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    Santa foi associada � cor negra de maneira lenta e gradual

    REINALDO JOS� LOPES
    COLABORA��O PARA A FOLHA

    10/10/2017 02h01

    Devotos do s�culo 21 muito provavelmente n�o conseguiriam imaginar uma Nossa Senhora Aparecida que n�o tenha pele negra, mas o fato � que a santa s� adquiriu suas fei��es atuais gra�as a uma metamorfose lenta e gradual.

    Essa transforma��o, ali�s, pode ser vista como um microcosmo dos �ltimos s�culos de hist�ria brasileira, da derrocada do Imp�rio � ascens�o de vertentes cat�licas de esquerda durante o regime militar.

    "A quest�o da negritude passa batida nos documentos oficiais mais antigos sobre a santa", explica Lourival dos Santos, historiador da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul e autor do e-book "O Enegrecimento da Padroeira do Brasil" (editora Pontocom).

    "Fala-se numa imagem de barro 'acastanhado', por exemplo", diz. Um cronista dos jesu�tas, escrevendo em meados do s�culo 18, chega a comentar: "A imagem � de cor escura, mas afamada pelos seus muitos milagres".

    Segundo a escultora e restauradora Maria Helena Chartuni, respons�vel por reconstruir a imagem original da padroeira depois que ela se esfacelou em cerca de 200 peda�os em 1978, ap�s ser roubada por um jovem com problemas mentais, � quase certo que a estatueta de terracota tenha sido originalmente recoberta com gesso e pintura policr�mica, ressaltando detalhes como o manto azul.

    "Seria uma imagem de Nossa Senhora da Concei��o do s�culo 17, t�pica do barroco tardio do Brasil", afirma.

    O tempo que a imagem passou debaixo d'�gua, antes de ser retirada do rio Para�ba do Sul por pescadores, bem como as primeiras d�cadas de devo��o popular, durante as quais ela teria ficado bastante exposta � fuligem de velas e candeeiros, provavelmente conspiraram para que a santa ganhasse sua apar�ncia atual, dizem os especialistas.

    No rec�m-lan�ado "Nossa Senhora Aparecida e o Papa Francisco" (Planeta), os cardeais dom Cl�udio Hummes e dom Raymundo Damasceno tamb�m mencionam esses fatores para explicar a apar�ncia escura de Aparecida.

    Lalo de Almeida/Folhapress
    Aparecida, SP. 03/10/2017. Fieis participam de novena no Santu�rio Nacional de Nossa Senhora Aparecida. ( Foto: Lalo de Almeida ) PODER ***EXCLUSIVO FOLHA***
    Fieis participam de novena no Santu�rio Nacional de Nossa Senhora Aparecida, em S�o Paulo

    A PRINCESA E O GA�CHO

    Mais importante do que esse escurecimento f�sico, no entanto, � o "enegrecimento simb�lico" da santa, diz Santos. Com efeito, at� o s�culo 19, estampas produzidas sob os ausp�cios da Igreja Cat�lica ainda a retratam como branca. Um dos elementos que parece ter ajudado a mudar esse quadro � a liga��o de Nossa Senhora Aparecida com a princesa Isabel, filha do imperador Dom Pedro 2� que oficializou o fim da escravid�o no Brasil.

    A princesa prestou homenagens � santa em duas ocasi�es (1868 e 1884), visitando a capela onde estava abrigada na �poca. Em 1904, uma d�cada e meia depois do fim do Imp�rio, o padre Gebardo Wiggerman organizou uma coroa��o solene da padroeira na qual foi usada uma coroa que teria sido doada pela princesa deposta, j� ent�o consagrada como libertadora dos escravos e muito querida pela popula��o negra. Isso teria fortalecido a associa��o entre a padroeira e os fi�is de origem africana.

    O governo Get�lio Vargas deu um passo mais decidido nesse sentido. Na inaugura��o do Cristo Redentor, em 1931, o presidente ga�cho beijou os p�s de uma imagem santa, que foi declarada oficialmente Padroeira do Brasil com o benepl�cito do papa Pio 11.

    Vargas tamb�m restringiu a chegada de imigrantes europeus ao Brasil, estimulada por d�cadas como mecanismo necess�rio para "branquear" a popula��o, segundo as teses racistas da �poca, e a patrocinar uma vis�o mais positiva sobre os elementos negros e mesti�os da identidade brasileira.

    "A identifica��o dos devotos negros com a santa agora considerada negra pode ser vista como uma tentativa de inclus�o dessa parcela da popula��o numa comunidade nacional", diz Santos. "Voc� cria um novo �cone da brasilidade ligado a esse lado africano, assim como outros �cones do tipo est�o se consolidando nessa �poca, como o samba."

    Nos anos 1970 e 1980, com o surgimento de uma pastoral afrobrasileira na Igreja Cat�lica, ligada ao movimento da Teologia da Liberta��o, a faceta africana de Aparecida foi incorporada � pr�pria liturgia do catolicismo.

    "Ela reflete, em muitos aspectos, a ambiguidade da nossa identidade racial, ao gosto do devoto: h� quem enfatize ou n�o a negritude ao falar dela", diz Santos.

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