O encobrimento do Brasil
Reprodu��o | ||
Ilustra��o da chegada da frota francesa ao Rio de Janeiro em 1711 |
Em setembro de 1711 uma frota de 17 naus francesas, com cerca de 6.000 homens embarcados, entre soldados e marinheiros, apareceu na ba�a da Guanabara. Sob o comando de Ren� Duguay-Trouin, o cors�rio oficial a soldo de Lu�s 14, essa for�a atacou o Rio de Janeiro de surpresa, aproveitando-se de um s�bito e at�pico nevoeiro.
A pouca resist�ncia oferecida pelas tropas portuguesas foi rapidamente vencida. O grosso da popula��o fugiu pros morros e matas em torno da cidade, inclusive o governador. Os franceses permaneceram no Rio por quase dois meses de pilhagens, vandalismo e viol�ncias cometidas a ferro e fogo, a torto e a direito. Os piratas pediram 12 milh�es de cruzados pra deixar o Rio sem reduzir tudo a cinzas. Era o estilo pirata de ser e estar: ou voc� me paga um resgate ou em boto a sua cidade abaixo. Mas s� foram contabilizados, pelo caixa, 1,610 mil cruzados, mais uma batelada de caixas de a��car e uns 200 bois. Muito mais, por�m, foi rapinado pelos invasores por baixo do pano. Calcula-se que os danos causados � cidade foram muito maiores que o resgate pedido por Duguay-Trouin.
Eis que em algum momento do futuro pr�ximo...
O dia nasce detr�s de um morro duplo. A grande ba�a � vista da nau capit�nea de uma frota fundeada no mar de fora. S�o 17 bergantins, escunas, brigues e galeotas com cerca de 6.000 homens embarcados. N�o � uma frota comum, j� que as embarca��es pairam 20 metros acima do n�vel do mar. Trata-se, pois, de uma frota a�rea, que muitos n�o hesitariam em classificar de fantasma.
Sentado numa poltrona fidalgal, Monsieur Le Captaine, Ren� Duguay-Trouin, levanta-se, numa excita��o de algo grandioso que est� prestes a protagonizar. Le Capitaine vai at� uma vigia, no interior da sua sala de comando, no castelo de popa da nau-capit�nea. Puxa uma luneta telesc�pica do bolso do seu elegante redingote de cetim vermelho. Devidamente desembutida, a luneta aponta para a costa. Os primeiros raios de sol que entram pela vigia fazem brilhar o bronze polido da luneta.
O calor vai se fazendo intenso no ambiente. Todos se abanam com chap�us e leques, em meio a b�ssolas, astrol�bios, compassos e mapas abertos sobre a mesa, ao lado de um candeeiro que vai se tornando cada vez menos �til � medida que a intensa luz de fora invade a cena atrav�s das vigias de estibordo.
Al�m do Capit�o Duguay-Trouin, cors�rio com estatuto de almirante a servi�o do rei de Fran�a, est�o l� dois membros de sua tripula��o que escreveram relatos sobre a primeira visitinha que o astucioso comandante fizera ao Brasil mais de 300 anos antes, Chancel de Lagrange e Guillaume Fran�ois du Plessis, mais a amante de bordo do capit�o, a esfuziante Suzette de la Cr�pe.
"Merde!", impreca Le Capitaine, irritado com as imagens da terra � vista que a luneta lhe traz. "Non �rra prra toute le monde en terre j� ter picado la mule pra florreste se cagan'de med� da chente? Foi ainsin do primerra vez, em 1711, non?"
Suzette, bela, nada recatada e totalmente avessa � ideia de lar, dirige-se at� seu engalanado amante e lhe toma a luneta. Duguay-Trouin esfrega as m�os de ansiedade enquanto a outra escrutina a paisagem ex�tica da terra � vista:
"Est�s a verr o que eu venho de verr, ma belle Suzanne?"
"Suzette."
"Oui, oui! Suzette, pardon."
"Si, monsier, eu estarr a verr que em t�rrno da c�st�, tem um florrrest� de edifications verticales. E nos enc�stas dos morr�s on voi un aglomerrad� de casul�s de tich�lo baian� agarradas nas morr�s."
Du Plessis faz um aparte:
"Eles ch�mann �sse aglomerrad� de casul�s de favel�."
Lagrange aparteia o aparte do outro:
"Hoche em dia �les preferrem diss�r comunidade. �les achan mass elegante que favel�".
Suzette de la Cr�pe continua sua investiga��o ocular da terra que ela aprecia pela primeira vez, pois n�o participara da expedi��o de 1711:
"Ah! V�cho tamb�nn une estatue enorme de Christ de bra��s aberrt�s sur la Guanabarr�. E la plage!... Oh!... Mon Dieu! C'est incroyable, �a! T� cheia de chente na plage chogando football, v�lei, frescoball... facendo churrasque... surf... et sex! U-lal�! Beaucoup de sex!
Duguay-Trouin se inquieta:
"Mass... eles non ton vendo a chente?..."
"Ningu�m t� nem a� prra n�ssa presence a�rienne. Acho que est�mos invisibles," responde Suzette.
"Do primeirra v�s �les tamb�n non viran a chente. Mas �rra pour cause dum forrte nevoeirr�."
"H�che non ten nevoeirr�. T� tout le monde dans la plage..."
"Voc� non t� achando esse neg�ci� de churrasque um peu �trange, mon amour? Reparre bien: eu vi perrna, brra�o, quarrto de t�rrax de chente humaine assando no feu..."
"C'est vrai! � une bras�, m�rra!", exclama Suzette de olho na luneta. "E as b�las do foot e do v�lei sont cabezas humaines tamb�nn... Quel horreur!"
"C'est de la anthropophagie!"
"Oui, monsieur. Ils sont vraiment des sauvages, ces br�siliens!"
"Bon, bah, je m'en fou," responde o Capit�o. "Les br�silien sont comme �a: �les fican se comendo uns aux autres tout le temps, en todos os sentid�s imaginables."
"Du Plessis!", brada o Capit�o.
"Oui, monsieur le Capitaine!"
"Tem cert�ssa que aqui � le Br�sil br�silien moderrne?"
"Oui, mon Capitaine. S� que le Br�sil, como pays, non egziste plus. Le vieux Br�sil c'est fini, monsier le Capitaine."
"M�... Como c'est possible? Un pays non deicha de egzistir de une heure parra �trra..."
Du Plessis, a testa porejada de suor, se adianta, arrastando no ch�o a ponta da bainha de sua enorme espada:
"� como relat�rron n�ssos achentes infiltrad�s: les br�siliens acabarron com le Br�sil. Le territoire t� todo divis� en feud�s, cidades-estad�s, republiques auton�mes, tirranias aloprradas, societ�s anarrc�-syndicalistes... Une confusion du carraille!"
Lagrange toma a palavra:
"N�ssas informations don conta de que o estade de San Pol�, a 400 quilom�tres d'ici, � ag�rra une monarchie semi-democratique. Le roi se chama D�rri� Premier e la reine c'est Sabrin� Boing Boing, Marquise du Tatuap�, que s� anda pelade de l� pra c�. Min�ss Gerrais se divis� en trois pays aliad�s: Belorrizon, Triangule Mineirr� e Serr� de la Canastrr�. O Rio Grand du Sud c'est la Republique Farroupilh�. O Acre a retourn� pro territoire de Bolivi�..."
Mais do que confuso, Duguay-Trouin mostra-se estupefato:
"Mais, comme toute cette merde foi acontecerr?!"
Du Lagrange explica:
"L'ancien Br�sil se acab� de une h�rra pra �trra. Toute la classe politique foi mandada prro xilindrr�, depois que tout le monde a comenc� a delat� les marracutai�s de tout le monde. Foi un sangrria dessatada, comme dissia o actuel imperradorr du Parr�, D. Juc� I. Beaucoup de merrde a et� lanc� dans le ventilateur general de la nation. O vice-president�, que tinha impichad� la president� de son tr�ne, virr� president�, mas tamb�m foi de bouche pra lon�. Non sobrr� ningu�nn na cumbuca convexe nem na concave l� do Congrress�, nem no Tribunnal Supr�me, nem en partie alguna de la nation que pudesse ou quisesse ocupar la presidence de la republique. Lulal� foi parrar em Curritib�, avec toute la classe politique du vieux pays. Il passe tout son temps chogando truc� com monsieur Tirrirric� et monsieur Cunh�. La republique fu� pras cucui�ss. C'est foutu! Fodeu, comme �les dissen."
"Oui," emendou Du Plessis. "Syndicats, partid�s e at� m�me des �quipes de football crriarron milici�s arm�es. Tout le monde est en guerre contre tout le monde. Les mouvements separatistes du nord, nordeste, oueste, sudoueste et sud que tomarron le pouvoir tamb�nn est�n en guerre."
Lagrange, ansioso por dar seus pitacos, aponta pra vigia:
"A plage que voc�s eston vendo l� f�rra, porr egzemple, fait parti ag�rra do prrincipado unificad� de Ipanem�, Leblon, Jardan Botanic� e Jacarrepagu�, goverrnad� porr um tall de Grand Generral Bolsonarr�, um maluque sanguinaire. S� que, dans la verit�, ningu�nn obed�sse ningu�nn. Est�n tous en guerre frratrricide contra la Republique Libre de Copacaban�, gouvern� pour dictateur que se chamad� D. Pachec� Do-Ril, proprietaire de una grand r�de de pharmacies. La sede du gouvernement c'est l'�difice Chopin, dans l'avenue Atlantique. La chanceller s'apelle Narcis�
Tamborindeguy, une fameuse socialite."
Suzette, alheia ao bif�o dissertativo de Lagrange, parece se deliciar agora com o que v� pela luneta:
"Comme sont gostossinh�s esses bresiliens! Todos sarradinh�s e assanhadinh�s! E tamb�m assadinh�s, pelo que je peu voir. Inda bem que non fuchiram! T� me batendo une f�me de h�me...."
"Ridicule!" -solta Duguay-Trouin.
Insolente como toda boa cortes� de alto bordo, Suzette de la Cr�pe devolve bruscamente a luneta ao Capit�o:
"O que � ridicule, Ren�? O que eu venho de parler? Que eu t� com dess�cho por aqueles garcons tessud�s de la plage? Quel est le probleme? Meu corrp�, minhas r�gles!"
"Non, mon amour! Ridicule, que je dis, c'est le Br�sil terr deichado de egzistir e ca�do nesse grand surrub� anthropophagique. Ils ont retourn�s a 1.500!"
"Non, mon cher. Ridicule � a chente aqui parland� le portugais com esse absurde sotaq fran�ais de Arrarraquarr�! Chega, non?"
Du Plessis e Lagrange trocam um olhar de aprova��o. De fato, ningu�m ali aguenta mais aquele sotaq fajut�.
O capit�o joga um olhar duro pra sua navegante amante, mas a vis�o do decote panor�mico de madame o desarma.
"Ok, falemos portugu�s normal, ent�o," ele concede. "Mas fique bem claro que estamos a falar o mais leg�timo franc�s do s�culo 18 com tradu��o simult�nea. Da mesma forma que romanos antigos e dinamarqueses medievais falavam o mais perfeito ingl�s elizabetano nas pe�as do Shakespeare."
Todos assentem, aliviados. O Capit�o volta a lunetar a ba�a e seus entornos, descrevendo o que v�:
"Hehehe! As f�meas da terra mal escondem le fiof� com um fio e deixam os n�degas ao l�u. E o suti� do biqu�ni � s� uma bandeja oferecendo seu conte�do ao pleno sol! Magnifique! Ali�s... ou muito me engano ou acabei de ver uma delas sendo decapitada... oui, oui... est�o esquartejando a mo�a agora... e fincando os peda�os de seu corpo nuns espetos... e botando os espetos pra assar numa fogueira... U-lal�..."
Lagrange e Du Plexis correm a espetar suas pr�prias lunetas nas vigias dispon�veis. Logo est�o soltando ohs e ahs e ulal�s, impressionad�ssimos com o espet�culo que lhes � dado assistir.
Suzette arranca a luneta da m�o de Du Plexis e d� mais uma espiada:
"Afe Marie! � o t�pico ass�dio sexual machista sulamericano levado ao paroxismo," ela rosna. "O macho latinoamericano v� o corpo da mulher como
um banquete � sua eterna disposi��o."
"Literalmente," concorda Duguay-Trouin, muito excitado por dentro da cal�a justa de cors�rio oficial a servi�o de Lu�s XIV.
"Hummmm!.... ", faz Du Plessis, aspirando o ar marinho. "Sinto at� um cheirinho de garota de Ipanema na brasa..."
Lagrange sacode a cabe�a em desalento:
"N�o era assim em 1711 quando aportamos aqui pela primeira vez, ainda com o casco assentado nas �guas do imenso Atl�ntico...", rememora Du Plessis.
"C'est vrai," concorda o Capit�o. "A cidade tinha um governo e um governador em 1711. Era um frouxo que correu pro mato com o rabo entre as pernas quando chegamos barbarizando. Mas era o governador, assim mesmo. Foi com ele que, bem ou mal, negociamos o resgate, se bem me lembro."
Du Plessis logo se entedia com a cena que espiona. E diz, depois de um longo suspiro:
"Foram dias maravilhosos de pilhagem, esb�rnia e destrui��o, de setembro a novembro. Nos vingamos das antigas tundas que nossos compatriotas levaram dos portugas nessas costas brasileiras. Villegagnon e Du Clec foram devidamente vingados. Enchemos as naus de recursos n�o contabilizados, ouro, j�ias, cacha�a, coca�na, diamba, cheirinho da lol� e o que mais nos apareceu pela frente ao longo de muitos dias de saque amplo, geral e irrestrito, e do mais feroz vandalismo."
Du Plessis emenda:
"A gente abria as pipas de vinho a tiros de pistola, fazendo jorrar o vinho direto em nossas goelas. As ruas do Rio viraram um loda�al de vinho, biscoito Globo esfarelado, sangue, esperma e excrementos. E mais as l�grimas dos derrotados cariocas que n�o haviam fugido a tempo, somadas �s dos que retornaram das matas, quando fizemos velas com as naus recheadas do butim que amealhamos. Encontraram sua cidade machucada, rapinada e em boa parte reduzida a cinzas, como se legi�es de hunos e visigodos de porre tivessem passado por ela."
O Capit�o, sorumb�tico, agrega:
"E agora est�o l� se comendo uns aos outros, sem modos, sem lei, sem rei que se d� ao respeito da turba... Quer saber? Vamos arrepiar caminho. J� rapinaram tudo por l� e a vida n�o vale nada. O que haver�amos de trazer � bordo al�m de drogas batizadas e carne humana faisend�?"
"Se for carne humana viva e palpitante...", suspira a l�brica Suzette de la Cr�pe, pensando nos rapag�es sarados da praia.
Lagrange e Du Plessis tamb�m parecem se animar com a possibilidade de desfrutar de carninhas humanas in natura, femininas, no caso, e ainda n�o esquartejadas e assadas.
Mas Duguay-Trouin j� abre a porta da cabine para gritar � marujada:
"Allez corsaires de la patrie! De volta pra nossa douce France! Antes, vamos jogar uma lona por cima desse ex-Brasil que se separou de si mesmo. � o Brasilexit! Vamos encobrir essa terra em transe descoberta pelos portugas! E vive la France! Vive Marine Le Pen sentada no colinho do Donald Trump!"
REINALDO MORAES, 67, � escritor, roteirista, cronista e tradutor
Livraria da Folha
- Box de DVD re�ne dupla de cl�ssicos de Andrei Tark�vski
- Como atingir alta performance por meio da autorresponsabilidade
- 'Fluxos em Cadeia' analisa funcionamento e cotidiano do sistema penitenci�rio
- Livro analisa comunica��es pol�ticas entre Portugal, Brasil e Angola
- Livro traz mais de cem receitas de saladas que promovem saciedade