Descrição de chapéu
Padre Júlio Lancellotti e Paulo Escobar

A pobreza como caso de polícia

Retirar barracas das ruas, sem ouvir as pessoas, não é trabalho humanizado

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Padre Julio Lancellotti

Vigário episcopal para a população de rua da Arquidiocese de São Paulo

Paulo Escobar

Sociólogo, é coordenador do Observatório de Aporofobia Dom Pedro Casaldáliga

Escrevemos esta réplica ao artigo "Rua não é endereço, e barraca não é lar" (26/2), assinado nesta Folha pelo prefeito Ricardo Nunes (MDB), como pessoas que há décadas e diariamente convivem com a população de rua na cidade de São Paulo.

O prefeito começa o texto dizendo que "o objetivo não é recolher barracas, mas reconstruir vidas de parte de uma população empurrada para as ruas". Nós vemos que, infelizmente, o objetivo tem sido, sim, recolher barracas de quem nada possui, pois, em uma metrópole que não dispõe de uma política habitacional que seja acessível aos mais pobres, qual é então a casa disponível para aqueles que perdem suas barracas?

Ao lado de barracas de pessoas em situação de rua, funcionários da prefeitura fazem limpeza na rua Anchieta, no centro de São Paulo - Danilo Verpa - 10.fev.2023/Folhapress - Danilo Verpa/Folhapress

Acreditamos que alternativas de moradia, ou a casa primeiro, são sinônimos de autonomia e dignidade, sem uma ONG tutelando (pois o prefeito afirma no artigo que há "trabalho sério, sem maquiagem, com foco na autonomia").

Reconstruir vidas a partir de que lugar? A reconstrução tem que levar em consideração o que essa população precisa, escutando as vozes nas ruas, a médio e longo prazo —e não somente quando as eleições se aproximam.

Conforme os números do prefeito, os dados gerados pela sua gestão dizem que há 20 mil vagas em albergues. Segundo a Comissão Extraordinária de Direitos Humanos da Câmara Municipal, em agosto de 2022 eram 17.107 leitos na capital. No fim de setembro de 2022, os albergues emergenciais de inverno fecharam.

O último censo da prefeitura, de janeiro de 2022, apontava que eram 31.884 pessoas morando nas ruas —sem entrar na série de problemas metodológicos do levantamento, pois a UFMG apontou em janeiro deste ano que, de acordo com o CadÚnico, são 48 mil nessa situação.

Se há 20 mil leitos e, no dia de hoje, todas as pessoas decidissem seguir para essas vagas (que o prefeito afirma dispor), onde ficariam as outras 11.884 que sobrariam?

O prefeito cita no artigo que "o direito de aceitar acolhimento ou não tem de ser respeitado, assim como o direito de ir e vir de todos que vivem ou transitam na nossa cidade". Mas há também o direito de recusar o acolhimento de uma rede de albergues, tutelada por ONGs e seus interesses, além da precariedade de muitos desses locais —geralmente, quem não aceita é reprimido.

Ao falar em "direito de ir e vir", o prefeito incentiva a aporofobia [aversão aos pobres] no restante da população. Fica a sensação de que as pessoas estão na rua porque querem, como se o problema central da capital paulista fossem as barracas. As mesas de bares nas calçadas, festas fechando as vias e grades em frente à prefeitura também não interrompem esse direito de ir e vir?

"(...) parte de uma população empurrada para as ruas", diz no artigo. Empurradas por quem ou pelo quê? Um cenário sistêmico de descarte, de pobreza contínua, de uma estrutura que empobrece milhões em detrimento da riqueza de uns poucos. Esses cidadãos não brotaram de um dia para o outro nas ruas de São Paulo; são histórias variadas e diversos tipos de violências sofridas.

Infelizmente, as alternativas citadas pelo prefeito são mais do mesmo. São de tutelas, únicas e não variadas, pois seguem uma mesma lógica, pensada sem levar em consideração a pluralidade que há nas ruas, a diversidade de pessoas que moram nas calçadas, sem a autonomia que todos desejamos para nossas vidas.

O prefeito fecha com "não podemos ser míopes nem tapar o sol com a peneira para os problemas. Por isso, de cara limpa e alma tranquila, sei que estamos caminhando na direção certa (...) junto com uma grande equipe". Se não conhecemos a realidade, aí sim corremos o risco de sermos míopes ou de tapar o sol com a peneira. Não é possível ter a alma tranquila quando milhares são destinados a morar em barracas ou reprimidos todos os dias pela atual gestão. Quase não vemos sua "grande equipe" nas ruas. A cabeça pensa onde pés pisam.

Mesmo pensando com a lógica da administração municipal, o número não fecha. Lógica vertical e cheia de contradições, numa cidade que não tem alternativas reais de habitação e autonomia. O que sobra para os que ficam do lado de fora? Não é o respeito que o prefeito aponta; os que ficam de fora sofrem repressão e violência.

A pobreza como caso de polícia —isso não é trabalhar de forma humanizada nem respeitosa.

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