Há 30 anos, o 2 de outubro entrou para a história como o dia da maior chacina ocorrida no sistema carcerário brasileiro e talvez do mundo. Comandada por autoridades públicas, a Polícia Militar de São Paulo executou ao menos 111 pessoas sob a custódia —e, portanto, sob responsabilidade— do Estado no episódio que ficou conhecido como o massacre do Carandiru.
Nesses últimos 30 anos, nenhuma autoridade foi investigada, poucas famílias indenizadas, nenhum sobrevivente foi reparado por lesões e trauma e o processo criminal contra os PMs se arrasta no Judiciário, que ainda não foi capaz de produzir uma única condenação definitiva.
Ocorrido quatro anos após a promulgação da Constituição de 1988, o massacre do Carandiru põe a nu a fragilidade do Estado de Direito e os desafios para a consolidação da democracia em um país tão desigual, notadamente em termos raciais. Nas três décadas que se seguiram a ele vimos o aprofundamento do encarceramento em massa e o aumento das taxas de violência policial. Ambos atingem de forma radicalmente desproporcional a população negra.
Em 1990, eram 90 mil pessoas presas no país, número que, em 2021, saltou para mais de 820 mil. Não resta dúvida sobre a seletividade racial do sistema penal: de cada 10 pessoas no cárcere, quase 7 (67,5%) são negras. O encarceramento em massa de jovens negros envolvidos em crimes patrimoniais e em situações de pequena traficância é o atestado de que o Estado desistiu de sua juventude e prefere entregá-la de bandeja às facções criminosas.
São também os jovens negros que mais morrem, especialmente pelas mãos das forças de segurança. A polícia matou, apenas em 2021, mais de 6.000 pessoas —são 50 massacres do Carandiru. Mais de 80% dessas vítimas são negras, e a maior parte desses casos termina precocemente em pedidos de arquivamento feitos por promotores, que, sem nenhum esforço de investigação, chancelam as narrativas policiais —frágeis e contestáveis— de que houve legítima defesa.
Casos com repercussão midiática e mobilização conseguem ultrapassar essa barreira. Viram processos, mas encontram adiante a colaboração do sistema de Justiça em manter o cenário de não responsabilização. No caso do Carandiru, o Tribunal de Justiça de São Paulo tem responsabilidade direta pela demora da tramitação do caso e pelas anulações —sem embasamento legal— das condenações ocorridas nos júris do Coronel Ubiratan, em 2001, e dos PMs, em 2013 e 2014.
Apenas em 2021 o Superior Tribunal de Justiça restabeleceu as condenações dos PMs, e o caso está agora no Supremo Tribunal Federal. É simbólico que se fale em indulto e anistia dos policiais —além das reiteradas declarações do presidente Jair Bolsonaro (PL), há um projeto de lei tramitando na Comissão de Constituição e Justiça— quando o sistema de Justiça já se encarregou de postergar a responsabilização.
A Justiça que hoje mantém presas cerca de 230 mil pessoas sem condenação é a mesma que levou 30 anos para julgar o massacre e que diariamente arquiva inquéritos contra policiais violentos. A diferença entre um tipo de tratamento jurídico e outro é determinada pela posição das pessoas negras nas peças processuais: quando vítimas, há descaso e desresponsabilização institucional; se acusadas, há celeridade maquínica e condenações em massa.
Há alguns sinais de mudança, como o reconhecimento das prisões como "estado de coisas inconstitucional", pelo STF, e a ADPF das Favelas, mas ainda há muito o que caminhar para reverter o quadro de conivência do sistema de Justiça. Reconhecer e enfrentar o racismo constitutivo do sistema de "justiça" criminal é para nós o sentido da frase "Carandiru nunca mais!" e um dos desafios mais urgentes da nossa democracia.
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