As suspeitas sobre as circunstâncias de 200 mortes de voluntários de um estudo da proxalutamida no Amazonas atraíram atenção de organismos internacionais. A Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (Unesco) divulgou nota externando "profunda preocupação” com a denúncia que a Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep) fez sobre as mortes à Procuradoria-Geral da República no mês passado.
A manifestação pública ocorreu por meio da Redbioética-Unesco, divisão voltada para a defesa e supervisão do tema na América Latina e no Caribe. A resolução foi aprovada na última quinta-feira. A entidade diz que é essencial que haja uma "investigação profunda a respeito dos óbitos, que não foram comunicados espontaneamente pelos pesquisadores à comissão de ética.
“Consideramos que este poderia ser um dos episódios de infrações à ética em pesquisa e violação de direitos humanos dos voluntários mais graves e sérios da história da América Latina”, disse a Unesco no comunicado.
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Para a organização, é “inaceitável que esse tipo de irregularidade, se comprovada, ocorra em 2021”. No texto, a Redbioética-Unesco conclama a comunidade brasileira e internacional a se unirem para “dar seguimento, disseminar e acompanhar essa denúncia, que envolveria uma grave violação dos direitos dos voluntários, assim como inúmeras irregularidades nos procedimentos éticos e na realização dos ensaios de acordo com o marco regulatório ético internacional vigente”.
Segundo a Redbioética-Unesco, entre as normas desrespeitadas pelo relato da Conep estão a Declaração de Helsinque, a Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos de 2005 e as Diretrizes Éticas Internacionais para pesquisas relacionadas à saúde envolvendo direitos humanos do Conselho das Organizações Internacionais de Ciências Médicas de 2016, elaborado em colaboração com a Organização Mundial da Saúde (OMS). "Nenhuma emergência sanitária nem contexto político ou econômico justifica acontecimentos como os que vieram a público", diz a Unesco.
A proxalutamida é um remédio experimental desenvolvido para o câncer de próstata desenvolvido pela chinesa Kintor Pharmaceuticals. Vem sendo defendida como promessa de cura pelo presidente Jair Bolsonaro, mas nunca foi usada formalmente contra qualquer doença, nem mesmo a Covid-19, em nenhum país.
O estudo do Amazonas foi realizado no início deste ano em diversas cidades do estado, embora o requerimento aprovado pela Conep em janeiro previsse testes apenas em Brasília. Segundo a Conep, nenhuma das 200 mortes, consideradas efeitos adversos graves, foi comunicada no prazo regimental de 24 horas. Mais tarde, em entrevista coletiva, os próprios pesquisadores reportaram a alta quantidade de mortes como prova de que a proxalutamida teria eficácia de 92% no tratamento de doentes graves contra a Covid.
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Liderado pelo endocrinologista Flávio Cadegiani e patrocinado pela rede de hospitais privada Samel e por um obscuro laboratório dos Estados Unidos, esse grupo pediu aval da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep) para um ensaio em Brasília, mas depois decidiu aplicar a “proxa” por conta própria em hospitais de sete cidades amazonenses.
O relatório com as irregularidades cometidas no estudo e entregue ao Ministério Público Federal foi esmiuçado nesta reportagem do blog.
A Redbioética-Unesco ressalta que as violações teriam ocorrido em várias etapas da pesquisa e chama atenção para o fato dos pesquisadores, liderados pelo endocrinologista Flávio Cadegiani, terem se recusado a dar explicações à Conep.
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Outra conduta gravíssima, para a Unesco, foi o fato dos responsáveis pelo ensaio terem dado continuidade aos trabalhos a despeito da quantidade inusual de óbitos em um dos grupos de voluntários. Como o estudo foi protocolado como duplo-cego – quando os pesquisadores não sabem quem está tomando o remédio e quem está tomando placebo – não seria possível determinar se a droga estava ligada às mortes sem suspender o estudo e fazer uma ampla verificação.
A Unesco também chama atenção que os óbitos não tenham sido reportados ao comitê científico independente, obrigatório em pesquisas científicas envolvendo seres humanos. A composição do grupo também foi questionada pela Conep.
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Os pareceres submetidos à comissão foram assinados por Maja Kovacevic, pesquisadora clínica da própria Applied Biology - empregadora de Cadegiani, patrocinadora do estudo e parceira da desenvolvedora da proxalutamida, a chinesa Kintor Pharmaceuticals. Para a comissão, trata-se de um “patente conflito de interesses”. A Redbioética-Unesco considerou o fato “extremamente grave”.
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Pela severidade dos problemas identificados pela comissão, vinculada ao Conselho Nacional de Saúde, a Unesco considera “urgente” a investigação e responsabilização ética e legal de todos os atores envolvidos, uma vez comprovadas as irregularidades. “Incluindo as equipes do estudo e as instituições responsáveis e patrocinadoras, nacionais ou estrangeiras”.