostra a reportagem Identidade nacional, de Regina Galvão.
Se há um designer que parece buscar incessantemente a construção de uma ideia de Brasil mais plural e multiétnico, ele se chama Marcelo Rosenbaum. Nada mais adequado, portanto, do que associar às duas histórias acima uma entrevista exclusiva com ele, feita por Winnie Bastian e fotografada por Franco Amendola, em que Rosenbaum discorre sobre suas imersões junto a povos originários de norte a sul do país.
De tantas interpretações e reflexões que o Yearbook é capaz de oferecer acerca da arquitetura e do design nacionais, uma delas é basilar: essa nossa é a terra da mistura – de gente, de estilos, de culturas. Eis a glória maior de ser brasileiro. Boa leitura!