• 10/08/2020
  • POR ISABEL MERGALEJO
Atualizado em
10 objetos de design feitos com restos de comida que você jogaria no lixo (Foto: Divulgação)

Vasos de Shellworks, bioplástico feito a partir da casca de crustáceos (Foto: Divulgação)

Copos feitos com casca de batata, xícaras de café com borras, leite transformado em tigelas ou pratos feitos de cascas de crustáceos, restos de comida, tudo o que jogamos sem remorso no lixo pode compor novas matérias-primas, principalmente bioplásticos. Utópico ou visionário? Um pouco dos dois. Embora esses projetos ainda estejam em fase de desenvolvimento nas mãos de universitários ou jovens designers recém-formados, como o alemão Basse Stittgen que, para chamar a atenção para o desperdício de alimentos, criou porta-ovos cozidos e pratos com a casca de ovos podres no projeto “How do you like your eggs?”.

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Objetos da designer Tessa Silva feito de sobras de leite (Foto: Divulgação)

Stittgen reconhece que, mais do que uma alternativa real, é uma forma de denunciar e criar uma narrativa sobre consumo e desperdício. Ele já havia feito isso antes: seu projeto de graduação na renomada Design Acadmy Eindhoven consistia em uma série de objetos decorativos feitos com sangue de animais recolhido em matadouros. “Não precisamos apenas mudar os materiais, mas também nosso uso e o comportamento enquanto consumidores e produtores”, diz.

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Porta-ovo cozido e pratos feitos com casca de ovos podres do projeto “How do you like your eggs?”, de Basse Stittgen (Foto: Divulgação)

Stittgen coleta o produto localmente, separa as claras e as gemas e esmaga a casca em pedaços. Após o cozimento, a albumina da clara se transforma em um biopolímero. Ele foi convidado para participar da exposição “Food: Bigger than the Plate”, em cartaz de maio a outubro de 2019 no Victoria & Albert Museum de Londres, mostrando o papel importante da comida no design. Uma parte da exposição foi dedicada a projetos a partir de resíduos. “A intenção de vários dos materiais apresentados era provocar. Kosuki Araki, por exemplo, misturou resíduos com urushi (laca japonesa) para fazer louças delicadas que destacam a abordagem destrutiva e desperdiçadora que prevalece nas sociedades industriais modernas em relação à natureza”, explica Catherine Flood, uma das curadoras. “Nos Estados Unidos e na Europa, mais da metade do que é produzido é desperdiçado no caminho entre a fazenda e a mesa, uma enorme quantidade de recursos naturais e energia perdidos.”

"Não precisamos apenas mudar os materiais, mas também nosso uso e o comportamento enquanto consumidores e produtores""

Basse Stittgen
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Kosuki Araki criou para a exposição do V&A louças refinadas utilizando restos de comida misturados com laca japonesa (Foto: Divulgação)

Uma abordagem menos de denúncia e mais realista é a de quatro estudantes do Royal College of Art de Londres: Ed Jones, Insiya Jafferjee, Amir Afshar e Andrew Edwards, que desenvolveram um equipamento que transforma as conchas de moluscos em bioplástico reciclável que, à primeira vista, se parece com papel translúcido. O Shellworks é obtido com a mistura de vinagre e quitina, um biopolímero fibroso presente nos exoesqueletos dos crustáceos e também em cogumelos. A ideia é aproximar quem cria de métodos para utilizar tais materiais em seus projetos, avançando na chamada economia circular, termo que aparece com frequência nesse tipo de iniciativa.

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Parblex, material que nasce das cascas de batata, usado pela Cubitt’s Eyewear em armações para óculos (Foto: Divulgação)

Também de caráter industrial, a Chip(s) Board nasceu em Londres no ano de 2017, quando seus fundadores Rowan Minkley e Robert Nicoll começaram a pesquisar como transformar cascas de batata em plástico sustentável. Após várias tentativas e erros, nasceu o Parblex, já usado pela Cubitt's Eyewear para a fabricação de armações para óculos. A start up fez uma parceria com a McCain Foods, empresa britânica de alimentos congelados, para o fornecimento de cascas, para tornar o preço tão competitivo quanto o do plástico feito a partir do petróleo. “Coletamos esse resíduo simples e transformamos em algo valioso, fechando o ciclo produtivo. O Parblex é apenas a primeira tentativa de reduzir os danos ao planeta causados por produtos descartáveis e de consumo rápido. Acreditamos na produção local de materiais usando o tipo de descarte mais abundante em cada área para reduzir o impacto do transporte”, dizem.

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As xícaras da Kaffeeform, de Julian Lechner, feitas de grãos de café reciclados (Foto: Divulgação)

As xícaras da Kafeeform, feitas a partir de grãos de café reciclados, são outro resultado final desse esquema circular. Julian Lechner levou três anos para desenvolver a fórmula deste material que pode ser lavado na lava-louças e cuja produção já é consistente. Os grãos são recolhidos de bicicleta em diferentes cafés de Berlim, secos e tratados na oficina. Em seguida, são compactados e ganham forma, para voltarem para a oficina para serem polidos e dali saem para serem vendidos nos mesmos cafés. Seu bom desempenho e apelo estético fez da marca uma item desejado nas lojas de museus e também no site da marca, que não para de receber pedidos.

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Vasos Protein feitos com a caseína do leite, projeto de Tessa Silva(Foto: Divulgação)

Às vezes não é necessário inventar nada, basta resgatar. Como fez Tessa Silva para seu projeto final de design, também no Royal College of Art de Londres, usando plástico de caseína, feito a partir da proteína do leite de vaca, para produzir de forma artesanal esculturas, objetos e móveis. “A caseína foi produzida comercialmente no início do século 20 para fazer pequenos objetos como pentes, agulhas de tricô e botões, mas substituída por plásticos sintéticos", explica a designer anglo-brasileira. “Meu material vem daí, mas evoluiu para se tornar um produto diferente, mesmo que ainda use como base o leite desnatado.” A designer, que vende vasos feitos com esse material em seu site, reutilizou leite oriundo de produção orgânica, também com o objetivo de alertar sobre a superprodução e o valor do produto. Quanto à abordagem prática: “Muitas marcas de varejo me pediram amostras e estou trabalhando em várias colaborações até o final do ano”, conta. “Acredito e tenho fé de que produzir a partir dos desperdícios se tornará uma obrigação para grandes redes. Por enquanto, há um interesse promissor”.

"Acredito e tenho fé de que produzir a partir dos desperdícios se tornará uma obrigação para grandes redes. Por enquanto, há um interesse promissor""

Tessa Silva
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Marina Tex, criado por Lucy Hughes e vencedor do Premio James Dyson 2019, pode ter aplicações na indústria alimentícia, substituindo o plástico convencional (Foto: Divulgação)

O que começou como denúncia e utopia está a caminho de ser tornar uma grande realidade. A Ceresana, empresa líder em pesquisa de mercado especializada nos setores de plásticos e embalagens, publicou no início de 2020 um estudo sobre a evolução de dois grupos dos chamados bioplásticos, que abrangem tanto os biodegradáveis, que podem ser compostados, e os de base biológica, produzidos a partir de fontes renováveis. Os biodegradáveis, que responderam por 56% do total de bioplásticos em 2018, crescerão cerca de 7% ao ano até pelo menos 2026, enquanto os não-biodegradáveis, como o PET, verão queda em seu consumo na casa de 5% ao ano. “Acredito no grande potencial dos bioplásticos e mais ainda depois do COVID-19. Um mercado próspero de investimentos de impacto social surgiu e cresceu, e muitas start ups que trabalham com biomateriais estão atraindo investimentos, embora em nível mais modesto que biocombustíveis ou substitutos vegetais para a carne”, diz Catherine Flood. O Marina Tex pode ser um desses casos. Vencedor do James Dyson Award em 2019, é um bioplástico compostável caseiro feito a partir de resíduos da indústria da pesca. Em sua fórmula orgânica, não entra nenhum produto químico nocivo, se biodegrada em apenas seis semanas e é tão resistente quanto o tradicional LDPE usado nas sacolas plásticas comuns. Sua inventora, Lucy Hughes, também estudante, da Universidade de Sussex, que depois de mais de 100 experimentos encontrou essa ótima alternativa que ainda não está no mercado.

10 objetos de design feitos com restos de comida que você jogaria no lixo (Foto: Divulgação)

Fernando Laposse desenvolveu o Totomoxtle, um projeto social e de biodiversidade no qual transforma a palha do milhp em marchetaria (Foto: Divulgação)

"A comida é uma das ferramentas mais poderosas para moldar o mundo em que vivemos, tem a ver com a forma como criamos a sociedade, a cultura e o lazer e como estabelecemos nossa relação com o mundo natural", afirmaram, durante a inauguração da exposição do V&A, suas curadoras Catherine Flood e May Rosenthal Sloan. "Fomos motivadas pela mudança experimentada pelos designers: fazer mais por um mercado já saturado e intervir significativamente no mundo com alimentos", pontuou Sloan. O mexicano Fernando Laposse, formado pela Central Saint Martins de Londres, é um bom exemplo disso, porque por trás de seu projeto Totomoxtle há uma profunda reflexão ecológica e social. Com a palha que cobre a espiga de milho, ocorreu-lhe criar uma superfície de marchetaria na qual apenas as variedades mexicanas tradicionais são utilizadas. A compra da matéria-prima incentiva os agricultores a se manter no cultivo tradicional de milho, preservando assim a rica biodiversidade que se encontra em queda devido à hegemonia de grandes grupos industriais que impõem grãos geneticamente modificados.

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Mesa de Fernando Laposse, do projeto Totomoxtle, que recicla palha de milho (Foto: Divulgação)

Fernando trabalha com os moradores de Tonahuixtla, uma pequena cidade no estado de Puebla, com a ajuda de um banco de sementes. As mulheres são responsáveis por transformar o vegetal no precioso material utilizado para a fabricação de peças e superfícies de alta decoração vendidas em galerias de design. Decididamente, a utopia e as boas intenções estão no caminho certo, graças ao empreendedorismo de poucos. Se conseguirem o apoio por instituições, leis e regulamentos, o que agora chamamos de lixo, logo não será mais.

Tradução: Adriana Mori

*Matéria originalmente publicada na AD Espanha