Publicidade

'Nova cloroquina'

Para Unesco, estudo da proxalutamida foi uma das mais graves violações de direitos éticos da AL

Destaque em prontuário de Zenite Gonzaga da Mota, que morreu em março deste ano, indica administração de proxalutamida, droga que foi utilizada em estudo irregular no Amazonas

As suspeitas sobre as circunstâncias de 200 mortes de voluntários de um estudo da proxalutamida no Amazonas atraíram atenção de organismos internacionais. A Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (Unesco) divulgou nota externando "profunda preocupação” com a denúncia que a  Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep) fez sobre as mortes à Procuradoria-Geral da República no mês passado.

A manifestação pública ocorreu por meio da Redbioética-Unesco, divisão voltada para a defesa e supervisão do tema na América Latina e no Caribe. A resolução foi aprovada na última quinta-feira. A entidade diz que é essencial que haja uma "investigação profunda a respeito dos óbitos, que não foram comunicados espontaneamente pelos pesquisadores à comissão de ética.

“Consideramos que este poderia ser um dos episódios de infrações à ética em pesquisa e violação de direitos humanos dos voluntários mais graves e sérios da história da América Latina”, disse a Unesco no comunicado. 

A história das vítimasFamília fala em extermínio em hospital do Amazonas que recebeu experimento com proxalutamida

Para a organização, é “inaceitável que esse tipo de irregularidade, se comprovada, ocorra em 2021”. No texto, a Redbioética-Unesco conclama a comunidade brasileira e internacional a se unirem para “dar seguimento, disseminar e acompanhar essa denúncia, que envolveria uma grave violação dos direitos dos voluntários, assim como inúmeras irregularidades nos procedimentos éticos e na realização dos ensaios de acordo com o marco regulatório ético internacional vigente”.

Trecho da resolução da Redbioética-Unesco, aprovada na última quinta-feira (7)

Segundo a Redbioética-Unesco, entre as normas desrespeitadas pelo relato da Conep estão a Declaração de Helsinque, a Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos de 2005 e as Diretrizes Éticas Internacionais para pesquisas relacionadas à saúde envolvendo direitos humanos do Conselho das Organizações Internacionais de Ciências Médicas de 2016, elaborado em colaboração com a Organização Mundial da Saúde (OMS). "Nenhuma emergência sanitária nem contexto político ou econômico justifica acontecimentos como os que vieram a público", diz a Unesco.

E mais: Apresentação atribuída a Nise Yamaguchi foi usada por diretor da Hapvida para convencer médicos a prescrever cloroquina

A proxalutamida é um remédio experimental desenvolvido para o câncer de próstata desenvolvido pela chinesa Kintor Pharmaceuticals. Vem sendo defendida como promessa de cura pelo presidente Jair Bolsonaro, mas nunca foi usada formalmente contra qualquer doença, nem mesmo a Covid-19, em nenhum país. 

O estudo do Amazonas foi realizado no início deste ano em diversas cidades do estado, embora o requerimento aprovado pela Conep em janeiro previsse testes apenas em Brasília. Segundo a Conep, nenhuma das 200 mortes, consideradas efeitos adversos graves, foi comunicada no prazo regimental de 24 horas. Mais tarde, em entrevista coletiva, os próprios pesquisadores reportaram a alta quantidade de mortes como prova de que a proxalutamida teria eficácia de 92% no tratamento de doentes graves contra a Covid. 

Veja maisAnvisa suspende uso e importação da proxalutamida no Brasil e abre investigações

Liderado pelo endocrinologista Flávio Cadegiani e patrocinado pela rede de hospitais privada Samel e por um obscuro laboratório dos Estados Unidos, esse grupo pediu aval da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep) para um ensaio em Brasília, mas depois decidiu aplicar a “proxa” por conta própria em hospitais de sete cidades amazonenses.

O relatório com as irregularidades cometidas no estudo e entregue ao Ministério Público Federal foi esmiuçado nesta reportagem do blog

A Redbioética-Unesco ressalta que as violações teriam ocorrido em várias etapas da pesquisa e chama atenção para o fato dos pesquisadores, liderados pelo endocrinologista Flávio Cadegiani, terem se recusado a dar explicações à Conep.

PandemiaCPI da Covid avalia indiciamento de Eduardo e Carlos Bolsonaro

Outra conduta gravíssima, para a Unesco, foi o fato dos responsáveis pelo ensaio terem dado continuidade aos trabalhos a despeito da quantidade inusual de óbitos em um dos grupos de voluntários. Como o estudo foi protocolado como duplo-cego – quando os pesquisadores não sabem quem está tomando o remédio e quem está tomando placebo – não seria possível determinar se a droga estava ligada às mortes sem suspender o estudo e fazer uma ampla verificação. 

A Unesco também chama atenção que os óbitos não tenham sido reportados ao comitê científico independente, obrigatório em pesquisas científicas envolvendo seres humanos. A composição do grupo também foi questionada pela Conep.

A Malu Tá ON: 'Me omitir seria negar voz a milhares de famílias', diz senador Fabiano Contarato

Os pareceres submetidos à comissão foram assinados por Maja Kovacevic, pesquisadora clínica da própria Applied Biology - empregadora de Cadegiani, patrocinadora do estudo e parceira da desenvolvedora da proxalutamida, a chinesa Kintor Pharmaceuticals. Para a comissão, trata-se de um “patente conflito de interesses”. A Redbioética-Unesco considerou o fato “extremamente grave”. 

Leia tambémMPF abre investigação sobre ensaio com proxalutamida em hospital militar do Sul

Pela severidade dos problemas identificados pela comissão, vinculada ao Conselho Nacional de Saúde, a Unesco considera “urgente” a investigação e responsabilização ética e legal de todos os atores envolvidos, uma vez comprovadas as irregularidades. “Incluindo as equipes do estudo e as instituições responsáveis e patrocinadoras, nacionais ou estrangeiras”. 

 

 

 

Leia também