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Reforma judicial em Israel ameaça identidade do país, diz especialista

Para Revital Poleg, pacote pleiteado pela coalizão liderada pelo premiê Binyamin Netanyahu trai a história israelense

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São Paulo

Para Revital Poleg, que por quase 20 anos atuou como diplomata e assessora parlamentar em Israel, esta terça (11) foi um dia cheio de significado para seu país. Milhares de manifestantes bloquearam as principais rodovias do território, retomando os protestos contra a reforma judicial promovida pelo governo de Binyamin Netanyahu —medida que coloca em xeque o poder e a independência do Judiciário e, com isso, ameaça a democracia.

Forças de segurança de Israel confrontam manifestantes em ato no aeroporto Ben Gurion, perto de Lod - Gil Cohen-Magen/AFP

Os atos foram motivados pela aprovação de um dos pontos da reforma pelo Knesset, o Parlamento local. A coalizão governista atropelou três meses de negociações com a oposição ao votar em favor de um texto que proíbe os tribunais de usar o chamado "padrão de razoabilidade" para invalidar decisões do governo.

Em janeiro, a Suprema Corte usou esse recurso para ordenar o afastamento de Aryeh Deri, então número 2 do governo e titular das pastas do Interior e da Saúde, por uma condenação por fraude fiscal.

Em vez de "reforma", Poleg prefere se referir ao projeto de Bibi —forma como o premiê é conhecido— como uma "revolução".

"Eles estão abolindo conceitos básicos segundo os quais vivemos todos esses anos", diz. Segundo ela, que também é colaboradora do Instituto Brasil-Israel, o que está em jogo não é uma mera disputa ideológica, mas a própria identidade do país.

O Parlamento retomou nesta semana o trâmite da reforma judicial, e Netanyahu declarou recentemente que o projeto foi reformulado —e um de seus pontos mais polêmicos, que estabelecia que o Parlamento poderia reverter decisões da Suprema Corte, anulado. Qual é o status da reforma hoje?
A situação não está muito clara. O que é evidente é que a coalizão [governista] pretende continuar a revolução —que é como prefiro chamar o que está acontecendo em vez de reforma judicial, uma vez que ela mudaria a natureza de Israel caso fosse aprovada.

Sou uma "sabra", como chamamos uma pessoa que nasceu em Israel. Meus pais, como tantos outros, vieram para cá para criar um Estado que deveria ser democrático e liberal. Hoje isso está sob ameaça. A coalizão fala em reforma, mas não há nenhuma reforma aqui.

Eles estão abolindo conceitos básicos segundo os quais vivemos todos esses anos. Se a reforma se concretizar, estaríamos mais próximos de uma ditadura ou de um regime como o da Hungria [classificada pelo Parlamento Europeu de uma "autocracia eleitoral"] ou da Polônia.

O texto aprovado nesta segunda é visto como um dos menos problemáticos da reforma judicial. Nesse sentido, por que a sra. considera este momento tão emblemático?
Porque, embora esta seja apenas a primeira leitura do texto e não se saiba o que acontecerá na segunda e terceira [necessárias para que ele vire lei], sua aprovação mostra que o plano do governo é esse. A cláusula aprovada abre a porteira para a corrupção, para que decisões administrativas sejam tomadas sem pesos e contrapesos. Isso é muito perigoso.

Os manifestantes não pertencem a apenas um grupo social: há estudantes, militares, empresários do setor de tecnologia. Quem são essas pessoas nas ruas e o que as une?
A maioria é formada por israelenses comuns, que trabalham, pagam impostos, servem no Exército, formam famílias e criam filhos, e em geral não se importam com política. Há pessoas com estilos de vida muito diferentes entre si e que não costumávamos ver em protestos. Isso mostra que os atos recentes são de certa maneira únicos.

Não vejo o que está havendo como uma briga entre direita e esquerda, mas como uma guerra conceitual, sobre quem somos e como vivemos. E há muitos, na esquerda e na direita, que não querem a direção da revolução. Não importa em quem tenham votado nas eleições, eles simplesmente não querem uma ditadura.

mulher branca de óculos e cabelos grisalhos com franja
A consultora estratégica Revital Poleg, colaboradora do Instituto Brasil-Israel - Divulgação

Quando os protestos iniciais chegaram a um ápice, em março, Netanyahu recuou e decidiu negociar com a oposição. Acredita que ele vá fazer o mesmo se os atos voltarem a se intensificar?
Netanyahu é sem dúvida muito inteligente e sabe jogar para a plateia. Mas também precisa atender os desejos de sua coalizão. E hoje ele tem mais medo dela do que da população.

Os protestos têm, é claro, algum poder, não se deve subestimar isso, mas uma crise envolve outros fatores —por exemplo, economia, segurança, relações internacionais. E ele está prestando muita atenção a isso. Ao mesmo tempo, sua coalizão está se fortalecendo, e ela tem "chutzpah" [expressão em ídiche que significa audácia e se pronuncia "rrutspá"] para demandar o que prometeu a eles, que é mais radicalidade.

Além disso, o Knesset entra em recesso em algumas semanas e não volta até outubro, devido às férias de verão e aos feriados [Rosh Hashaná e Yom Kippur, ambos em setembro]. E, nesse período, embora os comitês legislativos sigam ativos, em geral não há votações gerais.

Então ele está tentando adiar a discussão para o final do semestre. Ele quer promover as mudanças, mas não quer que elas aparentem tão drásticas, quer um meio-termo.

Alguns analistas afirmaram que a incursão do Exército de Israel ao campo de refugiados de Jenin, na Cisjordânia ocupada —a maior do tipo em quase 20 anos—, foi uma reação de Netanyahu à pressão de membros de sua coalizão por ações mais duras. A sra. concorda?
Não posso concordar. A principal motivação [para realizar uma operação militar do tipo] é ela ser necessária. Não acho que a operação em Jenin tenha sido uma consequência da atuação do governo. As forças de segurança têm métodos para decidir quando e onde atacar.

Essas operações ajudam a acabar com o terrorismo? Infelizmente, não. Temos ministros no governo que clamam por ações ainda mais duras? Sim. O governo toma decisões de acordo com isso? Duvido.

Alguns veem a comoção popular em torno da reforma judicial como uma oportunidade para que Israel estabeleça uma Constituição.
É um projeto muito embrionário, e definitivamente não acho que seja a hora de implementá-lo. Mas ele é crucial no sentido de que, 75 anos depois [de sua fundação], Israel ainda não sabe para onde vai. E precisamos decidir isso. Porque há questões sobre religião, sobre minorias, que foram deixadas de lado e continuam no ar.

Muitas pessoas acreditam que algo bom pode vir disso, uma democracia ainda mais forte. Porque esse processo chamou a atenção para questões que não discutíamos.

Há alguma chance de a coalizão governista, a mais à direita da história do país, sair ainda mais fortalecida desses protestos?
Espero que não. Passaram-se apenas seis meses desde as eleições, e a coalizão segue forte. Eles podem brigar internamente, mas não sairão do poder, sobretudo Netanyahu.

Ao mesmo tempo —e talvez seja cedo demais para falar isso—, as manifestações têm potencial para mudar a política no futuro. Pode ser que, nas próximas eleições, concorram pessoas que nunca achamos que entrariam na política, mas que participaram das manifestações e perceberam que podem mudar a realidade.


Raio-X | Revital Poleg, 65

Consultora estratégica e uma das fundadoras do Centro Peres para a Paz e a Inovação, trabalhou por quase 20 anos como diplomata e assessora parlamentar em Israel. Foi representante da Agência Judaica no Brasil entre 2013 e 2018 e é colaboradora do Instituto Brasil-Israel.

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