A preocupação de uma empresa com diversidade, quando genuína, leva à necessidade de repensar o processo de recrutamento. Para atrair jovens negros, afetados pela desigualdade, uma das saídas dos recrutadores é abrir mão da exigência de formação em universidades de ponta e até do curso superior, em algumas áreas.
Segundo Nathália Paes, especialista em desenvolvimento de negócios do InfoJobs, se um processo seletivo só aceita quem saiu das principais universidades, barra a diversidade e a inclusão. “Qual é o percentual de negros no Mackenzie, na PUC, na USP?”, questiona.
Embora o ProUni e o ingresso em universidades via Enem tenham aumentado o número de brasileiros com chance de cursar o ensino superior, o diploma ainda é restrito a poucos –e o mercado está disposto a repensar a necessidade desse tipo de formação.
Para a especialista, o cenário está mudando, mas ainda é comum ver vagas cujo requisito básico é um diploma universitário, mesmo quando envolvem funções técnicas.
“Os limitadores de diversidade estão ligados a limitadores sociais”, afirma Patricia Pugas, diretora de gestão de pessoas da Magazine Luiza. “Percebemos que fazíamos exigências de formação que eram limitadoras”. Ela diz que a área de tecnologia intensificou a mudança na seleção.
A empresa, cujas principais portas de entrada são os setores de vendas e atendimento ao cliente, não exige diploma para vagas na área tecnológica. “É um profissional de perfil autodidata”, afirma a diretora.
Além disso, a Magazine Luiza promove capacitação para que seus profissionais de outros setores atuem em tecnologia, caso do programa Luiza Code, voltado à formação de mulheres desenvolvedoras.
Jenifer Lemes, 23, entrou na empresa em 2017 como atendente do SAC. Ela aproveitou os cursos internos. “Eu nem tinha computador, ia mesmo assim para a aula. Comecei a programar meus primeiros códigos pelo celular.”
Jenifer entrou em tecnologia em 2019 na área de atendimento, fez outra qualificação e passou em um processo interno para atuar como desenvolvedora.
“Venho de uma família humilde, sempre estudei em escola pública. Desde o ensino médio já procurava trabalho para ajudar em casa’’, diz.
Antes, ela foi recepcionista e balconista. Não cursou faculdade, e pensa em fazer um curso que a ajude a crescer na área de tecnologia.
Na mesma linha da Magazine Luiza, o Itaú deixou de exigir ensino superior na área de tecnologia. Valéria Marretto, diretora de recursos humanos, diz que as habilidades requeridas podem ser desenvolvidas em cursos mais curtos. É comum, ainda, empresas que seguem exigindo diploma, mas se abriram às formações profissionalizantes.
Na visão de Carlos Eduardo Domingues, gerente de cultura, diversidade, equidade e inclusão na PepsiCo Brasil, a vivência no nível superior desenvolve habilidades que vão além do diploma. Ele ressalta, porém, que “a formação é tão importante quanto a trajetória de vida e carreira”.
Apesar da exigência do canudo, a empresa busca a inclusão, atesta o estagiário de recursos humanos Matheus Severino, 25. Ele, que é trans e estuda psicologia, conta que conhecia as iniciativas de diversidade da PepsiCo e decidiu tentar. “Nunca imaginei que acessaria uma multinacional”.
No recrutamento, o domínio do inglês, outra barreira para jovens de baixa renda, não foi exigido. Esse, aliás, é outro critério que vem sendo revisto por empresas. “Quando os documentos de contratação chegaram com meu nome social, foi uma vitória”, afirma Matheus.
Ele cursa a faculdade há mais de quatro anos, brinca que já deveria ter se formado e diz que precisou sair da casa da família, o que atrapalhou. “Vida de pessoa trans é difícil”. Hoje, Matheus participa de grupos que discutem inclusão na empresa.
A crise e a necessidade de entrar mais rapidamente no mercado também impulsionam formações de menor duração, caso dos cursos técnicos profissionalizantes.
Segundo Felipe Morgado, gerente executivo de educação profissional do Senai, a principal característica desse tipo de curso é o diálogo constante com o universo do trabalho. A demanda por habilidades específicas surge do mercado e é incorporada ao ensino como forma de suprir as necessidades de cada setor.
Especialistas lembram, porém, que ainda há preconceito com essa modalidade.
“Já ouvi muito que o filho do pobre vai para o curso técnico e o filho do rico, para a universidade”, diz Cláudia Santa Rosa, diretora executiva do Instituto de Desenvolvimento do Ensino do Rio Grande do Norte. Para ela, formação universitária não é sinônimo de qualidade de ensino.
Santa Rosa diz que, em um país no qual a desigualdade de acesso ao mercado é gritante, a oferta de capacitação profissional pode ser uma forma de reter estudantes no ensino médio. Para ela, em menos tempo “o ensino técnico já oferece uma formação que possibilita a entrada no mercado formal”, evitando assim que os estudantes abandonem a escola para suprir necessidades econômicas urgentes. A especialista ressalta que “isso não quer dizer que esse aluno não possa depois cursar o ensino superior”.
“Há trabalhos que pedem formação técnica e pagam até melhor do que profissões que exigem curso superior”, diz Morgado. Ele cita estudos do Senai segundo os quais profissionais que fazem curso técnico ganham, no mínimo, 18% a mais do que quem vai para o mercado sem essa formação.
Nem tudo é pela diversidade. Impulsionados pelas demandas crescentes dos setores de tecnologia, recrutadores e gestores veem com bons olhos os profissionais capazes de comprovar habilidades específicas, como domínio de determinada linguagem de programação.
A universidade, de acordo com Nathália Paes, ainda é mais lenta na hora de incorporar essas demandas do mercado. Os cursos profissionalizantes saem na frente.
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