• Sivia Albertini
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Destaques da 17ª Bienal de Arquitetura de Veneza (Foto: Divulgação/Bienal)

Pavilhão Central da Bienal de Veneza (Foto: Francesco Galli/Cortesia da Bienal de Veneza)

Na peste de 1348, que dizimou um terço da população europeia, as autoridades venezianas decretaram um período de isolamento preventivo de 40 dias a todos os navios vindos de fora e aos suspeitos de contágio: eis a origem do termo quarentena, cunhado em Veneza. Talvez não exista, no mundo, local mais apropriado para buscar respostas para a época atual.

Boas respostas, no entanto, dependem da arte de saber perguntar. Que o diga Hashim Sarkis, curador da 17ª Bienal de Arquitetura de Veneza (a primeira sob a sombra da Covid-19 ), aberta ao público no fim de maio após um ano de adiamento, em uma cidade estranhamente vazia. Para nortear o eixo crítico da exposição, Sarkis propôs a questão central: Como viveremos juntos? Um assunto urgente no contexto de emergência climática, polarização política, crise de refugiados, mudanças nas estruturas familiares, o movimento Black Lives Matter e, claro, a Covid-19. “Pode parecer coincidência que o tema tenha sido definido meses antes da pandemia”, observa. “No entanto, as razões que nos levaram a ele são as mesmas que provocaram essa situação.” Segundo Sarkis, não podemos mais esperar os políticos apontarem o caminho para um futuro melhor. “Enquanto a política divide e isola, a arquitetura pode oferecer maneiras alternativas de viver juntos.”

Destaques da 17ª Bienal de Arquitetura de Veneza (Foto: Divulgação/Bienal)

Arsenale de Veneza (Foto: Andrea Avezzù/Cortesia da Bienal de Veneza)

A mostra, uma construção coletiva de respostas à questão curatorial, organiza-se em cinco áreas: Among Diverse Beings, As New Households, As Emerging Communities, Across Borders e As One Planet. Abrigadas no Arsenale, antiga fábrica de cordas marítimas, e no Giardini, as 112 instalações assinadas por profissionais de 46 países alinhavam um discurso denso, rico e cenográfico: filmes, fotos, desenhos, plantas, maquetes, obras digitais e até edifícios temporários abordam desafios contemporâneos. Exemplos? Enfrentar o superdesenvolvimento na Amazônia com uma nova infraestrutura cívica (Somatic Collaborative), superar a polarização apostando em ambientes abertos (Philip Beesley & Living Architecture Systems Group/University of Waterloo School of Architecture), substituir moradias monótonas e caras por pré-fabricados criativos (LIN Architects Urbanists).

Os destaques de Casa Vogue

Destaques da 17ª Bienal de Arquitetura de Veneza (Foto: Divulgação/Bienal)

Exposição do Atelier Marko Brajovic (Foto: Divulgação/Bienal)

Entre os projetos especiais, há a exposição do SOS - Studio Other Spaces, fundado pelo artista Olafur Eliasson e o arquiteto Sebastain Behmann. Resultado da colaboração entre oito codesigners e 50 convidados, entre eles os brasileiros Atelier Marko Brajovic e Gringo Cardia, a Future Assembly imagina uma assembleia mais-que-humana inspirada na ONU. Entre os stakeholders, há animais, fungos, gases e outras entidades (vivas ou não) cujos direitos são tradicionalmente ignorados. A assembleia ocupa um tapete de 12 metros de diâmetro, tecido com plástico recuperado no oceano. Nas paredes em volta, a linha do tempo oferece inspiração, informações e bibliografia. 

Destaques da 17ª Bienal de Arquitetura de Veneza (Foto: Divulgação/Bienal)

Instalação Future Assembly (Foto: Divulgação/Bienal)

Nesta mesma chave, a instalação do arquiteto chileno Alejandro Aravena, uma construção arquetípica de troncos retirados de florestas latino-americanas, estabelece um espaço de diálogo onde chilenos e indígenas mapuches podem se encontrar e resolver disputas centenárias. “Pensamos em resgatar a tradição do parlay, antiga forma de negociação mapuche”, explica Aravena.

Destaques da 17ª Bienal de Arquitetura de Veneza (Foto: Divulgação/Bienal)

Pavilhão britânico (Foto: Divulgação/Bienal)

Quanto às participações nacionais, o pavilhão britânico, curado por Manijeh Verghese e Madeleine Kessler, aborda a privatização do espaço público desde o processo de enclosure, no século 18, que vedou aos agricultores o acesso às terras comuns, até a atual carência de locais de lazer para adolescentes ou mesmo de toaletes públicos.

Destaques da 17ª Bienal de Arquitetura de Veneza (Foto: Divulgação/Bienal)

Pavilhão japonês (Foto: Divulgação/Bienal)

Na escala da moradia, os japoneses despacharam para Veneza uma casa de madeira destinada à demolição. Enquanto algumas peças ganharam nova função (o telhado, montado no jardim, serve como banco), outras estão desmontadas dentro do pavilhão, numa reconstrução poética que indica caminhos tanto para prédios abandonados quanto para novos empreendimentos.

Destaques da 17ª Bienal de Arquitetura de Veneza (Foto: Divulgação/Bienal)

Pavilhão dos Estados Unidos (Foto: Divulgação/Bienal)

No pavilhão dos Estados Unidos, os curadores Paul Andersen e Paul Preissner em uma subestimada, porém relevante, contribuição da América para a arquitetura: as framed houses. Econômicas e flexíveis, as casas com estrutura de madeira representam hoje cerca de 90% das residências norte-americanas.

Destaques da 17ª Bienal de Arquitetura de Veneza (Foto: Divulgação/Bienal)

Pavilhão dos países nórdicos (Foto: Divulgação/Bienal)

O pavilhão dos países nórdicos, curado por Martin Braathen, do National Museum of Art, Architecture and Design de Oslo, e realizado por Helen&Hard, representa um cohousing em escala real, com áreas coletivas para culinária e lazer infantil. O tocante vídeo da artista Anna Ihle compartilha a transformação da sua casa, com a ajuda dos vizinhos, por ocasião da chegada de um bebê.

Destaques da 17ª Bienal de Arquitetura de Veneza (Foto: Divulgação/Bienal)

Pavilhão da Dinamarca (Foto: Divulgação/Bienal)

Ao lado, o pavilhão dinamarquês explora a ideia da interconexão, reaproveitando águas pluviais para regar alfazema, sálvia e outras ervas cultivadas para preparar chás aos visitantes. E, por falar em conexão, as relações entre humanos, animais e o meio ambiente aparecem também no pavilhão israelense, que evidencia como a exploração agrícola intensiva necessária para o crescimento econômico no século passado teve consequências nefastas para o ecossistema.

Destaques da 17ª Bienal de Arquitetura de Veneza (Foto: Divulgação/Bienal)

Pavilhão de Israel (Foto: Divulgação/Bienal)

Participação brasileira

Destaques da 17ª Bienal de Arquitetura de Veneza (Foto: Divulgação/Bienal)

Pavilhão brasileiro (Foto: Divulgação/Bienal)

Utopias da vida comum é o título da mostra do Brasil. Curada por Arquitetos Associados e Henrique Penha, examina o papel dos arquitetos na geração de visões utópicas, por vezes inatingíveis. O núcleo Futuros do passado foca em ensaios fotográficos de dois projetos icônicos da arquitetura moderna: o então inovador Pedregulho (1947), conjunto residencial carioca assinado por Affonso Reidy, e a Plataforma Rodoviária de Brasília (1957) de Lucio Costa. Em Futuros do presente, dois vídeos refletem utopicamente sobre novas formas de convivência nas metrópoles contemporâneas, abordando a reocupação de edifícios centrais abandonados e interpretando a ideia de apropriação dos rios concebida pelo projeto Metrópole Fluvial-USP.

Destaques da 17ª Bienal de Arquitetura de Veneza (Foto: Divulgação/Bienal)

Lina Bo Bardi (Foto: Bob Wolfenson/Cortesia Instituto Bardi)

Porém, o grande trunfo do Brasil é o prêmio Leão de Ouro Especial ad memoriam conferido a Lina Bo Bardi, autora de marcos como o MASP, o Sesc Pompeia e a Casa de Vidro. “A carreira de Lina como designer, editora, curadora e ativista nos lembra a função do arquiteto como coordenador, e, mais importante, como criador de visões coletivas. Ela também encarna a tenacidade da arquitetura em tempos difíceis e sua capacidade de preservar criatividade, generosidade e otimismo.”

Os cidadãos de Veneza ergueram dois monumentos para comemorar o fim da pestilência: a Igreja do Redentor (1577) e Santa Maria da Saúde (1897). Ainda hoje, todo ano duas romarias partem delas para recordar a importância do evento. O que seremos capazes de construir quando terminar esta pandemia?