Militar condenado na Lava Jato diz que foi preso por interesse internacional
Ricardo Borges/Folhapress | ||
![]() |
||
O ex-presidente da Eletronuclear Othon Luiz Pinheiro da Silva, condenado na Lava Jato |
Acusado de receber propina de R$ 4,5 milh�es de empreiteiras que tinham obras em Angra 3, o ex-presidente da Eletronuclear Othon Luiz Pinheiro da Silva ficou preso por dois anos e recebeu uma das maiores condena��es da Lava Jato: 43 anos de pris�o por corrup��o, lavagem de dinheiro, evas�o de divisas e organiza��o criminosa.
Considerado um dos mais importantes cientistas brasileiros e o pai do programa nuclear do pa�s, o almirante Othon, 78, como � conhecido, ficou isolado em uma cela e diz que aprendeu a comer com as m�os. Solto no m�s passado, ele pouco sai �s ruas e chora com frequ�ncia.
Nesta entrevista � Folha, o militar, que se recupera de um c�ncer de pele, alega inoc�ncia e diz ter um "forte sentimento" de que sua pris�o foi feita sob os ausp�cios de "interesses internacionais".
*
Folha - Como o senhor se aproximou da empreiteira Andrade Gutierrez?
Almirante Othon - Em 1994, quando fui para a reserva, a primeira coisa que fiz foi prestar um concurso para o Instituto de Pesquisas Nucleares da Cnen (Comiss�o Nacional de Energia Nuclear).
Havia duas vagas para pesquisador. Concorri com 16 doutores e tirei primeiro lugar.
Mas n�s est�vamos em 1994, numa fase de muita globaliza��o. E eu n�o fui chamado. A minha cara � nacionalista. E eu sou mesmo.
Como n�o deu certo, montei uma empresa de consultoria, a Aratec. No in�cio de 2004, um camarada da Andrade Gutierrez, o senhor Marcos Teixeira, apareceu l�.
E o que ele queria?
Ele disse: "N�s [construtora] temos um contrato de 1982 [para as obras civis da usina nuclear de Angra 3]. Mal come�amos a mexer na funda��o e ele foi interrompido".
Eles achavam que eu poderia ajudar [na retomada das obras], por ter influ�ncia militar. Eu disse "n�o tenho mais, sa� [da Marinha] faz tempo". A� veio a ideia de fazer um estudo para eles.
Eu n�o estava no governo e nem imaginava que ia voltar [Othon foi convidado para presidir a Eletronuclear um ano depois, em 2005].
O Minist�rio P�blico Federal considerou que o estudo assinado pelo senhor para a Andrade Gutierrez era simpl�rio e entendeu que ele � fict�cio.
� um desconhecimento total ou uma vontade de n�o querer reconhecer [a import�ncia do trabalho]. S�o anos de pensamento sobre o Brasil.
O que ocorreu no pa�s, e sobre o que falava no meu estudo? O consumo de energia cresceu e o estoque de �gua das hidrel�tricas estacionou na d�cada de 80. Antes disso, o Brasil poderia passar por v�rios anos "secos" porque tinha estoque de �gua. Mas isso mudou e veio o apag�o.
O Brasil agora precisa de energia t�rmica de base.
Termel�tricas t�m que ser [movidas a] carv�o ou [energia] nuclear. E nuclear � melhor para n�s porque temos reservas [de ur�nio] correspondentes a 50% do pr�-sal.
N�s temos que aproveitar o que a natureza nos d�.
Ah, se eu tivesse mais [usinas] nucleares. O custo do investimento � maior mas o do combust�vel � menor [do que o de outras alternativas].
No caso da hidrel�trica, o custo [do combust�vel, a �gua] � quase zero. E no caso da nuclear, � pequeno.
Se eu tiver a energia nuclear, eu economizo �gua e n�o chego nessa situa��o [de apag�o]. A energia nuclear n�o compete com a hidrel�trica. Ela complementa. Era isso o que o estudo mostrava.
Depois o senhor foi para o governo e a obra de Angra 3 foi retomada.
Em julho [de 2005], eu soube que tinha uma lista [no governo Lula] para escolher o presidente da Eletronuclear. Eu n�o queria.
Mas a� eu fiz a grande bobagem da minha vida. Fui convidado. Bateu a vaidade e eu aceitei. Em outubro de 2005, assumi o cargo.
E como passou a receber dinheiro da empreiteira?
Tudo o que eu fazia na �poca [em que prestava consultoria] era na base do sucesso.
E coincidiu que fui para o governo e houve a decis�o [de retomar Angra 3].
Quem decidiu foi o Conselho Nacional de Pol�tica Energ�tica, do qual eu n�o fazia parte. Como presidente, eu apenas executei as diretrizes.
Mas passei a fazer jus [� remunera��o] do trabalho [estudo para a Andrade] que eu fiz antes.
Quanto passou a receber?
Eu cobrei R$ 3 milh�es, em valores de dezembro de 2004 [a Pol�cia Federal diz que o almirante recebeu R$ 4,5 milh�es em valores atualizados].
Comecei a receber depois que houve a decis�o da retomada das obras.
Como era um tro�o completamente diferente, eles falaram "vamos pagar atrav�s de outras empresas". A� virou outro crime.
Se fosse hoje, eu exigiria deles [Andrade] um contrato de confiss�o de d�vida para que me pagassem s� depois que eu sa�sse. Eu n�o receberia no cargo.
Eu tinha direito, foi um trabalho que eu fiz antes. N�o era imoral nem ilegal. Apenas com a experi�ncia de hoje eu teria feito diferente.
O Minist�rio P�blico Federal e a Justi�a consideraram que era propina.
N�o era propina, n�o foi mesmo. Eu achava que tinha direito de receber. Agora, tive o cuidado de n�o tomar nenhuma decis�o [que beneficiasse a empreiteira], n�o tem nenhum ato de of�cio assinado por mim.
Tivemos [ele e a Andrade] inclusive um atrito inicial, porque eu exigi que o TCU aprovasse os detalhes do aditivo [para o pagamento do servi�o nas obras de Angra 3].
Eles ficaram irritad�ssimos. Fui uma decep��o para eles. Houve outras diverg�ncias, chegaram a parar as obras. Oras, se eu tivesse liga��o com eles, isso teria ocorrido?
Delatores da empresa afirmaram que o senhor, na verdade, cobrava percentual sobre os contratos de Angra 3.
A Andrade j� tinha um ressentimento em rela��o a mim. E dela��o premiada � um processo muito danado. O cara acha que agrada [os investigadores] e senta a pua. Ele n�o tem compromisso.
O senhor diz que sua pris�o interessa ao sistema internacional. Que evid�ncia tem disso?
Como come�ou tudo isso? Num depoimento que o presidente de uma empreiteira fazia sobre um contrato com a Petrobras.
Ele mencionou que ouviu dizer algo sobre o presidente da Eletronuclear estar de acordo com um cartel.
Isso serviu de pretexto para os camaradas vasculharem a minha vida desde garoto. Havia um direcionamento.
Mas haveria um comando externo nas investiga��es?
N�o comando, mas influ�ncia forte, ideol�gica. N�o posso provar mas tenho um sentimento muito forte. Houve interesse internacional.
E por que haveria interesse internacional em sua pris�o?
Porque tudo o que eu fiz [na �rea nuclear] desagradou. Qual o maior notici�rio que tem hoje? A Coreia do Norte e suas atividades nucleares. A parte nuclear gera rejei��o na comunidade internacional.
E o Brasil ser pot�ncia nuclear desagrada. Disso eu n�o tenho a menor d�vida.
H� setores que acreditam que o Brasil deveria desenvolver a bomba at�mica. O pa�s fez bem em abrir m�o dela?
Eu acho que fez. O artefato nuclear � arma de destrui��o de massa e inibidora de concentra��o de for�a. Mas, no nosso caso, se tiv�ssemos a bomba, desbalancear�amos a Am�rica Latina, suscitando apreens�es.
E a �ltima coisa que a gente precisa na Am�rica Latina � de um embate.
O pa�s, no entanto, n�o abriu m�o da tecnologia. Se necess�rio, em quanto tempo far�amos uma bomba?
Em uns quatro meses. Com a tecnologia de enriquecimento que n�s usamos, podemos fazer a bomba com o plut�nio, como a de Nagasaki, ou com o ur�nio, que foi a de Hiroshima. Temos os dois porque quem tem ur�nio enriquecido pode ter o plut�nio tamb�m.
Voltando �s investiga��es, o senhor foi acusado de contribuir para a desvaloriza��o da Eletronuclear.
Quando assumi, ela era chamada de vaga-lume. Em poucos anos, passou a figurar entre as centrais de melhor desempenho do mundo.
As a��es se valorizaram. Como ent�o eu contribu� para desvalorizar as a��es? Nada disso foi levado em conta no meu julgamento.
O meu passado serviu como agravante. Eu peguei cinco anos de cadeia a mais porque, se eu tinha aquele passado, eu tinha que ter um comportamento [exemplar]. � a primeira vez que antecedente virou agravante. Vida pregressa ilibada virou agravante.
T� l�, escrito [na senten�a]. � s� ler. Eu li. Me deu uma revolta t�o grande... [levanta da mesa, chora].
Como foi a hist�ria de sua tentativa de suic�dio?
Como foi isso? [Chora mais. Toma �gua]. Eu estava preso e vi pela televis�o que fui condenado a 43 anos de pris�o. Pensei "os caras ficaram loucos". E mais 14 anos para a minha filha [Ana Cristina]. E ela n�o fez nada.
Tive um desespero... n�o � desespero. � revolta. Uma profunda revolta. Eu queria chamar a aten��o. E pensei "vou fazer um ato de revolta".
Eu reuni os cadar�os do cal��o e com eles eu ia me enforcar. Pela c�mara, a oficial viu e [impediu]. Mais 15 minutos ela n�o pegava mais.
Na hora eu fiquei pau da vida. Mas depois eu vi que era bobagem. Me enterravam e em tr�s dias tudo acabava. Vou bancar o japon�s, confiss�o de culpa? N�o. Hoje penso que tenho que ficar vivo e lutar.
O senhor resistiu � pris�o?
�s 6h, eu estava dormindo, dois caras [policiais] entraram berrando no meu apartamento. Parti para cima. Fui treinado para isso a vida toda.
Disseram que eu estava armado. N�o � verdade. Eu tenho arma, mas ela fica trancada em uma gaveta.
Mas eu n�o resisti. Se tivesse resistido, eu morria, mas pode ter certeza que um deles ia junto. Fiz treinamento na pol�cia de SP quando estava no programa [nuclear] secreto. Dava 200 tiros por semana.
E para onde levaram o senhor?
Primeiro para Curitiba e depois para o Rio. Cheguei a ser preso em Bangu.
L� eu fiquei dois dias com [o bicheiro] Carlinhos Cachoeira [ri]. A gente conversava, via televis�o, era ele, o [empres�rio Fernando] Cavendish, seis pessoas no total.
Depois fui transferido para a base de fuzileiros navais do Rio de Janeiro, onde fiquei um ano e pedrada.
O senhor ficou ent�o sozinho?
Isolamento absoluto. De manh�, eu fazia 25 minutos de gin�stica na cela. Depois andava 5 quil�metros, durante a hora de banho de sol a que eu tinha direito.
Um oficial me escoltava. Tirando esse momento, n�o falava com ningu�m. A� me ocorreu escrever um livro, � m�o, com caneta e papel. J� terminei e pretendo lan��-lo.
Eu comia comida de pra�a com colher e garfo de pl�stico. � fogo, n�? Aprendi a comer com a m�o. Virei indiano. E comecei a ver novelas.
E como � estar de novo em liberdade?
Depois de passar por tudo isso, a gente fica com uma certa inseguran�a, sabe? Sei l�, esperando alguma coisa inesperada que n�o sabe o que � [chora]. Eu estou me livrando dela agora.
E tamb�m a gente come�a a ver o fim da vida chegando, n�? [emocionado]. A vida toda eu trabalhei construindo alguma coisa. E disso eu sinto falta. Em todo lugar eu estive na frente de combate.
O que fez ao sair da pris�o?
Sa� duas vezes de casa apenas. Parecia que eu estava fazendo turismo no Rio. Em dois anos [em que esteve preso], a cidade mudou muito.
No primeiro dia em casa, eu senti muito vazio. A gente fica sempre procurando alguma coisa para fazer. De vez em quando penso "o que eu tenho mesmo que fazer agora?". E eu n�o tenho que fazer nada!
Estou aprendendo a ser livre de novo. � essa a sensa��o.
Livraria da Folha
- Box de DVD re�ne dupla de cl�ssicos de Andrei Tark�vski
- Como atingir alta performance por meio da autorresponsabilidade
- 'Fluxos em Cadeia' analisa funcionamento e cotidiano do sistema penitenci�rio
- Livro analisa comunica��es pol�ticas entre Portugal, Brasil e Angola
- Livro traz mais de cem receitas de saladas que promovem saciedade