O Brasil precisa reconhecer que a transi��o democr�tica acabou
Alan Marques - 05.mai.2016/Folhapress | ||
Sess�o no Supremo Tribunal Federal |
Estamos em um momento chave na hist�ria do pa�s. Nunca se viram tantos integrantes da elite pol�tica e econ�mica sendo investigados por corrup��o. Todavia, h� um longo caminho a percorrer at� que a lista de Fachin resulte em algum tipo de condena��o. Mesmo uma reforma pol�tica capaz de minimizar incentivos � corrup��o ser� insuficiente, se n�o vier acompanhada de outras para garantir que a corrup��o seja efetivamente punida.
Nesse ponto, por�m, h� um desafio adicional. No Brasil, h� diversos arranjos institucionais e garantias processuais que minimizam a probabilidade de puni��o de corruptos. Boa parte dessas prote��es foram adotadas no momento de transi��o democr�tica, motivadas pelo temor de um retrocesso �s pr�ticas adotadas pela ditadura militar. Pareciam perfeitamente justific�veis naquele momento. Mas ser� que ainda fazem sentido, na mesma extens�o, no contexto presente?
Enquanto o pa�s assiste estupefato a uma lista cada vez mais longa de investigados por corrup��o, diversos juristas, professores de direito e advogados descrevem a Lava Jato e seus desdobramentos como "ca�a �s bruxas".
Lembram que n�o se pode fazer justi�a sem obedecer o direito. Enfatizam a import�ncia de respeitar escolhas feitas pelo nosso ordenamento, como a n�o admissibilidade de provas colhidas ilicitamente em processo penal.
Em nome dessas escolhas, criticam o uso de pris�es preventivas para incentivar a colabora��o dos r�us em investiga��es de corrup��o. Esse uso instrumental do direito seria repugnante -uma verdadeira "tortura psicol�gica", para alguns juristas.
Esse discurso sugere que temos apenas duas op��es: obedecer aos procedimentos processuais em vigor no pa�s, interpretados da forma mais radicalmente poss�vel em favor do r�u, ou voltar � Idade M�dia. Mas n�o � t�o simples assim.
Argumentar que os procedimentos adotados nas presentes investiga��es seriam "um retorno ao autoritarismo" e "um retrocesso na evolu��o institucional do pa�s" aponta para riscos reais, mas ignora que h� alternativas.
N�o temos aqui uma escolha entre dois polos, mas um espectro de arranjos institucionais que permitem conciliar devido processo legal e combate ao crime. Basta olhar para sistemas jur�dicos que fizeram op��es distintas.
Na quest�o das provas il�citas, por exemplo, o Judici�rio pode subordinar a prote��o de direitos individuais ao interesse da coletividade, mas de maneira parcimoniosa e fundamentada, sem dar uma carta branca para autoridades judiciais e investigat�rias. Por exemplo, em 2009, a Suprema Corte canadense estabeleceu um teste para admitir provas colhidas ilicitamente baseado em tr�s crit�rios: 1) qu�o s�ria foi a viola��o da lei na colheita da prova; 2) qual o impacto dessa viola��o no acusado; 3) qual o interesse social a ser protegido naquele processo.
Ou seja, a ilicitude da prova apenas serve de obst�culo � condena��o se for muito mais grave do que a ilicitude do crime que possa ter sido potencialmente cometido. Caso contr�rio, prevalece o interesse p�blico.
Da mesma forma, aqueles que criticam o uso instrumental de pris�es preventivas n�o parecem indagar que tipo de pr�tica � adotada em outros pa�ses. Nos EUA, por exemplo, os promotores podem negociar senten�as menores com acusados que concordarem em confessar o crime.
Esse tipo de discricionariedade poupa tempo e dinheiro do sistema penal, tornando-o muito mais c�lere e efetivo. Corre-se, obviamente, o risco de que hajam erros e excessos. O pr�prio sistema dos EUA � alvo de muitas cr�ticas.
O Reino Unido, por sua vez, criou um sistema robusto de controle judicial dessas negocia��es em casos de corrup��o, justamente para coibir abusos. Considerar esses riscos como uma raz�o para n�o adotar essa solu��o equivale a jogar fora o beb� com a �gua do banho.
Em contraste com uma vis�o manique�sta, que sugere haver um �nico procedimento certo -uma �nica maneira de proteger direitos, precisamos reconhecer que qualquer arranjo institucional vir� com custos, benef�cios e riscos. Precisamos olhar para outros pa�ses e nos perguntar se h� mudan�as institucionais poss�veis para que o nosso devido processo legal n�o se transforme em garantia de absolvi��o.
Por exemplo, nos �ltimos anos, 17 pa�ses adotaram uma Justi�a anticorrup��o, com ju�zes especializados e garantias processuais mais adequadas a esse tipo de crime. � curioso que se discuta t�o pouco a possibilidade de adotar essa solu��o no contexto brasileiro.
Essa � s� uma das v�rias medidas em jogo quando olhamos para como outras na��es combatem corrup��o. Sem reformas institucionais desse calibre, � dif�cil acreditar que muita coisa mude.
O Brasil precisa reconhecer que a transi��o democr�tica acabou. Trinta anos ap�s o fim da ditadura, precisamos come�ar a nos perguntar de que tipo de ordenamento precisamos daqui para a frente. Precisamos aprender com a experi�ncia de tr�s d�cadas aplicando o sistema atual.
O �ndice baixo de condena��es penais por corrup��o no Brasil certamente indica que h� algo muito errado com arranjos institucionais e interpreta��es jur�dicas que adotamos at� ent�o. Ficar atrelado ao nosso passado apenas nos dar� mais do mesmo: muito direito e pouca justi�a.
MARINA MOTA PRADO � professora da Faculdade de Direito da Universidade de Toronto, Canad�
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