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CRIME

Defesa e PF passaram por cima de nota técnica sobre tráfico de armas para zerar taxa de exportação

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Por Johanns Eller e Mariana Carneiro 

Em 14 de julho do ano passado, a Câmara de Comércio Exterior (Camex) do governo federal tomou uma decisão amplamente comemorada pela indústria de armamentos: revogou o imposto de 150% sobre a exportação de revólveres, carabinas, rifles semiautomáticos e de munições para uso civil na América do Sul e América Central, incluindo os países do Caribe.

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A eliminação da alíquota era uma reivindicação antiga das empresas, – especialmente da Taurus, a maior do país. Elas já tinham conseguido zerar a taxa para armas de menor calibre em 2010, mas enfrentavam a resistência da Polícia Federal para eliminar a cobrança sobre a exportação armas e munições de grande porte.

O pedido para eliminar o imposto foi feito pela própria Taurus em setembro de 2020. Mas, em dezembro, o delegado responsável pela divisão de repressão ao tráfico de armas, Marcus Vinícius Dantas, fez uma nota técnica se opondo frontalmente à liberação. 

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O documento, produzido a pedido da própria Camex, lembrava que o imposto tinha sido criado em 2001 com o objetivo de coibir o tráfico de armas, uma vez que muitos armamentos exportados legalmente para alguns países vizinhos, especialmente o Paraguai, voltavam ao Brasil via contrabando, abastecendo o crime organizado e grupos paramilitares. Apenas os cigarros sofriam taxação semelhante, pelo mesmo motivo. 

No documento, o chefe da divisão de combate ao tráfico de armas  citava como exemplo um levantamento da própria PF que mostrou que, das 11 mil armas ilegais apreendidas no Brasil em 2018, 30% tinham sido fabricadas aqui mesmo e pela própria Taurus. 

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E dizia que, embora não fosse possível aferir em que medida a taxa tinha sido capaz de frear o “tráfico bumerangue”, em razão da “grave deficiência nos sistemas de controles, fiscalização e combate ao crime no país”, revogá-la seria temerário pela mesma razão.  

“Se a Polícia Federal, órgão de controle de armas de uso civil no país e responsável por combater o tráfico de armas, sequer possui acesso aos sistemas mínimos de controle e rastreamento administrados pelo Exército Brasileiro aos quais deveria ter, e diante da possibilidade dos órgãos de segurança pública não terem condições hábeis de monitorar se referidas exportações estão ou não impactando nos índices e apreensões nacionais, não seria adequada e oportuna a extinção do imposto de exportação”, afirma trecho do parecer.

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Os trâmites do processo constam de uma sequência de documentos obtidos via Lei de Acesso à Informação pela equipe da coluna e pelo Instituto Sou da Paz. 

Eles mostram que, ao contrário da PF, desde o início o Ministério da Defesa foi favorável à revogação do imposto.  

Mas, depois da nota técnica de Dantas, o assunto esfriou. Fontes da Polícia Federal ouvidas pela coluna dizem que o parecer provocou um mal estar na cúpula da PF, mas nenhuma medida concreta foi tomada para modificá-la. 

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Por meses, o lobby da indústria de armas tentou encontrar um meio de furar o bloqueio da PF. 

Até que, em 20 de maio de 2021, sem maiores explicações, a Defesa voltou à carga. Num ofício ao Ministério da Justiça, o secretário de Produtos de Defesa, Marcos Degaut, pediu que a corporação “reconsiderasse” sua manifestação. 

A resposta veio em  junho em dois despachos curtos. Segundo os dois documentos, agora a PF não mais se opunha à revogação da taxa. 

O primeiro ofício foi assinado pelo diretor-executivo da PF, Cairo Duarte. E o segundo, pelo coordenador geral de controle de serviços e produtos, Licínio Nunes de Moraes Neto, que apontou uma razão bastante prática para sua posição. “Considerando que cuidamos apenas do controle de armas de fogo em âmbito interno, nada temos a opor”. 

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O ofício de Moraes Neto foi encaminhado de volta à Camex como sendo a "manifestação técnica" aprovada pelo diretor-geral da PF, Paulo Maiurino. A divisão que cuidava do tráfico de armas não foi mais consultada.  E assim a última barreira para a revogação do imposto de exportação de armas deixou de existir. 

Pouco mais de um mês depois, na reunião que discutiu o assunto, os  representantes do Itamaraty ainda fizeram ressalvas à revogação da taxa, ponderando que ela representaria uma guinada na posição internacional do Brasil nos foros internacionais sobre o controle de armas atrelados às Nações Unidas, à Organização dos Estados Americanos e ao Mercosul. 

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“Nesses foros, o Brasil tem advogado que a prevenção e o combate à cadeia delitiva do contrabando de armas, crucial para evitar a expansão da criminalidade organizada regional”, disse o secretário de relações bilaterais do Itamaraty, Pedro Miguel Costa  e Silva. 

Mas ficou por isso mesmo. Em 14 de julho, a revogação da alíquota foi aprovada por unanimidade pelos dez membros da Camex.  

Nas últimas duas semanas, a equipe da coluna enviou perguntas sobre o processo de revogação da alíquota ao Ministério da Defesa, à Polícia Federal e à Taurus. Não obteve nenhuma resposta. 

Para Carolina Ricardo, diretora-executiva do Instituto Sou da Paz, o trâmite do processo mostra que a decisão do governo brasileiro foi guiada por razões políticas.  “Quando você tem dois órgãos responsáveis por controlar o tráfico de armas no Brasil, o Exército e a Polícia Federal, e há um pedido de reconsideração, o que existe é um compromisso político, não técnico.”

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Carolina lembra ainda que a revogação da alíquota ocorreu num contexto em que o governo de Jair Bolsonaro vem liberalizando o uso de armas e de munições por civis, flexibilizando os critérios para a concessão de certificados de colecionadores, atiradores e caçadores (CACs) e ampliando seus limites para a compra de armas e munições. 

Reportagem do GLOBO publicada ontem mostrou que pelo menos 25 desses CACs já foram acusados ou condenados por fazerem parte de organizações criminosas que agem em nove estados brasileiros. 

Está prevista ainda para esta semana na Comissão de Constituição e Justiça do Senado a votação de um projeto do governo Bolsonaro que modifica o Estatuto do Desarmamento e amplia ainda mais o limite de armas e munições permitidas para cada colecionador.  O projeto está entre as prioridades do governo para o Legislativo neste ano.

 

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