Descrição de chapéu
Olaya Hanashiro

O projeto de lei da hipocrisia

Como é possível falar em defesa da vida com tanto desprezo pela vida de mulheres e meninas?

Olaya Hanashiro

Cientista política, PhD pela London School of Economics and Political Science (LSE)

Defender a vida é se indignar com os quase 75 mil estupros a cada ano. É se indignar com o fato de que mais de 75% são de menores de 14 anos ou de pessoas sem condições de consentir. É se indignar com a realidade que faz do Brasil um dos países com mais casamento infantil. É se indignar com o número de meninas cuja infância é roubada pela violência ou pela entrada na economia do cuidado, meninas que trabalham em tarefas domésticas, tomam conta de seus irmãos ou são mães antes mesmo de se tornarem adultas. É se indignar com o estigma que mulheres sofrem por serem mães solo de filhos que não conceberam sozinhas. É se indignar com uma sociedade que não protege meninas, não apoia mulheres, não acolhe e não atende todas as vítimas.


Propor uma restrição ao direito constitucional de interrupção da gravidez decorrente de estupro, como pretende o projeto de lei 1904, é ignorar essa realidade. Mais que isso, é perverso propor que o aborto após a 22ª semana de gestação seja equiparado a homicídio. Aventar que uma mulher possa ter punição maior que a do estuprador é imoral. Pensar que uma menina deva passar por medidas socioeducativas nessas circunstâncias é cruel.

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Ato da Bancada Feminista do PSOL da Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp) e da Câmara Municipal de São Paulo contra o Projeto de Lei 1904 - Rafaela Araújo/Folhapress


Como afirmar que o sofrimento de quem passa por um aborto é maior do que o de uma gestação indesejada, fruto da violência e do desamparo? E, sendo esse sofrimento reconhecido, por que não priorizar o acolhimento das vítimas? Por que penalizá-las?


Como desprezar o argumento de que se trata do corpo da mulher? Há alguma lei que legisle sobre o corpo do homem? A negação do domínio da mulher sobre o próprio corpo é desumanizá-la, transformá-la simplesmente em incubadora. Ignora-se completamente o que é a gestação, sua complexidade, dificuldades e ignora-se até sua beleza.


Quando se fala em 22 semanas de gestação, ignora-se que muitas meninas nem sabem que estão grávidas, não entendem as mudanças em seus corpos violentados. Sabemos que a grande maioria dos estupros de menores de idade acontece dentro de casa, com pessoas de sua convivência, pais, avôs, tios, primos, irmãos, padrastos. Muitas vezes essa vítima não consegue fazer a denúncia, seja pelas relações afetivas com seu agressor, seja pela culpa que nela colocam, seja pela proibição imposta pela família. Quem levará essa menina ao médico?


Quando se argumenta que a vítima, se não puder ou não quiser criar esse bebê, poderá entregá-lo para adoção, como se isso tampouco fosse doloroso, omitem-se outras questões complexas. É certo que a maioria dos agressores não terá nenhum interesse nesse bebê, mas, e se tiver? O abusador poderá proibir sua adoção? O estuprador poderá reivindicar sua guarda?


Embora a violência sexual perpasse todas as classes e grupos sociais, o acesso a educação, informação, atendimento médico, apoio psicológico, proteção e amparo é tão desigual quanto é a realidade brasileira. A obstrução ao aborto legal já acontece na prática. São poucos os equipamentos públicos que o realizam, assim como os profissionais capacitados e dispostos a prestar esse atendimento. E é enorme a pressão de grupos religiosos, seja na atuação de conselhos tutelares, seja nas decisões dos conselhos de medicina, seja no trabalho diário de profissionais da saúde e de operadores do direito.


Assim como todas as crenças religiosas devem ser respeitadas, ninguém tem o direito de impor ao corpo de outra pessoa nenhum tipo de crença, seja religiosa, filosófica ou científica. Não há consensos sobre quando começa ou termina a vida, nem entre as diferentes religiões e correntes filosóficas, nem entre as diferentes abordagens científicas. Afinal, as posições adotadas, contra ou a favor, vêm de crenças pessoais e, por essa razão, a decisão final deveria ser pessoal, não do Estado.


Não há nenhuma lei que obrigue alguém a interromper a gravidez e não deveria haver nenhuma lei que obrigue uma pessoa a prosseguir com a gestação. Toda mulher deve ter condições para tomar a decisão que considerar melhor para si, sem ser estigmatizada E nenhuma menina deve ter sua vida desprezada.

Menina não é mãe!

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