• 16/10/2017
  • Por Beta Germano
Atualizado em
Afrodescendência e a formação do Brasil na arte (Foto: Divulgação)

Sacudimentos Ayrson Heráclito (Foto: Divulgação)

É um fato: O Brasil recebeu mais africanos através do tráfico de escravos do que os portugueses que pisaram no país para colonizá-lo. Ou seja: é indiscutível que a população negra e a cultura que viajou com ela seja a base da formação do nosso país. A presença de símbolos e signos africanos na cultura popular brasileira realmente é clara e marcante, mas permanece relativamente pequena nas artes plásticas. No entanto, isso está mudando aos poucos. Na palestra Afrodescendência e a formação do Brasil na arte, no Casa Vogue Experience, vamos trazer três artistas que estão contribuindo para reverter este cenário: Ayrson Heráclito, Jaime Lauriano e Ivan Grilo.

E MAIS: Confira a programação completa do Casa Vogue Experience 2017

Afrodescendência e a formação do Brasil na arte (Foto: Divulgação)

Sacudimentos Ayrson Heráclito (Foto: Divulgação)

Artista, pesquisador da diáspora africana no Brasil e professor de artes visuais na Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, Ayrson Heráclito traz para o campo das artes plásticas as ricas relações entre a África e o Brasil, explorando conexões políticas, sociais e culturais nos dois territórios – com foco particular na história da nossa escravidão e das religiões afro-brasileiras (ele se interessa por deuses originalmente provenientes da religião ioruba africana e como seus códigos são construídos através de alimentos).

Afrodescendência e a formação do Brasil na arte (Foto: Divulgação)

Sacudimentos Ayrson Heráclito (Foto: Divulgação)

Os rituais de cura são os fios condutores para contar sua versão da história do Brasil. Ele fala sobre o “corpo cultural baiano” como um corpo marcado pelo “holocausto da escravidão” e, com suas fotos, vídeos e performances, propõe uma reflexão sobre o pertencimento negro para a formação da cidadania brasileira. Na performance Transmutação da Carne, apresentada na mostra Terra Comunal: Marina Abramovic + MAI, trouxe à tona a dor da escravidão negra do Brasil colonial e do corpo torturado com carnes de charque  – elas viraram roupas dos performances que eram marcadas à ferro pelo artista (como marcação de boi mesmo!). “O ato físico de marcar um corpo a ferro em brasa trouxe e despertou memórias muito antigas. Toca em uma ferida que deve ser transmutada e estetizada pela arte, mas nunca esquecida”.  


E ele tenta (de todas as formas) sanar esta ferida. Na performance Buruburu, por exemplo, ele “limpa” o corpo dos visitantes com pipoca ( flor do doburu, em ioruba, ou “flor do Velho”), alimento de Omulu – o deus que comanda as doenças e, consequentemente, a saúde.
 


Já em O Sacudimento da Casa da Torre, em cartaz na mostra Viva arte viva (a principal da Bienal de Veneza de 2017), o artista se vestiu de branco para “purificar” uma construção de 1550, em Mata de São João, na Bahia, que foi sede do maior latifúndio da história do Brasil e gênese da sociedade escravocrata brasileira. Como? Ele e outros performances passam galhos e folhagens de romãzeira, aroeira, espada-de-são-jorge e outras plantas mágicas pelos espaços hoje abandonados.

Afrodescendência e a formação do Brasil na arte (Foto: Divulgação)

Ivan Grilo (Foto: Divulgação)

O ritual vem do candomblé jejê, mas ganha um questionamento muito além de crenças religiosas. Heráclito sacude, nesta performance, um único egum ( espirito mal assombrado ou alma penada no candomblé) que assombraria o local: o senhor de escravos e, com ele, toda a violência do antigo sistema social da Bahia que, segundo o artista, irradiada até os dias de hoje, na pobreza e na desigualdade social de todo o país. “Trata-se de um ritual de ativação e apaziguamento de nosso passado colonial”, explica. A mesma performance foi realizada na outra margem do Atlântico, mais especificamente na última porta cruzada pelos africanos escravizados e transportados ao Brasil dando origem ao trabalho O Sacudimento da Maison des Esclaves.

Afrodescendência e a formação do Brasil na arte (Foto: Divulgação)

Ivan Grilo (Foto: Divulgação)

Vencedor do último prêmio Marcantonio Vilaça, Jaime Lauriano também mergulha fundo na violenta história colonial do Brasil e suas consequências na sociedade atual. “A arte tem o poder de contar outras histórias diferentes da oficial e é isso que eu tenho buscar”, explica o artista que começou sua pesquisa focada no período da ditadura, mas rapidamente investiu nos estudos sobre os mecanismos portugueses e a escravidão e como este passado mudou a forma de sociabilização brasileira atual – exclusão do povo negro, noção de propriedade privada ou os ciclos nacionais criados na época – e o corpo do cidadão contemporâneo. “Há um interesse maior pelo corpo negro, pois sou negro e estudo estes efeitos no meu próprio corpo”, esclarece.

Afrodescendência e a formação do Brasil na arte (Foto: Divulgação)

Ivan Grilo (Foto: Divulgação)

Ele também usa a religião como linguagem para falar da brutalidade da escravidão. “A umbanda é uma religião afro-brasileira e só existe por conta da deportação dos africanos escravizados. A formação do Brasil é feita a partir dessa violência”, explica o Jaime que utiliza signos da umbanda para refazer o mapa do país e redesenhar as rotas dos navios negreiros.  Como não acredita na história contada por um homem só, ele convidou diferentes pessoas para bordar uma versão da bandeira do Brasil para a série Bandeira Nacional.

Afrodescendência e a formação do Brasil na arte (Foto: Divulgação)

Jaime Lauriano (Foto: Divulgação)

Já na obra Nesta terra, em se plantando, tudo dá, Jaime usa o pau-brasil como símbolo da nação: plantou uma muda dentro de uma caixa-estufa de madeira que, para crescer, vai aniquilar o recipiente. “Ao romper o suporte, a planta estará fadada à destruição, condicionando sua existência ao aprisionamento. Essa tentativa de o Estado conter toda manifestação social acaba estimulando a catástrofe. Foi assim na escravidão, na ditadura militar. Dois momentos em que o Estado quis intervir diretamente no corpo da população, sancionando leis, cerceando deslocamentos, torturando. A planta é um pouco isso: o cerceamento do corpo vivo”, explica o artista.

Afrodescendência e a formação do Brasil na arte (Foto: Divulgação)

Jaime Lauriano (Foto: Divulgação)

Ivan Grilo também pesquisa os signos e lendas da nossa história de escravidão para refletir sobre o Brasil de hoje. Na série Estudo para Movimentos Circulares pesquisa como a gira da umbanda foi mal interpretada pelos portugueses. “Quando os africanos escravizados chegavam aqui eram obrigados a rodar em torno deles mesmos para esquecer todo o passado e referências culturais da África, mas para eles a gira é um momento de se reencontrar”, explica Ivan.

Afrodescendência e a formação do Brasil na arte (Foto: Divulgação)

Jaime Lauriano (Foto: Divulgação)

Ele também tem alguns trabalhos com os quais explora a história de figuras lendárias como Chico Rei – diz a lenda (ninguém sabe se ele realmente existiu!) que ele era o rei de uma tribo no reino do Congo e foi escravizado perto de Ouro Preto, mas conseguiu comprar sua alforria escondendo ouro nos cabelos. Dizem que Chico comprou a liberdade de outros negros da mesma forma, tornando-se “rei” por aqui também! Numa foto do personagem Ivan pintou pontinhos dourados, como se fossem as estrelas de ouro da Bandeira Nacional no céu do Rio de Janeiro em 1889.

Também interessado em histórias não oficiais, o artista também vêm pesquisando relatos sobre mulheres negras no país como Dandara e uma possível versão feminina de Chico Rei. Na instalação Segundo estudo para Heroína não é um pó branco é dedicada às heroínas negras que pensaram a liberdade!

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