Clandestina at� 1914, feira a c�u aberto tenta se reinventar para sobreviver

Nos prim�rdios da Vila S�o Paulo, em 1554, come�aram a pipocar tabuleiros de verduras na rua.

Muito caldo de cana rolou por debaixo dessa ponte at� que as feiras livres sa�ssem da clandestinidade e se incorporassem de vez � fauna da cidade, com um decreto em 1914.

Passados cem anos, esse com�rcio de rua adotou pagamento com cart�o, aderiu ao delivery, popularizou as feiras noturnas e incluiu produtos org�nicos para agradar a mulher bonita que paga, e bem, para encher sua sacola com produtos diferenciados.

"A julgar pelas recentes iniciativas, parece que as feiras desejam sobreviver por mais cem anos inteironas", diz Heliana Vargas, professora da FAU-USP e especialista no tema.

Hoje, S�o Paulo tem 880 feiras oficiais, com mais de 12 mil feirantes.

Uma novidade renova seu f�lego: a admiss�o de 63 feirantes, ap�s chamamento p�blico com 264 inscritos.

Foi preciso armar um barraco para legalizarem o tradicional com�rcio a c�u aberto, que enfim funcionaria nos conformes com a prefeitura.

Em 1913, S�o Paulo contava com uma consagrada por�m irregular feira livre, no largo General Os�rio (Centro). A apela��o de um fregu�s pode ser hoje encontrada na p�gina 508 dos "Annais da C�mara dos Vereadores da Cidade de S�o Paulo".

O dito cidad�o recorreu ao prefeito Washington Lu�s num of�cio, pedindo que as vendas passassem das segundas-feiras para os domingos. "Dias estes mais pr�prios para o operariado fazer suas compras, como se faz em diversas partes da Europa."

Um ano depois, crises no abastecimento de frutas e verduras se agravaram. Os alimentos estavam caros e escassos. A Light, empresa p�blica respons�vel pelos bondes, fornecia tr�s carros que davam passagem gratuita aos lavradores que trouxessem produtos de hortas dos sub�rbios.

Naquele momento, havia apenas alguns mercad�es, como o S�o Jo�o (que estava mal das pernas) e o Caipiras, em Pinheiros. Foi quando o vereador Alc�ntara Machado sugeriu implantar os "mercados volantes".

O colega Carlos Botelho era contr�rio, atentando � "imund�cie, ainda que tempor�ria", do neg�cio, conforme a ata da C�mara do ano.

Certo de que estaria ali solu��o r�pida e eficaz para o apag�o de alimentos em S�o Paulo, Machado rebateu. "A experi�ncia demonstra o contr�rio. Prouvera aos c�us que tiv�ssemos a cidade de S�o Paulo t�o limpa, t�o asseada como Zurique ou Genebra!"

Cinco meses e quatro dias depois desse bate-boca, em 25 de agosto de 1914, publicava-se o ato 710 autorizando a cria��o dos mercados francos.

Ele institu�a: pra�a General Os�rio, �s segundas e quintas-feiras; pra�a Senador Moraes Barros, �s ter�as-feiras; pra�a S�o Paulo, �s quartas-feiras; rua S�o Domingos, �s sextas-feiras; e largo do Arouche, aos s�bados.

Da� por diante, instalam-se ano a ano mais feiras pela cidade. O com�rcio criava empregos, atendia � popula��o e ainda gerava divisas para a prefeitura —todo feirante at� hoje paga um imposto para ocupar as ruas.

A GUERRA DOS PAST�IS

Mas o pega-pra-capar entre feirantes e poder p�blico n�o parou por a�.

Nos anos 1970, past�is foram o alvo da vez. Um grupo de imigrantes japoneses, sem emprego, aprendeu com chineses em Santos como preparar uma massa simples, que, imersa no �leo quente, ficava crocante e desmanchava na boca.

Na capital, um dos pupilos experimentou rechear a receita com gostosos ingredientes. Sucesso absoluto: quase todas as feiras ganharam sua barraca de pastel.

Como documentam jornais da �poca, fiscais municipais, contudo, sem ter regras para monitorar a produ��o, proibiram a venda. A reclama��o foi geral, e a prefeitura acabou cedendo. A partir do primeiro dia de julho de 1978, pasteleiros puderam aquecer seus tachos de �leo tranquilamente.

Outra vit�ria doce aconteceu em outubro de 1982, quando oficializaram a venda do caldo de cana, reivindicada novamente pelos japoneses.

QUERIDA, ENCOLHI A FEIRA

As feiras paulistanas viviam, nessas d�cadas, seus anos de ouro.

Enquanto separa polvilho para tapioca em sacos (R$ 3 cada), o feirante Alo�sio Souza, 64, diz que o movimento piorou bastante de 20 anos pra c�.

Ele est� no ramo h� 35 anos. Acorda �s 3h e chega �s 5h30 para vender alho, condimentos, cebola, lim�o e batata na rua E�a de Queiros, na Vila Mariana. Na barraca ao lado, fica dona Maria Rosa, 67, sua mulher h� 37 anos.

"Hoje tem muita sobra", diz Alo�sio. "A cebola custa R$ 1,50 o quilo. Sei que no mercado � mais barato."

Seu ajudante h� 20 anos, Orlando dos Santos, 44, concorda que a freguesia encolheu bastante. "Temos algumas freguesas fixas, e � gente mais velha. As mais novas n�o v�m muito. Parentes contam quando uma cliente faleceu ou se mudou", diz, enquanto oferece �gua do coco diretamente na casca que acabou de quebrar.

Os truques para segurar a clientela j� n�o se resumem a sauda��es cl�ssicas como a tal da mulher bonita que n�o paga, mas tamb�m n�o leva.

Na rua Caiowaa, em Perdizes, Antonio Carlos Rosa, 34, aprimora as "cantadas" para cativar as freguesas. Quando voc� menos espera, irrompe seu grito. Coisas como "� dona, t� me traindo com outro bananeiro?" ou "Oi cora��o, onde voc� vai triste assim?".

Wagner Caldeiras, 50, tamb�m tem suas tiradas. "� da cor dos olhos do coelho essa goiaba, vermelha de vergonha", "uva sem semente, roubaram as sementes da uva" e por a� vai.
Fruteiro h� 40 anos, ele se adapta como pode aos novos tempos: j� aceita pagamentos com cart�o de d�bito.

Wagner acredita que a feira nunca vai acabar. "Aqui sempre tem desconto, frutas frescas. E o cliente n�o paga os centavos da balan�a."

Mas reclama: "M�o de obra na feira n�o tem mais. � dif�cil arrumar".

#FORAFEIRA

Dif�cil � tamb�m serenar os �nimos de quem sofre com a sujeira e a barulheira que esse tipo de com�rcio traz, uma vez por semana, � porta de casa.

S�o as causas que mais enervam moradores de ruas com feira, mostra o balan�o de reclama��es da prefeitura.

Na loja de Cristais Lugano, bem na via da feira da Firmiano Pinto, no Br�s, o dono Rafael Mathias, 64, desabafa. "Ter�a-feira abro por obriga��o, mas nunca vendo uma pe�a." Ele roga para que um dia aprovem uma lei dando aos moradores expostos a esse intenso conv�vio a isen��o de IPTU (o dele � de R$ 400 por m�s). A a��o come�a a pipocar em algumas cidades da grande S�o Paulo. A prefeitura paulistana descarta a hip�tese.

As redes sociais ajudam a lotar essa caixinha de reclama��es. Os cr�ticos dos #forafeira j� relataram casos como o impaciente que jogou xixi numa barraca em retalia��o a um feirante que adotou a porta de sua casa para aliviar necessidades fisiol�gicas.

Segundo Geraldo Garippo, supervisor das feiras da cidade, o modelo vai passar por um choque de ordem no que diz respeito � limpeza. Novo decreto est� previsto para 2014. "Vamos instalar banheiros qu�micos em alguns lugares, em sistema de teste."

Entre os pr�prios feirantes h� a turma dos insatisfeitos. Queixa constante: a rotina intensa n�o tem sido bem remunerada. "N�o como nos bons tempos, anos 1970, 1980 e um pouco dos 1990", diz Marcelo Nonaka, peixeiro que, depois de mais de 30 anos, largou as feiras para abrir uma peixaria-butique em Moema.

BOBEOU, DAN�OU

Ele repara que, em v�rias regi�es, o supermercado tomou a frente dos neg�cios. Alguns estudos indicam que a mudan�a estaria ligada aos novos estilos de vida da popula��o. Boa parte trabalha no mesmo hor�rio em que acontecem as feiras. Da� resta a muitos, antes de retornar para casa, dar uma passadinha em hipermercados ou quitandas descoladas, que ganham a cada ano mais espa�o.

Nesses lugares, h� v�rios confortos, como disposi��o dos alimentos cortados e higienizados, quase prontos para consumo. Para quem est� com pressa para fazer a janta da fam�lia, esse detalhe faz diferen�a.

Atento a isso, o feirante Uilliam Sanches Rosa, 42, al�m de trabalhar nas ruas, promove com a ajuda do enteado um servi�o de e-commerce: o www.feiradelivery.com.

Oferece kits embalados a v�cuo, na mesma pegada dos supermercados. "A gente dan�a conforme a m�sica e sempre sorrindo, que � pra n�o espantar freguesia."

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