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    Antropofagismo de Oswald de Andrade ainda � ant�doto para a coloniza��o

    MARCIA TIBURI

    24/07/2016 02h00

    RESUMO Em novo livro, Beatriz Azevedo mostra ao leitor o caminho do gesto criativo de Oswald de Andrade e reitera que ainda � poss�vel, como o escritor paulistano quis, devorar o inimigo, aprendendo com ele. A alegria do selvagem contra a tristeza da imita��o do europeu seria ainda hoje um guia para a cria��o cultural brasileira.

    Divulga��o
    Obra de Tarsila do Amaral, que estar� na mostra Prospect New Orleans, em Nova Orleans, nos Estados Unidos ***DIREITOS RESERVADOS. N�O PUBLICAR SEM AUTORIZA��O DO DETENTOR DOS DIREITOS AUTORAIS E DE IMAGEM***
    "Antropofagia", desenho de Tarsila do Amaral de 1929

    Se o sistema hegeliano � o ventre feito esp�rito, como aparece em Theodor Adorno, � porque existe uma correspond�ncia entre o logos e o fagos, entre o ato de pensar e o de comer. Essa correspond�ncia constitui a filosofia mais tradicional, aquela da tradi��o europeia, cognitiva e est�tica, �tica e pol�tica, � qual pertencem tanto os fil�sofos que ainda adoramos como totens e tabus quanto os conquistadores da coloniza��o, com os quais se mant�m, na col�nia (naquilo que ainda � col�nia por aqui), uma rela��o amb�gua, edipiana, meio amedrontada, meio fascinada, t�pica da forma capitalista e burguesa de pensar.

    Tal maneira de pensar � totalmente oposta ao que, em Oswald de Andrade, � a a��o do pensamento selvagem, antrop�fago em um sentido totalmente diverso do "geist" canibal que nada aprendeu com o seu outro.

    Adorno precisaria conhecer Oswald, com quem compartilhava a leitura de Friedrich Nietzsche. Devia ter conhecido esse Oswald que, muito antes dele, sabia do "sentido devorativo do sistema", pr�prio � fenomenologia do esp�rito. Mas at� agora nem mesmo o Brasil conheceu muito bem as ideias revolucion�rias do escritor, e muito menos as levou at� as �ltimas consequ�ncias.

    Na base de muita piada e gra�a, de muita ironia e met�fora, Oswald nos legou um pensamento perigoso, rico em sedimenta��es, agora expostas em "Antropofagia - Palimpsesto Selvagem" [Cosac Naify, 240 p�gs., R$ 86]. Beatriz Azevedo escreveu um livro que nos faz acompanhar o gesto criativo de Oswald, transformado por ela em totem em nome de uma grande festa a ser vivida no matriarcado de Pindorama, na utopia do pensador paulistano. O que Azevedo nos mostra, sem nos ensinar, � que comer o inimigo ainda � poss�vel, mas que devemos antes devorar o deus Oswald.

    O GATO E A ON�A

    Na linha das met�foras alimentares e das do conhecimento, se pode dizer que fil�sofos e conquistadores s�o todos farinha do mesmo saco europeu. Um saco de gatos que a compaix�o amer�ndia impediu de matar a pauladas. Que me perdoem os amantes de gatos pela crueldade das palavras, mas � bom lembrar a polifonia da palavra gato, que se usa tanto para o homem belo quanto para o ladr�o, ou o grampo que capta o sinal da TV e do wi-fi alheio, no pa�s do churrasquinho de gato, onde tamb�m, n�o esque�amos, se vende gato por lebre.

    A opress�o n�o vem sem o parasitismo que caracteriza a coloniza��o, atravessando nossas rela��es com a Europa e com os demais exerc�cios do Imp�rio. S� a on�a –o jaguar–, que est� para o habitante selvagem de Pindorama como o gatinho est� para o bom selvagem de Rousseau, seria destino melhor, sabiam os tupinamb�s que nos antecederam e que inspiraram o pensamento antrop�fago.

    De qualquer modo, os invasores do Brasil conseguiram indexar nossas vidas com suas regras est�ticas, morais e pol�ticas para nos fazer crer que somos seus filhos e herdeiros, que temos alguma coisa a ver com eles, que aprendemos direitinho a enganar, seja na est�tica, no moralismo ou na pol�tica, a reproduzir a ind�stria cultural, seja na sua vers�o acad�mica ou popular. Se a l�gica da gambiarra instaurou-se entre n�s foi como legado que se adapta aos moldes do imperialismo americanizado do momento.

    O jogo sujo da estrutura econ�mica e pol�tica e seu correspondente art�stico e cultural sempre estiveram na mira da antropofagia, a desconstru��o oswaldiana. A europeiza��o branca e crist� nos liga em tudo ao roubo e � pilhagem e o saque se faz gozo entre n�s por meio da escraviza��o, da matan�a dos povos de Pindorama, da maledic�ncia, da imita��o das capitais tend�ncias estrangeiras. Oswald de Andrade queria devolver o Brasil a si mesmo atrav�s de um poderoso n�o e, como n�o era poss�vel expulsar europeus que de algum modo tamb�m somos, sugeriu com�-los. Seu gesto inverteu o jogo e transformou o europeu no que ele nunca foi: um outro. E deixou claro, como quem olha como uma on�a e n�o como um gatinho cordial, que eles eram nossos inimigos.

    DEVORAR

    A rela��o etimol�gica entre saber e sabor, que alguns defendem nas pedagogias atuais mais adocicadas, apaga o car�ter b�rbaro pr�prio ao ato do conhecimento baseado no princ�pio de identidade, ele mesmo devorat�rio. Por mais interessantes e cr�ticos que sejam os pensadores europeus, como Montaigne, Nietzsche e Marx, lidos por Oswald, apenas os ancestrais tupinamb�s, e n�o os judaico-crist�os dos europeus, poderiam ter inspirado uma forma de pensar que se contrapusesse ao poder disfar�ado da bondade civilizada e jesu�tica que nos levou � hipocrisia e ao cinismo inscritos em nossas carnes, at� hoje devoradas pelo capitalismo.

    � melancolia europeia, Oswald apresentou a alegria como a prova dos nove. Prova que s� o pensamento e a a��o amer�ndia, direta, corajosa, prazerosa e, evidentemente, selvagem, poderia nos dar contra a cadaveriza��o das ideias promovida por intelectuais brasileiros que, em sua �poca, pareciam maus esp�ritos a realizar o trabalho morto e triste da imita��o.

    Beatriz Azevedo prop�e que a pr�tica da antropofagia "celebraria outra inten��o, mais potente: 'continuar alegres'", o que poderia acontecer se invert�ssemos a l�gica tradicional no que concerne ao pensar, ao sentir, ao agir e ao inventar, o que n�o aconteceria sem que com�ssemos os europeus. Assim como o comer, pensar, no sentido antrop�fago, necessariamente � um ato selvagem. Um ato perigoso e vingativo, que nos faz ver agora nos olhinhos amedrontados de Hans Staden –ou nos do padre Vieira– uma covardia hist�rica.

    Em Oswald, a antropofagia � o m�todo por meio do qual se chega � coragem de pensar, apagada pela a��o das teorias colonizadoras e suas catequeses entediantes.

    No generoso banquete que tem como prato principal o "Manifesto Antrop�fago", Azevedo nos d� de comer metodicamente esse texto, um corpo bem temperado e assado, com a generosidade, mais do que a certeza, de que o prazer adv�m, desde o come�o, do servir-se delicadamente em nacos de todas as partes do corpo e apreci�-los sem modera��o. S�o muitos os textos que configuram o palimpsesto e h� que se comer tudo.

    A devora��o proposta pela autora � eminentemente met�dica. Enquanto nos explica o que significa comer Galli Mathias, ela nos leva � opera��o antrop�faga original, temperando-a com a flor de sal da obra de Oswald: "S� n�o h� determinismo onde h� mist�rio, mas que temos n�s com isso?". Essa pergunta � o ingrediente m�gico que casa muito bem com o bem mastigado "tupi or not tupi". Beatriz nos faz entender o funcionamento desses gostos reunidos em total avers�o a qualquer tipo de arte culin�ria acad�mica, afinal, est� em cena um ritual selvagem.

    Sabemos que a quest�o essencial de Oswald � a mesma de Beatriz: "Que temos n�s com isso?". Ela nos ajuda a entender a import�ncia de uma pergunta que nos conduz a pensar fora das import�ncias agregadas aos padr�es da nobreza acad�mica. H� ritual, e h� roteiro, muito roteiro, mas n�o h� pompa, nem espet�culo. O corpo serve ao corpo, n�o ao olho sedento de espet�culo.

    LEITURA RITUAL

    � na pr�tica de uma paci�ncia antropof�gica que Azevedo nos dir� de "galimatias". O discurso incompreens�vel que Oswald devora no ato mesmo de separar a palavra em duas e transform�-la em personagem. Galli Mathias, cria��o de Oswald, � aquele que, antes de ser devorado, explicou-lhe o direito como possibilidade. Azevedo faz como Oswald, l� o "Manifesto" separando as partes. Ritualiza assim a leitura, oferecendo-nos os sabores mais incomuns do texto potencializados tamb�m para perturbar o paladar domesticado de nossa �poca.

    Mais do que anatomia, Azevedo nos lega uma curadoria, ou melhor ainda, uma "curanderia" com o texto de Oswald. Os protocolos acad�micos s�o purificados de sua pompa doentia. Entendemos que a import�ncia da antropofagia est� no potencial "deseuropeizante" da cria��o cultural brasileira. No potencial devir ind�gena, um devir selvagem, aberto ao outro, descolonizante, entregue � floresta, encontramos o desafio brasileiro.

    Podemos ent�o come�ar por comemorar a reinaugura��o do Brasil em uma data m�tica. Se h� 462 anos se dava a devora��o do bispo Sardinha, � a hora de passar ao banquete e servir-se das palavras apetitosas de Beatriz Azevedo. Assim como Morubichaba ao devorar o seu assado, posso garantir que � gostoso.

    MARCIA TIBURI, 46, professora de filosofia do Mackenzie, � autora de "Como Conversar com um Fascista" (Record).

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