A sociedade brasileira conheceu importantes transformações demográficas e de mentalidade na década que termina. No censo de 2010, sob a Presidência de uma mulher, pela primeira vez a maioria da população brasileira se autodeclarou negra (pretos e pardos). Desde então, essa proporção não parou de subir. De 2012 a 2019, os autodeclarados pretos cresceram de 7,4% para 9,3% da população total, enquanto os que se identificaram como pardos passaram a constituir, isoladamente, a maioria da população.
No mesmo censo que abriu a década, também as famílias homoafetivas brasileiras emergiram de forma inédita com expressão demográfica: 0,18% dos casais se declarou vivendo com um companheiro(a) do mesmo sexo, 20% deles com filhos.
Em 2013, o Supremo Tribunal Federal reconheceu o casamento entre pessoas do mesmo sexo como um direito constitucional e, em 2019, o crime de homofobia foi equiparado ao crime de racismo. Apenas em 2018 foram registrados 9.520 matrimônios homoafetivos no país.
A virada demográfica na identificação étnico-racial teve impacto também na desigualdade social. A pobreza na América Latina tem cor, mas a virada sugere uma possibilidade de mudança. No ano passado, em registro surpreendente, constatou-se que a maioria dos estudantes matriculados em universidades públicas federais é formada por negros.
O desenvolvimento de políticas públicas de ações afirmativas, sobretudo a aprovação do Estatuto da Igualdade Racial, em 2010, foi essencial para construir essa nova realidade.
Sem igualdade de oportunidades não existe mérito, mas privilégio.
Infelizmente, na década que termina, a desigualdade entre negros e brancos não se reduziu em proporção comparável ao crescimento da autodeclaração. Sintoma evidente de um racismo estrutural difícil de ser combatido em alguns casos, como nas estatísticas relativas à violência policial, que cresceu.
Também o reconhecimento constitucional das famílias homoafetivas não fez diminuir a violência homofóbica no país. Os discursos de ódio e intolerância que produziram a virada política que se expressou no golpe de 2016 e no resultado das últimas eleições presidenciais explicam-se, em grande parte, como reação à profundidade de mudanças estruturais ainda em curso.
Reconhecer os diferentes lugares de fala produzidos por experiências específicas de sofrimento e discriminação é precondição para a convivência democrática em realidades pós-escravistas e ainda patriarcais como a brasileira.
Criticar os movimentos identitários pelo crescimento do neofascismo no Brasil é como culpar a vítima pelo crime de estupro.
Numa perversão da democracia, uma maioria conservadora eventual tenta solapar direitos conquistados por grupos historicamente minorizados ou invisibilizados. Apesar disso, empatia e reconhecimento dos direitos das minorias ou, no registro político liberal, a defesa da clássica “liberdade negativa”, são chaves que podem nos permitir resistir, democraticamente, como sociedade, à perversão politica do bolsonarismo.
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