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Bolsonaro inflou antipetismo ao se opor à Comissão Nacional da Verdade

Analisados 500 discursos desde 2010, há oposição às investigações sobre a ditadura em 56

Bolsonaro participa de reunião da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos deputadospara discutir relatório da Comissão da Verdade - Pedro Ladeira/Folhapress
Gustavo Fioratti
São Paulo

A história de sete prostitutas que, chamadas para escrever sobre uma cafetina concluíram “que ela tinha que ser canonizada” é uma das preferidas do presidenciável Jair Bolsonaro (PSL).

Foi com essa fábula que o hoje líder na pesquisa de intenções de voto, em discurso de outubro de 2014 na Câmara dos Deputados, referiu-se ao relatório produzido pela Comissão Nacional da Verdade, criada dois anos antes durante o governo de Dilma Rousseff (PT) para apurar crimes cometidos pelo governo brasileiro entre 1946 e 1988, especialmente durante a Ditadura Militar.

Quando fala de “prostitutas”, Bolsonaro se refere aos ex-integrantes da CNV: o ex-procurador-geral Cláudio Fonteles, que deixa a comissão em 2013 e é substituído pelo advogado Pedro Dallari, ao advogado e ex-ministro do STJ Gilson Dipp, aos advogados José Carlos Dias, José Paulo Cavalcante Filho e Rosa Maria Cardoso da Cunha, à psicanalista e jornalista Maria Rita Kehl e o cientista político Paulo Sergio Pinheiro.

Quinhentas notas taquigráficas referentes aos discursos de Bolsonaro em plenário, entre 2010 e 2018, apontam a combatividade em relação à comissão: Bolsonaro inflou o discurso antipetista não apenas em contraposição a ideias de combate ao racismo e à homofobia. Dos 500 discursos, há oposição à comissão em 56. 

Em setembro de 2011, na iminência da criação da CNV, Bolsonaro fez um apelo a colegas: “o que cada um de vocês tem a ganhar colocando à execração pública as Forças Armadas? Pegar velhos generais e coronéis, de 80, 90 anos de idade, e trazê-los para esse picadeiro?”. Ao contrário da Argentina, do Uruguai e do Chile, o Brasil esmiuçaria o tema 30 anos após a redemocratização.


"Familiares de mortos e desaparecidos, vocês deviam ter vergonha na cara, porque ou choravam vocês ou chorava toda a nação brasileira" 

Bolsonaro em 11/12/2014


A conclusão das investigações responsabilizaria 377 agentes civis e militares por “graves violações aos direitos humanos”. Reconhecidas 434 mortes de vítimas, 210 desaparecimentos entre elas, o texto classifica a atuação desses agentes como “crimes contra a humanidade”.

Entre os torturados e mortos está Vladimir Herzog, que dirigiu o departamento de jornalismo da TV Cultura e lecionou na Escola de Comunicação e Artes da USP. A Comissão da Verdade concluiu que Herzog foi morto após longa sessão de tortura nas dependências do Doi-Codi, em 1975. “Suicídio acontece. O pessoal pratica”, disse Bolsonaro em julho sobre o caso, em entrevista à RedeTV!.

A partir de 2013, o candidato encontrou uma oportunidade no antipetismo inflado nas manifestações de junho. Reestabelecer a moral dos militares tornara-se um expediente —e uma oportunidade.

Quando o coronel do Exército Carlos Alberto Brilhante Ustra morreu, em 2015, o capitão da reserva defendeu que seu herói “enfrentou maus brasileiros, verdadeiros doentes mentais que tentaram aqui implantar a ditadura do proletariado”.


"Miriam Leitão, que estava chorando, esses dias, na imprensa, porque foi torturada: 'Botaram no meu quarto uma cobra'. Eu tenho pena da cobra"

Bolsonaro, em 3/09/2014


Ustra foi quem comandou o Doi-Codi entre setembro de 1970 a janeiro de 1974 e também quem redigiu uma apostila que consolidou uma metodologia de interrogatórios onde a violência era empregada. “O Exército brasileiro assumiu, por ordem do presidente, a ordem de combater o terrorismo e sob as quais cumpri todas ordens legais, nenhuma ilegal, digo de passagem”, explicou Ustra à CNV.

Tortura não era prevista por lei nem mesmo na ditadura. O coronel foi condenado em primeira instância na Justiça por comandar a prática, em ação ajuizada em 2010. Neste ano, a ação que poderia condená-lo em segunda instância prescreveu.

A retórica de Bolsonaro em prol de militares que praticaram a tortura em nenhum momento estabelece diferenças entre crimes cometidos por cidadãos pelo Estado. “Torturar e matar pessoas sob sua custódia [do Estado] é crime de lesa-humanidade”, diz Kehl. “Um militante que assalta um banco, dá um tiro e mata um guarda, isso é horrível, mas é um crime comum”, compara.

“Os militares saíram da ditadura com uma imagem muito negativa perante a sociedade. Eles se mostram chateados, dizem que foram esquecidos, traídos pelo Brasil. Bolsonaro propiciou que os militares retomassem suas vozes na batalha relativa ao campo da memória”, diz a historiadora Cecília Riquino Heresia, doutoranda que estuda resultados e efeitos da CNV na USP.

Para tanto, ele retoma uma argumentação contraditória, ela diz. “Na Ditadura, eles se diziam a favor da democracia, mas tinham um regime antidemocrático. A desculpa era o inimigo: o anticomunismo naquela época era forte. Eles sequestram a democracia com o discurso de que estavam protegendo ela. Por isso, é importante para eles hoje voltar a ter esse inimigo comum”.

A campanha de Bolsonaro na Câmara teve eco na população, e hoje Kehl avalia um efeito paradoxal no papel da CNV. “Mais de uma vez, fui parada na rua, e perguntavam: 'não vão investigar o outro lado?'. Eu dizia: 'as mortes produzidas pelos militantes de esquerda já foram investigadas e divulgadas. Os autores foram presos, torturados, e alguns foram mortos. A gente trabalhou para investigar o lado que os militares esconderam'”, conta.

Para José Carlos Dias, os erros praticados por agentes civis e militares durante a ditadura não podem ser atribuídos aos profissionais em atividade hoje. “Então pedíamos para que pudéssemos trabalhar juntos. Mas encontrávamos o espírito de corporação, de não querer aprofundar investigações”, diz.

Em agosto de 2016, Bolsonaro atribui a decisão de se candidatar à presidência ao incômodo crescente na classe: “É por isso que sou candidato em 2018, entre outras coisas. Não estou preocupado em me eleger, mas quero, mais bem preparado, discutir os assuntos ao vivo”.


"Já comuniquei à segurança da Casa para preservar a minha integridade física, porque talvez eu seja o único presente àquela Comissão para torturá-los com verdades. A verdade tortura esses saudosos maoístas, esses saudosos bolcheviques, esses saudosos marxistas"

Bolsonaro, em  11/12/2014 


Neste discurso, ele associa o ressentimento dos militares também aos baixos salários e às medidas que, desde o governo de Fernando Henrique Cardoso, suprimiam direitos.

Em 2011, militares perderam a pensão vitalícia para as filhas, o direito a pensão correspondente a um posto acima daquele registrado no fim da carreira e o direito de dobrar o tempo de licença especial não gozada (seis meses por decênio) quando deixam a atividade.

Em março de 2014, 23 anos após o fim da União Soviética portanto, Bolsonaro sugere que uma articulação militar entre países latinos poderia ser eficiente ainda hoje: “Chegará o momento em que um novo 31 de março, ou uma nova Operação Condor, não serão suficientes para impedir o Brasil e a América Latina de serem lançados nos braços do comunismo.”

Em dezembro de 2014, volta a justificar a ditadura. “Ouso dizer que a situação hoje está muito pior que o pré-64, porque eles estão aparelhando quase todas as instituições”.

Em setembro daquele ano, debochou da jornalista Miriam Leitão pelo fato de ela ter relembrado, publicamente, em entrevista ao jornal O Globo, a sessão de tortura pela qual passou: “Miriam Leitão estava chorando, esses dias, na imprensa, porque foi torturada: 'Botaram no meu quarto uma cobra'. Eu tenho pena da cobra!”, disse. Na entrevista, Miriam reportou espancamento, ameaças de estupro e privação de água e comida.

No mesmo depoimento, ela diz que não teve direitos hoje garantidos por lei, como telefonar para parentes ou chamar advogado. “Ninguém sabia o que tinha acontecido comigo, eu não sabia se as pessoas tinham ideia do meu desaparecimento. Só três dias após minha prisão é que meu pai recebeu, em Caratinga, um telefonema anônimo de uma mulher dizendo que eu tinha sido presa.”

Ainda em setembro de 2014, Bolsonaro investe contra um pedido da Comissão da Verdade para que o general Enzo Peri fosse destituído do cargo de comandante do exército —ele havia oficiado quartéis do Exército proibindo colaborações com a investigação em curso.

“Comissão da Verdade: não vou me dirigir a vocês; com uma comissão voltada para velhacaria, eu não vou perder meu tempo aqui. Vocês não têm moral para discutir o passado comigo, não têm”, disse.

Como resposta, ele passou a narrar a história do Golpe de 1964 em versão que exime os militares de qualquer culpa. Para ele, “o Exército nunca foi intruso na política”. Ele acha que o Golpe de 1964 foi uma exigência da sociedade. “As mulheres nas ruas pediam o restabelecimento da ordem. Os empresários não queriam ver seu patrimônio estatizado pelo golpe de esquerda que se avizinhava”.

Bolsonaro foi voz isolada em sua campanha contra as investigações. O ex-procurador-geral Cláudio Fonteles relembra que a criação da comissão foi apoiada por todos os presidentes da República, considerando mandatos desde a redemocratização. No Congresso, os partidos de oposição do governo Dilma não criaram obstáculos para a criação do projeto.

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