• Colunistas

    Thursday, 01-Aug-2024 06:11:16 -03
    Jo�o Pereira Coutinho

    Se a arte n�o desculpa o crime, o crime n�o inculpa a arte

    14/11/2017 02h00

    Angelo Abu/Folhapress

    Acabo de assistir ao �ltimo longa de Noah Baumbach, "The Meyerowitz Stories (New and Selected)", na Netflix. O filme vale pelo roteiro, pelos atores, pela intelig�ncia diletante de Baumbach.

    Mas vale, sobretudo, pelo papel de Dustin Hoffman como o patriarca da fam�lia —Harold, um escultor egoc�ntrico, temperamental, pedante, arrogante, amoral (a lista n�o tem fim).

    Terminei o filme levitando —e depois, de regresso � realidade, descubro: duas atrizes acusam Dustin Hoffman de ass�dio sexual.

    Pergunto: ser� que a conduta do cidad�o Dustin afeta o g�nio do ator Hoffman?

    A minha resposta � negativa —e concordo com a posi��o de H�lio Schwartsman nesta Folha. "Pessoas ruins podem fazer coisas boas", escreve o colunista com a sua habitual lucidez. E eu gostaria de sublinhar a palavra "coisas".

    N�o � preciso subirmos aos patamares metaf�sicos da arte para comprovarmos a divis�o das �guas. Eu tamb�m seria capaz de comprar uma cadeira bela a um carpinteiro eticamente grotesco.

    Admito que possam existir limites. Para citar um caso amplamente glosado, ser� poss�vel elogiar a arquitetura das c�maras de g�s de Auschwitz?

    N�o creio. � como se a mem�ria da trag�dia materializada naquela constru��o impedisse qualquer ju�zo extramoral. Mas eu tamb�m n�o seria capaz de comprar a cadeira bela se o carpinteiro a tivesse usado para matar a fam�lia inteira.

    Quando o objeto vem manchado com as cores da inf�mia, n�o h� beleza que o salve.

    Dito de outra forma: a cadeira, se estivesse limpa, ficaria bem na minha sala; o carpinteiro, se n�o fosse inocente, ficaria bem na pris�o.

    E o que � v�lido para o carpinteiro, � v�lido para Roman Polanski : � perfeitamente poss�vel imaginar os filmes de Polanski na tela —e o diretor na cadeia.

    Todos conhecemos a hist�ria: na d�cada de 1970, Polanski violou uma menor nos Estados Unidos.

    Ap�s acordo judicial, a acusa��o baixou o chicote para rela��es sexuais com menor. Polanski aceitou, confessou —e fugiu para a Europa.

    Ser� leg�timo admirar os seus filmes apesar do crime?

    Ou as feministas que pedem boicote a uma mostra do diretor em Paris t�m raz�o?

    O racioc�nio mant�m-se: depende de que filmes falamos.

    Se, por absurdo, Polanski tivesse filmado o seu pr�prio crime —ou, para n�o sermos t�o brutais, se os seus filmes fossem exorta��es a esses crimes, n�o haveria nenhuma considera��o art�stica aut�noma.

    Mas os filmes de Polanski pertencem a outra esfera. Se a arte n�o desculpa o crime, o crime n�o inculpa a arte.

    Anos atr�s, ainda sobre o caso Polanski, o jornal "The New York Times" organizou um debate com v�rios autores e acad�micos. Para saber, no fim das contas, se a divis�o entre o homem e a obra deve ser respeitada.

    Relembraram-se fatos �bvios: olhamos para a hist�ria da arte e alguns dos maiores criadores eram seres moralmente question�veis.

    Do Renascimento (que Vasari relata no seu indiscreto "Vidas de Artistas") � presente modernidade (Wagner, Picasso, Pound etc.), nem sempre as grandes obras foram produzidas por santos e beatos. Mas quem relembra isso ao passear pelo Louvre, ao escutar os "Niebelungos", ao ler os "Cantos"?

    Ali�s, o verbo correto n�o � relembrar; � conhecer.

    No debate promovido pelo "Times", o roteirista Damon Lindelof foi direto ao ponto: 200 anos depois, o consumidor de cultura desconhece o lado lunar de muitos autores que admira.

    Daqui a 200 anos, pergunta ele, ser� que as gera��es futuras v�o assistir a "Annie Hall" com o pensamento perturbante de que Woody Allen casou com a filha?

    Boa piada. Boa pergunta. Boa resposta.

    Talvez a melhor forma de resolvermos as tens�es presentes entre a arte e a biografia do criador seja imaginar esse mundo futuro, onde n�o estaremos n�s nem as nossas confus�es e histerias transit�rias.

    Longe de mim desvalorizar os crimes dos indiv�duos. Repito: esses crimes n�o t�m perd�o. Mas a grande arte � sempre perdoada.

    Quando os bisnetos dos meus bisnetos encontrarem Dustin Hoffman em "The Meyerowitz Stories (New and Selected)", tudo que ter�o na frente � o talento imenso de um ator eterno.

    joão pereira coutinho

    Escritor portugu�s, � doutor em ci�ncia pol�tica.
    Escreve �s ter�as e �s sextas.

    Edi��o impressa

    Fale com a Reda��o - leitor@grupofolha.com.br

    Problemas no aplicativo? - novasplataformas@grupofolha.com.br

    Publicidade

    Folha de S.Paulo 2024