Descrição de chapéu
Sylvio Fraga

'Nem um nem outro' é trágico

Conservador que renegar Lula abraçará a extrema direita

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Sylvio Fraga

Compositor, poeta e diretor artístico da gravadora Rocinante

Vi, de dentro da minha casa, momentos da transição econômica entre os governos Fernando Henrique Cardoso (PSDB) e Luiz Inácio Lula da Silva (PT) —meu pai, Arminio Fraga, era presidente do Banco Central de FHC.

Com 16 anos, vi o novo presidente do BC, Henrique Meirelles, na sala da nossa casa em conversas cordiais e técnicas. Presenciei um longo telefonema entre meu pai e Antonio Palocci, então ministro da Fazenda —pessoas de campos políticos antagônicos buscando o melhor para o país. Mal sabia que assistia à democracia em pleno funcionamento saudável.

homem branco de óculos e barba e calvo toca instrumento
O músico e poeta Sylvio Fraga - Divulgação

Lula, mesmo mantendo os fundamentos das políticas econômicas de FHC, bradava contra a "herança maldita", e nisso seu populismo foi infeliz. Ele também perdeu oportunidades em não usar o seu apoio no Congresso para fazer reformas importantes. Mas isso não diminui as realizações —algumas extraordinárias— de seus governos. Escândalos de corrupção turvam a visão, mas não apagam importantes legados.

As cotas raciais foram uma revolução. Hoje, muitos candidatos negros e negras concorrem e são eleitos porque puderam frequentar as universidades públicas. Na mesa entre amigos brancos, tenha certeza: a ausência de pessoas negras muda o rumo e a natureza da discussão, e o mesmo vale para a Câmara e o Senado. As cotas nos ajudam a ter representatividade na esfera pública e são um antídoto contra o perigoso branqueamento da nossa história e cultura.

Pegue as cotas e o fortalecimento das universidades públicas no governo Lula e junte-os à preservação da Amazônia recorde em seu governo (compare Marina Silva a Ricardo Salles), à comprovada redução da desigualdade, à erradicação daquilo que nos é alienígena: a fome.

Agora compare isso ao governo Jair Bolsonaro (PL), em que a fome voltou a assombrar 33 milhões de brasileiros. Desafio-o a citar avanços tão importantes. É evidente que a percepção desses avanços depende da sua constelação de valores. Se os seus se alinham aos que citei acima, incluindo a laicidade do Estado e o apoio à cultura, os progressos da era Lula são inegáveis.

O atual governo fala em honestidade, mas os exemplos de corrupção do presidente e de sua família são inúmeros: orçamento secreto, compra de imóveis com dinheiro vivo, sigilo de 100 anos, superfaturamento na compra de vacinas, rachadinhas etc. Acima de tudo, sabemos que milhares de pessoas não teriam morrido na pandemia se praticamente qualquer outra pessoa fosse presidente, bastando não ser um negacionista irresponsável, amoral e cínico: "Todos vamos morrer um dia", disse ele.

Os ataques truculentos de Bolsonaro ao STF, ao processo eleitoral, à Anvisa, ao Inpe, às universidades públicas, à Funai, só para citar alguns, fragilizam nossa democracia de modo assustador.

Neste segundo turno, ao se abster de votar em Lula, você acaba se aliando aos valores do bolsonarismo; aos eleitos Salles, Damares Alves e Eduardo Pazuello; à placa quebrada com o nome de Marielle Franco. É estar ao lado de cloroquina, terraplanistas, desmatamento, armas, das constantes atitudes e falas que ferem as instituições democráticas e científicas —de um imenso retrocesso dos valores humanistas.

Isso não é ser conservador, amigo conservador. O antipetismo acaba se tornando apoio às pautas da extrema direita. Lula nunca governou como extremista e não é agora que vai começar, ainda mais ao lado de Geraldo Alckmin (PSDB), seu vice.

Considerando o novo Senado e as futuras vagas no Supremo, se Bolsonaro vencer você estará no lado da história do qual se arrependerá amargamente, talvez no exílio. "Nem um nem outro" é uma simplificação que poderá ter consequências trágicas para todos nós, sobretudo —e sempre— para os mais vulneráveis.

TENDÊNCIAS / DEBATES
Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.