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    Nossa identifica��o n�o pode ficar fora da literatura, diz Concei��o Evaristo

    FRANCESCA ANGIOLILLO
    ENVIADA ESPECIAL A PARATY

    30/07/2017 15h53

    Patr�cia Cmapos Mello/Folhapress
    Diva Guimar�es com Concei��o Evaristo neste s�bado (29), na Flip
    Diva Guimar�es com Concei��o Evaristo no s�bado (29), na Flip

    "Este lugar � nosso por direito", disse, sob aplausos, Concei��o Evaristo em sua fala inicial na mesa "Amadas", que a homenageou neste domingo, encerrando a programa��o oficial da 15� Flip (Festa Liter�ria Internacional de Paraty).

    A escritora de 70 anos agradeceu "intensamente, particularmente" � curadoria de Jos�lia Aguiar pela busca da diversidade e da inclus�o nesta edi��o do evento. E frisou que n�o podia "deixar de afirmar que n�o foi concess�o".

    "Este momento significa, acho que para todos n�s, a comprova��o da for�a coletiva. N�s s� estamos aqui em consequ�ncia de trabalhos que foram feitos desde o ano passado pedindo a presen�a de escritoras e escritores negros na Flip", disse Evaristo.

    "Eu n�o estou aqui sozinha, eu n�o cheguei sozinha, eu cheguei por for�a de coletiva de homens e mulheres negras, notadamente de mulheres negras."

    A plateia, possivelmente a mais negra do Audit�rio da Matriz nesta edi��o, estava lotada e assim permaneceu durante mais de uma hora em que a autora de "Becos da Mem�ria" e "Ponci� Viv�ncio" conversou com a tamb�m escritora Ana Maria Gon�alves ("Um Defeito de Cor"). Do lado de fora a pra�a estava igualmente cheia com um p�blico diverso.

    O encontro foi conduzido por uma sequ�ncia de fotografias da vida de Evaristo, mas de forma alguma ficou limitado ao registro biogr�fico, que serviu de fio para que a escritora abordasse quest�es de cria��o liter�ria e da import�ncia da representatividade negra, sobretudo da mulher negra, na literatura.

    Ao falar da foto que abriu o encontro, a da autora em sua primeira comunh�o, o tema do catolicismo negro e da f� motivou Evaristo a falar de como a cultura de matriz africana se entranhou na f� crist�.

    Mencionou suas "protetoras", que cultiva "por medida de seguran�a" —Imaculada Concei��o, � qual deve o nome, santa Rita de C�ssia, mas tamb�m Iemanj� e Oxum e a escrava Anast�cia, figura de culto popular, representada com uma morda�a.

    "O sil�ncio de Anast�cia reverbera em grito", disse a homenageada. "Mais do que nunca, acho que ele simboliza o sil�ncio que � imposto aos povos dominados e que n�s aprendemos a falar atrav�s da m�scara. E tem horas que a gente fala com tanta veem�ncia, que n�s falamos pelos orif�cios da m�scara e nos estilha�amos a m�scara."

    A educa��o inclusiva foi tema, com Concei��o Evaristo rememorando sua experi�ncia como aluna de uma escola p�blica frequentada pela elite em sua Belo Horizonte natal e de como ela se refletiu em suas escolhas como educadora j� no Rio, onde vive.

    "A gente n�o pode ter muita ilus�o de que essa educa��o fornecida pelo Estado n�o � uma educa��o que realmente pretende atingir as classes mais baixas. A boa educa��o, de qualidade, vai ser sempre de perten�a de certas classes sociais."

    MATERNIDADE

    A afetividade amorosa e familiar como sustento diante da criminaliza��o do negro e tamb�m o machismo do homem negro foram contemplados na fala, passando em seguida a um dos momentos literariamente mais interessantes do encontro.

    Diante de uma foto em que aparece gr�vida de sua filha, Ain�, a escritora tratou da quest�o da maternidade em termos pessoais e nas artes.

    "As personagens antol�gicas da literatura brasileira s�o est�reis, n�o t�m prole, n�o fecundam. Se a gente for pensar em Rita Baiana, em Bertoleza, em Gabriela, essas personagens criadas nessa literatura canonizada, ou elas n�o t�m filhos, ou n�o d�o conta de seus filhos."

    "A gente vive uma cultura judaico-crist� e, nessa cultura, duas mulheres t�m papel central", disse, citando Eva, a "perdi��o", e Nossa Senhora, a "salva��o da humanidade", que se d� atrav�s da maternidade.

    "Se n�s vivemos sob orienta��o desse mito crist�o e a literatura brasileira n�o consegue criar personagens negras fecundantes, o corpo dessa mulher negra � sempre colocado no lugar do mal. � como se o corpo da mulher negra n�o tivesse salva��o. � um corpo est�ril, � um corpo para o prazer."

    Evaristo, que por muito tempo produziu permanecendo in�dita —seu "Becos da Mem�ria", por exemplo, foi escrito em 1987 e s� saiu em 2006—, falou da dificuldade em publicar.

    Algu�m poderia dizer que "para qualquer pessoa in�dita" � dif�cil ser publicado. "Mas para algumas pessoas se torna mais dif�cil ainda. Para mulheres negras � muito mais dif�cil", disse, pelo lugar que ocupam no imagin�rio nacional.

    "No imagin�rio brasileiro, n�s, negras, cantamos, dan�amos, cozinhamos, cuidamos bem de uma casa", disse. "Somos capazes, sim, de cozinhar, de lavar, de passar, de dar aula, de exercer a medicina, de sermos professoras, damos conta de tudo de que outras mulheres tamb�m d�o."

    Um bloco foi dedicado � escritora Carolina Maria de Jesus (1914-77) e � recep��o de sua obra, que foi marcante para o in�cio da carreira de Evaristo, com a leitura de "Quarto de Despejo", que ela leu e compartilhou, em ser�es de leitura, com sua fam�lia.

    "O que Carolina passava nas ruas de S�o Paulo, a minha fam�lia passava em Belo Horizonte. A gente lia Carolina Maria de Jesus como uma igual. N�s �ramos Carolina. At� hoje eu leio Carolina e fico muito feliz quando me filiam a uma tradi��o de Carolina, muito por causa de 'Becos da Mem�ria'."

    Mas, disse ela, a leitura rasa que se faz da obra da escritora a incomoda muito.

    "� como se n�s, mulheres negras, s� tiv�ssemos a car�ncia material; toda vez que eu abrir a boca � porque eu n�o tenho um prato de comida. N�o conseguem ter a percep��o da ang�stia de Carolina, da solid�o de Carolina. Por que que todo mundo l� Clarice Lispector e consegue perceber que Clarice Lispector est� falando de uma d�vida existencial, que est� falando da solid�o, das ang�stias humanas, e n�o percebem isso em Carolina?"

    "Ela � uma grande escritora brasileira e sempre usam a desculpa de que ela feria as normas cultas da l�ngua. Eu tenho dito que s�o normas ocultas da l�ngua, porque s� determinadas categorias sociais conseguem se apropriar dessas normas ocultas da l�ngua", disse, com que a audi�ncia veio abaixo em aplausos.

    ESCREVIV�NCIA

    Ao final, a mesa contemplou o conceito de "escreviv�ncia". "Quando usei o termo, eu n�o sabia que estava criando um conceito", disse. "Tudo que eu escrevo � profundamente marcado pela minha condi��o de mulher negra brasileira", o que marca sua escolha tem�tica e formal.

    "Eu quero escrever um texto que se aproxime o mais poss�vel de uma linguagem oral, � uma escolha consciente que eu fa�o. Ningu�m chora diante de um dicion�rio. Ele tem l� palavras bel�ssimas, mas ele n�o comove, porque voc� pensa num dicion�rio como uma situa��o est�tica. Quero essa palavra din�mica, e para mim ela � a que est� mais pr�xima ao povo do que a que est� mais pr�xima � academia, a um texto te�rico, � gram�tica."

    O p�blico lamentou o fim do tempo destinado ao encontro. A curadora informou que todas as perguntas remanescentes enviadas pelo p�blico seriam entregues a Evaristo, e a plateia aplaudiu de p� ainda antes das considera��es finais da homenageada.

    "Agora a Flip n�o tem jeito. N�s n�o vamos abrir m�o do que foi conquistado", disse, sob aplausos, agradecendo de novo � curadora pelo convite —no que foi secundada por Ana Maria Gon�alves pedindo por "Jos�lia 2018".

    "N�s vamos continuar estilha�ando os orif�cios dessa m�scara. Vamos continuar afirmando que subalterno pode falar. Se a gente pensa que o espa�o da literatura, da cria��o liter�ria, do discurso liter�rio � um espa�o de revela��o, de identifica��o nacional, a nossa identifica��o n�o pode mais ficar fora da literatura brasileira."

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