Comiss�o da Verdade precisa ter 'mais atitude', afirma Marcelo Rubens Paiva
"A Comiss�o Nacional da Verdade � muito t�mida", disse o escritor Marcelo Rubens Paiva, 53, em entrevista � Folha, em seu apartamento em S�o Paulo. O filho do deputado cassado Rubens Paiva, um dos principais desaparecidos pol�ticos da ditadura militar (1964-1985), afirmou que esperava um "pouco mais de atitude" do grupo que investiga os crimes do Estado.
Um exemplo, afirma, � o recente epis�dio da morte do coronel J�lio Miguel Molinas (ex-chefe do DOI-Codi do Rio), em novembro, no Rio Grande do Sul. A fam�lia de Paiva recebeu a informa��o de que, t�o logo Molinas morreu, o Ex�rcito recolheu em sua casa caixas que conteriam documentos sobre crimes da ditadura.
Documento desmente vers�o de fuga de Rubens Paiva, diz Comiss�o da Verdade
Documento in�dito mostra como Rubens Paiva foi preso
Livro sobre Rubens Paiva deve ser lan�ado neste ano
A Comiss�o da Verdade recebeu da fam�lia do coronel documentos desse arquivo referentes aos casos Rubens Paiva e Riocentro, mas Marcelo diz acreditar que a maior parte foi escondida pelo Ex�rcito.
Ora sarc�stico, ora angustiado pelos 42 anos de espera pela verdade, o escritor comentou a divulga��o pela Folha, na �ltima segunda-feira (4), de um documento in�dito que indica que Rubens Paiva morreu nas depend�ncias do DOI-Codi, em janeiro de 1971.
O autor de "Feliz Ano Velho" disse ainda que a grande personagem da fam�lia � sua m�e, Eunice, que sofre do mal de Alzheimer. Ela se tornou uma pioneira da luta pelos direitos humanos no pa�s logo ap�s sair da pris�o, dias depois da morte do marido.
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Folha - O caso do desaparecimento do seu pai est� solucionado para a fam�lia?
Marcelo Rubens Paiva - N�o. At� agora, o que foi revelado a gente j� sabia, s� n�o tinha o documento, o timbre. A novidade � a prova de que ele foi morto nas depend�ncias do DOI-Codi. Mas a gente j� sabia que ele morreu ali dentro.
O que falta ser descoberto?
Primeiro, quando ele realmente foi morto. Segundo, o que fizeram com o corpo, onde est�, como foi essa opera��o. S�o os mesmos torturadores que torturaram todos os caras no DOI-Codi do Rio no mesmo per�odo. Tenho muita curiosidade de ver esses caras prestando depoimento, o que parece que � um pr�ximo passo.
A Comiss�o da Verdade est� bem amparada em termos de informa��o?
A comiss�o � muito t�mida. Vou ser bem fantasioso, como escritor eu gosto de fazer compara��es absurdas, mas eu esperava um Kevin Costner, do filme "Os Intoc�veis", uma forma de ca�ar os verdadeiros g�ngsteres com um pouco mais de atitude. A comiss�o tinha que bater na porta dos caras que ela quer que sejam ouvidos. Contrasta um pouco com o que foi a repress�o pol�tica, como as For�as Armadas se comportaram e como a comiss�o ataca esses objetivos de esconder a verdade.
Quando ela foi t�mida?
No caso do coronel J�lio Miguel Molinas, ex-chefe do DOI-Codi do Rio, l� no RS. A gente ouviu falar que, um dia depois da morte dele [1� de novembro], houve uma opera��o do Ex�rcito que cercou a casa e levou caixas e caixas de documentos. A Comiss�o da Verdade � que deveria ter chutado a porta do cara com um grupo de investigadores de alto n�vel, porque afinal � uma comiss�o oficial do governo brasileiro. Devia ter pegado essas caixas. Se por um lado o Ex�rcito vai l� e chuta a porta, a comiss�o pede um of�cio. � tudo muito lento.
A comiss�o avisa a fam�lia antes de divulgar?
N�o. Foi uma queixa da fam�lia. A gente n�o quer mais ficar lendo as coisas pela imprensa, � muito chato. A gente prefere ser avisado antes.
Por que o seu pai incomodava a ditadura militar?
Meu pai tinha 32 anos quando foi deputado federal e se descobriu que estava um clima de pr�-golpe, atrav�s do Ibad (Instituto Brasileiro de A��o Democr�tica), para criar um clima de que o Brasil tinha possibilidade grande de se tornar um sat�lite sovi�tico. E meu pai fez essa CPI, chegou a inquirir generais que tinham recebido cheques.
Houve o golpe, foi at� mais r�pido do que se imaginava. Meu pai foi exilado, voltou escondido e ele manteve contatos com o pessoal da esquerda, do Partido Comunista Brasileiro, com os jovens que tinham votado nele. Junto com outras centenas de brasileiros, ajudava essas pessoas. Ajudava a esconder pessoas, por exemplo. Vira e mexe, dormia uma pessoa na minha casa que eu n�o sabia quem era, acho que era do Partido Comunista Brasileiro.
Seus pais lhe contavam sobre o que era essa movimenta��o pol�tica que tinha na sua casa?
A gente sabia. A Eliana Silveira, uma grande jornalista, � uma que eventualmente dormia na minha casa, no meu quarto. Eu ficava p� da vida porque eu quem tinha que sair do meu quarto. A gente n�o perguntava, mas a gente sabia que era uma coisa que n�o se podia perguntar, n�o era coisa para crian�a. Mas n�o tinha dinamite, metralhadoras, nem eram guerrilheiros. Geralmente era mais o pessoal do partid�o que se escondia na minha casa.
Qual � a sua lembran�a do dia em que seu pai foi preso?
Eu tinha 11 anos. A casa toda cheia de militares com metralhadoras. Era pat�tico porque eles achavam que era um "aparelho". E era feriado, Dia de S�o Sebasti�o. Deu praia. Em frente � minha casa, tinha uma rede de v�lei famosa, que era a do Chico Buarque e da Marieta [Severo].
Ali era um point, as pessoas iam para a praia e deixavam as coisas l� em casa. Ent�o iam chegando. Chegou o namorado da minha irm�, de 16 anos, e prenderam o cara. Chegou o neto do Caio Prado Jr., coincidentemente ide�logo comunista no Brasil, que ia para a praia, e prenderam. Era contrastante com o que aquela casa representava.
Existem algumas hip�teses para qual pode ter sido o destino do corpo do seu pai. Qual vers�o, na vis�o da fam�lia, � a mais prov�vel?
Esse corpo eu acho que ele n�o foi para um lugar e est� at� hoje, eu acho que ele deu uma passeada. A primeira hip�tese � a de que ele tenha ido para a Barra da Tijuca, que na �poca era um lugar ermo.
Existe a possibilidade de ele ter sido enterrado tamb�m no Corpo de Bombeiros do Alto da Tijuca, chegou at� a ser aventada a possibilidade de uma grande varredura, que come�ou a ser operada pelo "Fant�stico", pelo Pedro Bial, dirigindo um trator, mas nunca se achou um corpo.
Voc� quer que os respons�veis pela morte do seu pai sejam punidos?
Tem ditador na Argentina preso, o Alberto Fujimori est� preso, tem cara no Chile preso. Se isso poderia acontecer no Brasil? Seria o ideal, mas � dif�cil.
Ser� que a sociedade quer isso? As sociedades argentina, chilena e uruguaia quiseram. Eu acho que, se f�ssemos realmente at� o fim, o ideal seria uma puni��o mesmo.
Voc�, nesses 42 anos, j� fez algum tipo de investiga��o pessoal dessa hist�ria?
N�o. J� recebi um telefonema de um cara que participou da tortura na Aeron�utica e n�o tive coragem de ir atr�s. Ele morava no vale do Para�ba, e eu mandei o Pedro Bial. Coitado do Pedro Bial [risos]. Ele estava no "Fant�stico" na �poca e falou: "Deixa que eu vou". Chegou l� e o cara tinha sofrido um derrame, olha s�! N�o conseguia falar.
Eu nunca fui muito atr�s. Eu sei onde esses caras est�o, mas o que � que eu vou fazer? Vou l� e olhar para a cara dele e dizer: "Oi, tudo bem? Por que voc� fez isso?". N�o, n�o d�.
O �nico livro em que voc� escreveu sobre o caso do seu pai foi "Feliz Ano Velho"?
Foi. Na verdade, nem nesse livro eu tinha escrito. � t�o engra�ado isso, porque j� tinha sa�do tanta coisa sobre o caso, e eu queria escrever sobre o meu acidente, sobre os problemas da minha gera��o.
Foi o Lu�s Travassos, ex-presidente da UNE, que estava voltando do ex�lio e falou: "Poxa, n�o vai falar do seu pai?". Eu falei: "Nossa, � mesmo, esqueci", e retomei. Porque eu sempre achei que minha m�e que iria escrever o livro sobre o meu pai.
No restante da sua obra, tem algum livro que se aproxima deste tema?
Tem um que escrevi sobre a Guerrilha do Vale do Ribeira, que � chamado "N�o �s Tu Brasil". Minha fam�lia tinha fazenda no vale do Ribeira, exatamente onde ocorreram alguns confrontos. Eu conhecia detalhes daquela hist�ria que eu poderia revelar e que a imprensa n�o conseguia porque eles tinham muito medo de falar. Eu conseguia falar com os caras, eram meus amigos de inf�ncia.
As pessoas que eu estava pesquisando foram presas e torturadas pelos mesmos repressores por quem meu pai foi preso e torturado. S� no final disso que eu percebi como eu estava fazendo esse caminho, como escritor-historiador, em busca do que aconteceu de fato com o meu pai. Atrav�s de um livro de fic��o eu soube mais sobre o que aconteceu com o meu pai do que pesquisando exatamente o que aconteceu com ele.
"Feliz Ano Velho" se integra a uma s�rie de outros livros daquele p�s-ditadura, que � uma �poca de revolu��o de costumes culturais...
O projeto era mais focado na renova��o da literatura brasileira, da linguagem mais coloquial, mais brasileira, com o cotidiano de personagens mais ligados em cultura de massa, renovando n�o s� a literatura, mas tamb�m uma forma de combater a ditadura, uma forma de se engajar politicamente.
Uma gera��o posterior � de 1968, que n�o participou da luta armada e que tinha uma liga��o forte com o rock'n'roll, a experi�ncia com drogas, a sexualidade sendo descoberta.
O ex-deputado Fernando Gabeira foi o nosso grande mentor, o primeiro a falar em drogas na literatura brasileira, o primeiro a falar em bissexualismo, falando das suas experi�ncias no ex�lio e relatando o per�odo da luta contra a ditadura de uma forma menos engajada e mais cr�tica. Eu acho que foi dessa retomada liter�ria que eu fiz parte.
Voc� tem inten��o de escrever sobre seu pai?
Tenho um projeto que � falar da luta da minha m�e. Descobri que a minha m�e foi muito mais importante que meu pai. Meu pai foi uma v�tima da ditadura, escondeu pessoas, foi um deputado importante, foi cassado, foi para o ex�lio, voltou escondido, foi torturado violentamente.
Mas a grande personagem da fam�lia � minha m�e, fundadora da Comiss�o Brasileira pela Anistia, organizadora do movimento das Diretas-J�. Foi presa no dia seguinte ao meu pai, no DOI-Codi, saiu tr�s dias depois. Desse dia em diante, o papel que ela teve foi o de uma verdadeira combatente contra a ditadura.
Voc� est� parecido com seu pai com esse bigode. Foi de prop�sito?
N�o, n�o, foi charme. Na verdade, estava tendo o Movember, um movimento para usarmos bigode pela preven��o contra o c�ncer de pr�stata. Tem essa coisa machista do homem que n�o faz exame de toque, n�? Que � at� gostosinho. E a� eu falei, "Ah, vou deixar meu bigode mesmo para protestar".
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