• 07/07/2020
  • Luiza Queiroz | Foto Getty Images
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Located at the entrance to Ibirapuera Park in Sao Paulo, Brazil, the Monument to the Flags is a work of art executed by Italian-Brazilian sculptor Victor Brecheret.The sculpture has 240 granite blocks, each weighing about 50 tons, with fifty meters long (Foto: Getty Images)

Localizado na entrada do Parque Ibirapuera, em São Paulo, este é o Monumento às Bandeiras (Foto: Getty Images)

“Por que esse apego tão grande a estátuas e monumentos?”, questiona a antropóloga Karen Shiratori. “De alguma forma, isso é o espelho da nossa imagem como sociedade que se estrutura no genocídio”, defende. Shiratori, é claro, não se refere a qualquer tipo de estátua ou monumentos: ela fala daqueles que prestam homenagens à figuras escravocratas e que, hoje, são bastante criticados. O questionamento a respeito da legitimidade de ter este tipo de símbolo exposto em locais públicos ganhou força com as manifestações antirracistas que tomaram conta dos Estados Unidos e de diversos países europeus. Não faltam exemplos: em Bristol, no Reino Unido, manifestantes derrubaram a estátua do traficante de escravos Edward Colston. Falas racistas do primeiro-ministro Winston Churchill também foram lembradas e sua estátua em Londres amanheceu pichada. Em Bruxelas, na Bélgica, uma estátua do rei Leopoldo II foi coberta de tinta vermelha por manifestantes  — o monarca é lembrado como um dos personagens mais sanguinários da História, por ter promovido o violento processo de colonização do Congo.

No Brasil, o debate também ganha força e traz questionamentos importantes a respeito da História, do presente e do futuro da sociedade brasileira. Para discutir a questão, Casa Vogue conversou Shiratori, antropóloga e pesquisadora do Centro de Estudos Ameríndios (CEstA) da Universidade de São Paulo (USP); Cássia Caneco, educadora do Instituto Pólis; e com a deputada Mônica Francisco (PSOL-RJ), co-autora do projeto de lei Nº 2806/2020, que visa proibir homenagens a escravocratas e a eventos históricos ligados ao exercício da prática escravista no Estado do Rio de Janeiro; e Tainá de Paula, arquiteta e urbanista especialista em Patrimônio Cultural pela Fundação Oswaldo Cruz.

"O que é um patrimônio se não um legado daquilo que eu quero postergar para o futuro? O que vejo nas cidades hoje, quando olho para estátuas racistas no espaço urbano, é que existe uma necessidade de perpetuação do modelo do racismo, do modelo de exclusão de negros e negras na sociedade"

Tainá de Paula

"Essas estátuas ficam provando o tempo inteiro que o espaço público não é tão público assim. Quando temos a oportunidade de intervir sobre elas, conseguimos de fato pôr em prática o nosso direito à cidade"

Cássia Caneco

Quais são os principais monumentos no Brasil hoje que prestam homenagens a escravocratas?

O debate no país gira em torno, principalmente (mas não unicamente), das estátuas que retratam os bandeirantes, homens da região do atual Estado de São Paulo que, a partir do século XVI, realizaram diversas incursões no território brasileiro em busca de ouro, pedras preciosas, e outros recursos minerais. Mas os bandeirantes também atuavam muito fortemente no aprisionamento de indígenas para escravização e na destruição de quilombos. Fontes históricas não faltam para descrever o inúmeros assassinatos e estupros de indígenas e pessoas escravizadas que cometeram, inclusive contra mulheres, crianças, e idosos. Por isso, hoje considera-se que a história dos bandeirantes está intimamente relacionada à história do genocídio da população indígena no Brasil. “O extermínio que ocorreu aqui com a chegada dos invasores foi o maior genocídio da história do planeta: 90% da população indígena foi exterminada nos primeiros séculos da colonização. Milhões de pessoas morreram. Para se ter uma ideia: houve uma pequena glaciação na Europa no século XVII [uma espécie de mini “Era do gelo”]. Existem teorias que dizem que um dos fatores para essa mudança climática foi o extermínio dos indígenas nas Américas, de tão extenso que foi o genocídio”, diz Shiratori.

Assim, as estátuas dos bandeirantes Borba-Gato e Anhanguera, em São Paulo, bem como o famoso Monumento às Bandeiras, são as mais criticadas. O Monumento ao Duque de Caxias, militar que viveu no século XIX e comandou as tropas brasileiras na Guerra do Paraguai, também é um dos mais problemáticos já que o militar era escravocrata e, além disso, foi responsável por comandar a repressão às revoltas e rebeliões contra a monarquia da época. Sua figura também é associada ao assassinato de indígenas e negros.

“Esses monumentos enaltecem uma herança colonial. É uma história que a branquitude resolveu contar e não só contar, mas impôr. E se considerarmos os planos da cidade, com todo esse processo de gentrificação, ele é exatamente isso. Tem a ver com demolições, com as remoções, com os despejos. Com tudo isso vai se fazendo uma escolha histórica de qual história a gente vai contar” — Cássia Caneco, do Instituto Pólis

Por quê é importante retirar estes monumentos do espaço público?

"Isso não é uma discussão sobre patrimônio pura e simplesmente. Devemos discutir o que fazer com determinado patrimônio em um contexto de luta antirracista"

Karen Shiratori

"As cidades que perpetuam modelos de exclusão são cidades, em sua maioria, negligenciadas no seu cuidado, tanto individual quanto coletivamente."

Tainá de Paula

Para as especialistas, a homenagem à figuras escravocratas ignora o sofrimento das milhões de pessoas que foram vítimas destas mesmas figuras e de todo o processo escravocrata-colonial que foi a base da sociedade brasileira durante séculos, e que tem reflexos até hoje. O fato de estarem expostas em um determinado espaço público levanta o questionamento: o quão público é aquele espaço? 

A arquiteta e urbanista Tainá de Paula ressalta ainda que este tipo de monumento faz com que uma grande parte da população brasileira não se sinta representada no espaço urbano, o que tem efeitos bastante prático na relação que tais indivíduos desenvolvem com aquela cidade em questão. "As cidades que perpetuam modelos de exclusão são cidades, em sua maioria, negligenciadas no seu cuidado, tanto individual quanto coletivamente", diz. Confira o que pensam as especialistas:

"Os monumentos racistas contam a história do colonizador. [Isso nega e prejudica o acesso à cidade] porque este tipo de monumento arranca a ampla maioria da população do exercício público de construir também essa cidade. Existe um debate interessante no urbanismo nórdico sobre como crianças conseguem estabelecer suas primeiras relações com a infância e o espaço público. Se existe, na ampla maioria do espaço urbano, figuras com as quais essa criança se identifica, figuras escultóricas que ela inclusive possa trocar e vivenciar, espaços públicos que dialoguem com ela, esta criança vai ser obrigatoriamente um adulto que se entende enquanto sujeito público e consegue estabelecer uma relação positiva e propositiva com esse ambiente. Se isso é negado desde a primeira infância, muito provavelmente ele será um sujeito adulto inversamente proporcional a isso: ele vai jogar lixo na rua, vai ter rompantes de vandalismo e vai ter um entendimento de que existe uma separação clara entre ele e este lugar" — Tainá de Paula, arquiteta e urbanista

“Essas estátuas ficam provando o tempo inteiro que o espaço público não é tão público assim. Quando temos a oportunidade de intervir sobre elas, conseguimos de fato pôr em prática o nosso direito à cidade. Precisamos poder intervir sobre isso, retirar ou fazer algo sobre elas, para disputar a cidade material e simbolicamente, já que elas passam uma mensagem o tempo inteiro” — Cássia Caneco, do Instituto Pólis

“Este tipo de ação é fundamental para recuperar a memória daqueles que foram invisibilizados nesse processo de homenagens a indivíduos que extinguiram populações inteiras e promoveram genocídio. Quando olhamos a história do Brasil e da América Latina, vemos um processo de extermínio de etnias inteiras, de apagamento e invisibilização daqueles que foram subjugados por essas figuras. É importante que essas figuras, que foram alçadas ao patamar de mitos, sejam revisionadas.” — Deputada Mônica Francisco (PSOL-RJ)

“Isso não é uma discussão sobre patrimônio pura e simplesmente. Devemos discutir o que fazer com determinado patrimônio em um contexto de luta antirracista.O que me salta aos olhos é o posicionamento de diversos intelectuais contra a retirada dos monumentos. Essa parcela crítica trata isso como se fosse uma questão apenas de patrimônio urbano. Isso está embutido em uma visão de história como sendo estática; como se não fosse uma narrativa em disputa” — Karen Shiratori, antropóloga

“O que é mais importante nesse momento é essa reflexão sobre os espaços públicos não serem públicos de fato. Eles estão em disputa o tempo inteiro. A importância do movimento negro educador ao pedir a retirada desses monumentos racistas é o fato de que isso acentua a possibilidade de as pessoas poderem intervir nas cidades e nas histórias que elas contam. Só a partir disso vamos conseguir construir cidades em que as pessoas consigam se ver e se representar com diversidade” — Cássia Caneco, do Instituto Pólis

Pode haver espaço nas cidades brasileiras para monumentos escravocratas? (Foto: Mike Peel)

Monumento a Duque de Caxias, em São Paulo (Foto: Mike Peel)

Mas estas figuras não são parte da nossa História?

Sim, são. Mas isso não significa que precisem estar representados como figuras heróicas em um espaço público, por meio de monumentos que contam uma visão bastante parcial (e questionável) a respeito da História do Brasil. Diversos especialistas das áreas de humanas defendem, por exemplo, mover estas estátuas para Museus, onde fiquem expostas junto a textos explicando de maneira mais completa quem foram e as diversas consequências de todas as suas ações.

Para Karen Shiratori, no entanto, o debate a respeito do que fazer com estas estátuas é algo secundário, e o foco no momento deveria ser sua retirada e o debate mais amplo sobre racismo no Brasil. Segundo ela, o simples argumento de que estas são figuras históricas não é justificativa para manter esses monumentos expostos em praças públicas.  “Quando a gente fala que é só uma questão de estátuas e de patrimônio, não estamos vendo que é uma questão de olhar para o nosso passado e para a nossa herança de violência. E podemos expandir isso para outros episódios da nossa História que são muito mal resolvidos, como a Ditadura Militar. A gente tende a colocar isso como sendo só uma questão de patrimônio para não ter que encarar um problema muito maior e que é constituinte da nossa sociedade: a herança e a violência colonial, que moldaram nossa sociedade de forma muito profunda”. Confira o que pensam as demais entrevistadas:

"A mera demolição [destas estátuas] não vai construir e nem vai reconstruir o significado racial que elas já conferiram ao espaço urbano. E o mero apagamento não necessariamente vai construir a necessidade de reflexão e muito menos a reflexão em si. Então eu sou muito adepta a construirmos espaços de reflexão da memória para que fatos que ocorreram no passado não se perpetuem no futuro" — Tainá de Paula, arquiteta e urbanista

“O que temos agora é simplesmente a exposição destas pessoas. Muitos não sabem o que estas figuras representam, mas eles lêem aquela imagem de grandes proporções e vão criando no seu imaginário representações em que a figura branca é glorificada. É possível, sim, manter essas figuras, se considerarmos a possibilidade de um museu. Mas que sejam imagens cuidadas, pois evocam momentos de dor e de sofrimento sobretudo. Então, se não temos o cuidado em tratá-las, vamos carregando essa História e criando imaginários contaminados” — Cássia Caneco, do Instituto Pólis

“[Precisamos] revisionar este processo de construção histórica extinguindo estas figuras do convívio público — deixemos que elas fiquem guardadas em museus, por exemplo — para que se passe a limpo esta memória de dor, e para que isso não se repita. É impossível que na nossa sociedade hoje nós continuemos fazendo homenagens a falsos mitos que produziram dor, morte e extermínio” — Deputada Mônica Francisco (PSOL-RJ)

Qual a diferença entre retratar um período histórico e prestar uma homenagem a figuras escravocratas?

“O limite é cometer genocídio, escravizar e assassinar. A gente pode revisitar e debater como se deu a Independência do Brasil, por exemplo, debater se foi como é retratado nos quadros. Agora, quando se trata de genocídio, assassinato e escravização, eu acho que isso coloca um limite bastante palpável para esse revisionismo histórico. Nós temos números, nós temos dados a respeito das pessoas que foram escravizadas aqui. Então quando temos estes dados, é disso que temos que lembrar” — Karen Shiratori, antropóloga

"O que acontece com as estátuas de genocidas e de escravistas tradicionais é que estas figuras ocuparam espaços de poder durante suas vidas. E as figuras históricas que construíram e forjaram a história do País de forma escravocrata foram catapultados a mártires e a pessoas de representação na sociedade apenas pelo papel econômico e social que eles estabeleceram em vida. Eu acho que nós amadurecemos de um ponto de vista histórico enquanto sociedade para entender esse processo e hoje querer rechaçá-lo. Garcia D'Ávila não pode ser nome de rua. O genocidas não podem ser catapultados como sujeitos fundamentais. Eles são parte da mancha histórica da construção de um País que se estabeleceu a partir da violência contra negros e negras. Não existe demérito em se aprender com passado. Mas é muito importante perceber o demérito da negação disso como um problema" — Tainá de Paula, arquiteta e urbanista

“Estas figuras não deveriam estar em praça pública, já que isso gera uma mensagem. Tem toda uma mensagem das figuras, nas formas como elas estão colocadas, nos lugares em que elas estão colocadas, nos nomes das ruas. No caso destas imagens, bustos e estátuas, [propomos] que elas sejam figuras vistas como parte da história da nossa sociedade, do projeto de construção de nação que a gente precisa passar a limpo, e que elas estejam em museus para serem observadas, estudadas, analisadas. [Que estejam em museus] para serem conhecidas, para que se reconheçam seus crimes e para que não os pratiquemos mais” — Deputada Mônica Francisco (PSOL-RJ)

"É impossível que na nossa sociedade hoje nós continuemos fazendo homenagens a falsos mitos que produziram dor, morte e extermínio"

Deputada Mônica Francisco (PSOL-RJ)
Pode haver espaço nas cidades brasileiras para monumentos escravocratas? (Foto: Divulgação)

Tainá de Paula é arquiteta e urbanista, especialista em Patrimônio Cultural e co-Presidente do IAB-RJ 

Pode haver espaço nas cidades brasileiras para monumentos escravocratas? (Foto: Divulgação)

Karen Shiratori é antropóloga e pesquisadora do Centro de Estudos Ameríndios (CEstA) da Universidade de São Paulo

Pode haver espaço nas cidades brasileiras para monumentos escravocratas? (Foto: Divulgação)

Mônica Francisco é cientista social e deputada estadual pelo PSOL-RJ 

Pode haver espaço nas cidades brasileiras para monumentos escravocratas? (Foto: Divulgação)

Cássia Caneco é educadora do Instituto Pólis e produtora cultural do coletivo Periferia Preta

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