Descrição de chapéu Doenças Raras

Famílias usam vaquinha para comprar remédio mais caro do mundo

Pacientes também recorrem à Justiça para obrigar a União a custear terapia

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Duque de Caxias (RJ)

Famílias de crianças com AME (atrofia muscular espinhal), doença degenerativa que compromete a respiração e a mobilidade, estão recorrendo a vaquinhas online a fim de juntar dinheiro para comprar o remédio zolgensma, tido como o mais caro do mundo.

A droga, de dose única, custa mais de US$ 2 milhões (equivalente a quase R$ 11 milhões).

Esse é o caso da comissária de bordo Julianne Santi, 39, e do piloto Douglas Schneider, 38, pais de Thomas.

O bebê, de um ano e oito meses, recebeu o diagnóstico de AME no dia 20 de dezembro do ano passado e está numa corrida para importar o medicamento de fora do país. O uso é recomendado até os dois anos de idade.

Foto mostra casal Julianne e Douglas sentados no sofá da sala de estar da casa deles. O pai segura alguns brinquedos e a mãe está com Thomas no colo. O casal é branco e tem cabelos castanhos. Thomas é um bebê branco, que está inclinado para trás e com os braços levantados.
O casal Julianne de Carlos Ehlke Santi, 38, e Douglas Schneider, 38, fazem campanha nas redes sociais para arrecadar cerca de R$ 11 milhões para comprar o remédio mais caro do mundo para o filho Thomas - Brunno Covello/ Folhapress

O casal recebeu conselhos de amigos para fazer uma vaquinha online e criar uma página no Instagram (@amethomas_tipo2) com a intenção de captar recursos.

Colegas de Julianne e Douglas se dispuseram a cuidar da iniciativa e, desde janeiro, têm administrado a página no Instagram, vendido rifas e buscado famosos dispostos a se envolver no projeto.

Hoje, 14 pessoas ajudam na campanha, que já recebeu apoio de Cafu, ex-capitão da seleção brasileira, dos jogadores do Coritiba, da apresentadora Ana Hickmann e do comandante da FAB (Força Aérea Brasileira), Carlos de Almeida Baptista Junior. Até agora, foi arrecadado mais de R$ 1,5 milhão.

"É uma campanha que não para. Eu quase não durmo mais. É bastante coisa para resolver. Comecei a fazer terapia, porque sobrecarregou a cabeça e o coração", diz a também comissária Natallie Jung, 38, amiga do casal e coordenadora da campanha.

O zolgensma é uma terapia gênica que leva para as células do paciente uma cópia do gene saudável que, antes, o corpo não conseguia fabricar.

Assim, o organismo consegue produzir a proteína necessária para impedir a destruição dos neurônios motores, responsáveis por movimentos dos músculos, como andar, respirar e engolir.

A terapia tem registro na Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) desde 2020, mas não é comercializada no Brasil pela farmacêutica detentora da patente, a Novartis, e não é fornecida pelo SUS.

Em dezembro de 2020, o comitê técnico-executivo da Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos estipulou R$ 2,9 milhões como preço máximo para a venda do zolgensma no país. O governo Jair Bolsonaro (PL), no entanto, aprovou aumento para R$ 6,5 milhões, como mostrou a Folha.

Em nota, a empresa diz que "tem trabalhado para trazer o zolgensma para o Brasil em um preço que reflita o caráter inovador da terapia e as condições econômicas do país".

O projeto de lei 5.253/2020 busca garantir a incorporação do zolgensma e do risdiplam, outro tratamento para AME, na Rename (Relação Nacional de Medicamentos Essenciais), lista de remédios fornecidos pelo SUS, além da oferta em farmácias populares.

Atualmente, o texto está em trâmite na Comissão de Seguridade Social e Família da Câmara e recebeu parecer favorável para aprovação do relator, o deputado Lucas Redecker (PSDB-RS).

Para os brasileiros interessados no tratamento, além da vaquinha, a solução tem sido pedir à Justiça que a União pague a importação do remédio.

Isso é o que também tenta a família de Thomas, que entrou com duas ações: uma para conseguir o zolgensma e outra para que o plano de saúde cubra as despesas do spinraza, outro remédio que combate a AME, mas de forma paliativa —precisa ser usado por toda a vida, não em dose única.

Segundo os pais do menino, o juiz concedeu liminar com decisão favorável ao pedido da família em janeiro, e o plano de saúde, que demorou 15 dias para se manifestar, foi obrigado a pagar o tratamento. Ainda não há decisão sobre o processo contra a União.

Além das drogas, pacientes com AME podem ter outras despesas ao longo da vida.

Gustavo, 34, e Juliane Giannaccari Nunes, 39, são pais de Gabriela, uma bebê com AME tipo 1 que tomou o zolgensma no último dia 2.

Mesmo assim, o casal conta que prevê gastos de R$ 180 mil a R$ 200 mil por ano. O pai cita tratamentos com uma equipe multidisciplinar de reabilitação e a aquisição de carrinho ortopédico de R$ 33 mil como exemplos.

Daqui para frente, Gustavo e Juliane vão pedir ajuda para os próximos tratamentos de Gabi por meio da página que criaram no Instagram (@ame.gabriela) para arrecadar dinheiro para a compra do zolgensma. Além disso, também pretendem usar o canal para publicar informações sobre a doença, de forma a conscientizar os seguidores.

A página tem 15 mil seguidores e arrecadou mais de R$ 600 mil, segundo Gustavo.

Para custear o remédio, a família conseguiu uma liminar na Justiça obrigando a União a pagar o valor direto para a Durbin, colaboradora da Novartis. O dinheiro que o casal tinha arrecadado foi depositado para o governo, com o desconto dos gastos de aplicação e internação.

A menina tinha feito uso de outros dois medicamentos para AME, o spinraza, que foi pago pelo plano de saúde, e o risdiplam.

A família tem três frascos deste último. Um um foi doado por amigos e os outros dois foram custeados pela vaquinha e custaram R$ 58 mil cada um.

Guilherme Baldo, professor-adjunto da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul) e pesquisador na área de terapia gênica, explica que, para desenvolver um remédio, é necessário tempo e testes clínicos, em humanos e animais, para comprovar segurança e eficácia.

Esses fatores, combinados ao fato de que o público-alvo de um medicamento para doença rara é pequeno, levam a esses preços, afirma.

"Os números que a gente escuta da indústria vão de centenas de milhões até R$ 1 bilhão para desenvolver um medicamento. Se for uma doença super-rara e a empresa perceber que não vai ter lucro, não tem motivo para desenvolver uma terapia."

Na opinião de Nelson Mussolini, presidente-executivo do Sindusfarma (Sindicato da Indústria de Produtos Farmacêuticos), decisões como fixar o valor do produto num patamar mais baixo em relação ao estipulado pela empresa farmacêutica, como a Anvisa fez com o zolgensma, pode excluir o país da oferta de novos produtos.

"Se no mundo inteiro o produto custa R$ 12 milhões e, aqui no Brasil, o produto custa R$ 2 milhões, a empresa não pode lançar no Brasil, porque, senão, o mundo inteiro vai querer pagar R$ 2 milhões."

Para ele, no entanto, é dever do Estado garantir acesso da população às drogas.

"Essas vaquinhas não têm como resolver o problema. A solução disso vem de uma medida de Estado, que tem que priorizar a saúde do cidadão."

Em outros países, como nos EUA, o preço também é um obstáculo para pacientes.

Na Inglaterra, entretanto, o NHS (Serviço Nacional de Saúde), equivalente ao SUS, fechou um acordo com a Novartis para oferecer o remédio com um desconto significativo e confidencial.

De 2019 a 2021, a Anvisa aprovou ao menos 41 medicamentos que combatem doenças raras, além de duas terapias gênicas (zolgensma e luxturna). Desses, somente um é oferecido pelo SUS, o burosumabe, que trata a hipofosfatemia ligada ao cromossomo X, uma forma de raquitismo que provoca perda excessiva de fosfato pela urina e ocasiona baixo nível de fósforo no sangue.

Remédios contra doenças raras

Vyndaqel
Laboratório Wyeth/Pfizer
Para que serve Amiloidose
Disponível no SUS Sim, somente para pacientes adultos com PAF (polineuropatia amiloidótica familiar), um tipo de amiloidose, em estágio inicial
Preço máximo para o consumidor sem ICMS R$ 107,9 mil

Zolgensma
Laboratório
Novartis
Para que serve  AME
Disponível no SUS  Não
Preço máximo para laboratórios e distribuidores sem ICMS  R$ 6,5 milhões*

Evrysdi
Laboratório
Roche
Para que serve  AME
Disponível no SUS  Não
Preço máximo para o consumidor sem ICMS  R$ 60,2 mil

Spinraza
Laboratório
Biogen
Para que serve  AME
Disponível no SUS  Sim
Preço máximo para laboratórios e distribuidores R$ 341,5 mil*

Luxturna
Laboratório
Novartis
Para que serve Distrofia da retina
Disponível no SUS  Não
Preço máximo para laboratórios e distribuidores R$ 2 mi*

*não podem ser adquiridos em farmácias, para uso só em hospitais

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