• Depoimento a Roberta Malta
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Eu, leitora; Adriana Kastrup (Foto: Arquivo Pessoal)

“Já tinha uma carreira estabelecida como taróloga quando vi Sérgio, psicanalista e amigo de amigos, pela primeira vez. Assim como eu, tinha 36 anos, uma separação recente, sem filhos. Foi tudo rápido depois daquela festa em que fomos apresentados. A paixão, o amor, o casamento... Em três meses, fomos morar juntos. No pacote, veio a vontade de ter um filho, acelerada por meu relógio biológico e o receio de que, acostumado a anticoncepcionais, meu corpo demorasse a reagir. Assim, logo começamos a tentar completar nossa família.

Depois de um ano com a menstruação regular, achamos que era a hora de fazer testes para conhecer nossas reais possibilidades de gerar um bebê. Como nunca havia engravidado, nem ele, queríamos saber se havia algum empecilho físico para isso acontecer. Os exames não acusaram nada, era só ter calma. Acontece que, apesar de ser saudável e superativa, sabia que meu corpo poderia não responder a uma fecundação natural com a agilidade necessária aos meus quase 38 anos. Minha médica sugeriu uma fertilização. O processo era desgastante e caro. Mas, para mim, valia tudo para ter em mãos uma criança com meus traços e os de Sérgio.

Logo de cara, produzi quatro óvulos perfeitos, quantidade que não deixava dúvidas: iria dar certo. O médico insistiu que fecundássemos apenas dois. Dizia que, se todos vingassem, uma gravidez múltipla seria perigosa para uma marinheira de primeira viagem da minha idade e mignon como eu. Mas queria tanto que assumi o risco. Por ansiedade e vício da profissão, abri o tarô. A resposta foi negativa, sem nenhuma chance de dúvida: o processo não daria certo. Fiquei preocupada, claro. Mas preferi acreditar que aquelas cartas, acostumadas a dar respostas certeiras aos meus clientes, não funcionariam para mim, pois eu mesma as estava lendo. Fui em frente.

A primeira tentativa falhou e deixou Sérgio desanimado. As injeções me deixavam inchadíssima, louca de ansiedade, e eu não saía mais do consultório. Mas, para mim, desistir não era uma opção. Acontece que, a cada nova fertilização, produzia menos e piores óvulos. Já na terceira tentativa, as brigas em casa eram constantes. Meu marido não aguentava mais aquele martírio, enquanto eu permanecia irredutível. Jogava cartas o tempo inteiro e o tarô não me dava trégua. Dizia que eu teria, sim, um filho, mas que engravidaria naturalmente. E àquela altura, já com 40 anos completos, isso me parecia cada vez mais distante.

"Eu e meu marido só brigávamos. Ele reclamava da minha teimosia e eu, de sua pouca determinação”"

Na quarta vez em que produzi óvulos para fecundação, o médico foi direto: aquilo não adiantaria mais. Eu teria que usar o material genético de outra mulher ou desistir. Meu marido não queria nem pensar no assunto e nossas crises eram cada vez mais frequentes. Ele dizia que queria parar; eu, que não me resignaria. Ele, que precisávamos do dinheiro para comprar um apartamento; eu, que aquela era a minha prioridade. Chorava muito pensando no quanto aquilo tudo era injusto. Como taróloga, ajudei tanta gente a encontrar a hora certa de ter filhos. Não entendia por que comigo haveria de ser diferente. Só não sucumbi à depressão porque continuava trabalhando no ritmo de sempre.

Contra a vontade de Sérgio, parti para a tentativa de ter um neném com óvulos doados, certa de que aquele sofrimento acabaria. Engravidei logo na primeira vez e, três dias depois, perdi. Passei pelo processo mais uma, duas, três vezes, e nada. Àquela altura, depois de seis anos tentando, estava esgotada. Meu marido também. Quantas vezes estivemos prestes a nos separar por ele não aguentar minha teimosia e eu reclamar de sua pouca determinação. Dei-me conta de que o sofrimento me perseguiria enquanto não tirasse a ideia da cabeça. Havia feito tudo que estava ao meu alcance. E, embora as cartas me dissessem o contrário, ser mãe não estava no meu destino.

O casamento entrou nos eixos de novo. Fingi esquecer o assunto e pouco falava sobre bebês em casa. Mas ainda sentia uma dor profunda a cada vez que as redes sociais anunciavam um nascimento, o tarô previa uma gravidez, a novela terminava com nenéns em profusão. Cheguei a pensar em adoção, mas Sérgio me convenceu de que tínhamos que viver o que o mundo nos havia reservado e aproveitar a companhia um do outro, livres de responsabilidades definitivas. Pensava que, se mesmo depois de tanta dificuldade nosso amor se mantinha firme, ele provavelmente estava certo. Era a hora de reprogramar o futuro.

"Teria que usar o material genético de outra mulher ou abandonar meu sonho”"

Até que, seis meses depois, estava subindo a rua onde moro e tive uma baixa de pressão. Andei os cerca de 100 metros me apoiando nas paredes que havia no caminho. Assim que cheguei ao apartamento, tive o estalo. Será que estava grávida? A situação era completamente improvável. Aos 44 anos e depois de tudo o que houvera (e de R$ 90 mil, na época, jogados fora), ainda teria alguma chance? Sem força nenhuma, desci aquela ladeira de novo para comprar o exame de farmácia. Voltei para casa me escorando, com o potinho para colher urina na bolsa. Mal mergulhei o palito no líquido e ele marcou os tão esperados dois tracinhos que confirmavam a gravidez. Pela primeira vez, estava esperando um filho. Um bebê meu e de Sérgio.

Eu pulava de alegria, não podia acreditar. Corri para jogar o tarô e novamente ele dizia que a criança não vingaria. Nem liguei. Achei que as cartas estavam condicionadas ao ‘não’ de tanto repetir a mesma pergunta. Telefonei para Sérgio, que ficou meio sem ação, e deixei o exame no banheiro até ele chegar. Toda hora ia lá olhar para ver se o resultado não havia mudado. Dois meses depois, fui fazer a ultrassonografia transvaginal e o médico nos disse que o coração do bebê não batia. Nos olhamos em estado de choque. Mandaram-me repetir o exame em uma semana, tempo em que minha vida pareceu ter congelado. O novo teste confirmou que meu feto estava morto e não havia mais nada a fazer a não ser esperar meu corpo expeli-lo. ‘Foi-se embora a minha última oportunidade’, pensava.

Os dias se passavam sem eu perder uma gota de sangue. Duas semanas depois, a médica disse que precisava fazer a curetagem. Lembro-me de ir com Sérgio ao hospital em silêncio. Quando chegamos à maternidade e demos de cara com uma cegonha de madeira enfeitando a entrada, tive um acesso de choro, enquanto meu marido gritava para os funcionários tirarem aquele negócio dali. Era uma sexta-feira e a cureta só conseguiu atravessar meu corpo no domingo, de tão fechado que o colo do útero estava.

"O feto estava morto e não havia nada a fazer, a não ser esperar meu corpo expeli-lo”"

Uma semana depois, recebi o diagnóstico do feto. Podia jurar que havia perdido o neném por má-formação, mas não. Descobri que havia tido uma infecção rara na placenta que sufocou o feto – um embrião absolutamente normal. Era tão grave que fazia exames quinzenalmente para controlar as taxas hormonais e, durante três meses, eles ainda indicavam que eu estava grávida. Era horrível cada vez que ligava para o laboratório para pegar o resultado e o atendente me parabenizava pelo bebê que não existia mais.

Minha ginecologista foi dura. Disse que eu só poderia tentar engravidar de novo um ano depois ou correria risco de morte. Mas não podia fazer isso. Já tinha quase 45 anos, nove tentativas de gravidez frustadas e uma vontade enorme de ser mãe. Naquele ano, ainda em choque, fui comemorar meu aniversário com Sérgio na Europa. Passamos dez dias felizes e, no momento em que chegamos ao Brasil, véspera de menstruar, encasquetei que devia comprar um exame de gravidez. Estava em um shopping e fui até o banheiro com a caixinha na mão. Tremia tanto que derrubei o material inteiro no chão. Voltei à farmácia, comprei um novo e, fechada na cabine do sanitário comunitário, descobri que estava grávida. Antes de ir embora, comprei mais um teste para confirmar o resultado no dia seguinte. Desta vez, não joguei o tarô. Estava esperando um neném e ninguém tiraria aquilo de mim.

Contei para meu marido e minha médica, mas, como já estávamos escolados, acompanhamos a gravidez com cautela. Quando estava com três meses, fiz o exame de amniocentese, para ver se o bebê tinha alguma síndome, que demoraria cinco semanas para ficar pronto. Minha ansiedade era tanta que encomendei a prévia, caríssima, entregue em três dias. A resposta veio por telefone: ‘Seu bebê tem 96% de chance de ter Down’, disse a voz masculina do outro lado da linha. Sem saber o que fazer, corri para o tarô. Abri as cartas mil vezes e elas me diziam que o bebê nasceria sem nenhuma alteração genética. Sérgio, por sua vez, foi categórico: ‘Se essa criança tiver Down, vamos abortar’. Até o exame sair, não tocávamos no assunto. Meu marido vivia quieto. E eu só me comunicava com as cartas.

Sentia-me como se tivesse uma faca na cabeça e outra na barriga. Até que decidi: teria o bebê independentemente de sua condição. Liguei para minha mãe e combinei que, caso o teste acusasse a síndrome, iríamos para a casa do meu tio, em Los Angeles. Dormia e acordava pensando: ‘Ninguém vai tirar esse filho de mim’.

"A resposta veio por telefone: ‘Seu bebê tem 96% de chances de ter síndrome de Down’”"

Cinco semanas depois, recebi um telefonema da minha médica: ‘Seu feto é perfeito’, disse. O diagnóstico anterior, menos preciso e detalhado, estava errado. Liguei para o Sérgio e foi uma gritaria só. Passei o resto da gravidez entre a cadeira onde jogo tarô, na minha casa, e a minha cama. Enjoava, tinha coceiras e não podia fazer nada além disso. Mas nunca havia estado tão feliz!

No sexto mês, minha pressão teve um pico. A médica avisou que não dava mais para esperar e, com 35 semanas de gravidez, fui para a maternidade. ‘Faça o que for preciso, mas traga esse menino com vida’, pedi. Ela disfarçou, mas notei sua preocupação quando me encaminhou para a UTI. Rezava sem parar, tentava ser racional e pedia para meu bebê, Alexandre: ‘Quando nascer, por favor, grite, filho. Mas grite alto’.

Durante o parto, escutava os aparelhos apitando e sentia o sangue jorrando da minha barriga. Estava com pré-eclâmpsia. Sérgio me olhava e segurava minha mão com o rosto assustado. Só sosseguei quando ouvi Alexandre chorar e chamaram meu marido para cortar o cordão umbilical.

Depois de ver o rostinho dele, lembro de acordar, horas depois, com os amigos mais próximos ao redor. Fiquei internada três dias, com a pressão alta por mais três semanas, mas voltei com meu bebê nos braços para casa. Alexandre tem hoje 8 anos, é supercaseiro, ligadíssimo a mim e ao pai e nunca teve nenhum problema de saúde. E eu, a mãe mais velha e mais feliz da reunião de pais.”