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Empresa de Israel fez campanha contra Cruz Vermelha a pedido de Burkina Fasso

Ação buscou ligar organização de ajuda humanitária a grupos armados na tentativa de tirá-la do país

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Cécile Andrzejewski
Forbidden Stories

A reportagem abaixo faz parte da série Story Killers, uma investigação colaborativa sobre grupos de desinformação coordenada pelo consórcio Forbidden Stories, do qual a Folha faz parte.

Em agosto de 2020, quando o mundo ainda estava diante da primeira onda de Covid-19, a revista francesa de extrema direita Valeurs Actuelles publicou um texto de opinião de enfoque editorial peculiar.

O autor do texto, Emmanuel Dupuy, questionou as motivações do Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV), organização humanitária que dá assistência a vítimas de conflitos armados, em Burkina Fasso. Ele indagou se o CICV seria o "padrinho" e o "cavalo de Tróia involuntário do terrorismo em Burkina Fasso".

O ex-presidente de Burkina Fasso Roch Marc Christian Kaboré durante entrevista coletiva em Ouagadougou
O ex-presidente de Burkina Fasso Roch Marc Christian Kaboré durante entrevista coletiva em Ouagadougou - Olympia de Maismont - 8.jul.22/AFP

Segundo fontes, as acusações contidas no artigo seriam baseadas em parte em conversas que funcionários do CICV teriam tido com membros de grupos terroristas armados, com a finalidade de conseguir acesso a partes do país. O autor caracterizou a abordagem da organização como uma "concessão" e disse que um funcionário do CICV teria "dado suprimentos de comida a terroristas".

Compartilhado por veículos da imprensa burquinense como le Faso.net e Burkinfo 24, o artigo provocou uma controvérsia acirrada anti-CICV alimentada pelas redes sociais. "O artigo suscitou comentários violentos online e gerou receios quanto à segurança física de nossas equipes em Burkina Fasso", disse ao Forbidden Stories o diretor do CICV para a região da África, Patrick Youssef.

O CICV respondeu ao artigo da Valeurs Actuelles na época, reiterando que "o diálogo confidencial continua a ser um instrumento de valor comprovado para a realização de nossas missões diariamente". "É uma das principais ferramentas de uma doutrina operacional que vem sendo implementada há décadas."

Em outras palavras: o diálogo com organizações armadas garante a possibilidade de entidades humanitárias permanecerem neutras e independentes e continuarem a prestar assistência humanitária.

Um mês depois de a Valeurs Actuelles ter publicado o artigo, Peter Maurer, presidente do CICV, então em um giro pela região, aproveitou uma entrevista coletiva em Uagadugu para recapitular o papel do CICV no conflito. "Travamos diálogos com grupos armados não para agradar ou legitimar grupos armados ou governos. N��s o fazemos por uma questão de necessidade, de necessidade humanitária", disse.

Naquele dia, Maurer foi recebido pelo então presidente de Burkina Fasso, Roch Kabore. Oficialmente, o objetivo da visita era discutir "as intervenções de sua instituição no país", escreveu Kabore no Facebook. Superficialmente, tudo parecia estar bem entre a Presidência burquinense e o CICV. A portas fechadas, porém, atores nefandos orquestravam uma campanha contra a organização.

Na terceira parte do projeto Story Killers, o Forbidden Stories e seus parceiros investigaram a campanha contra o CICV. O consórcio descobriu que a campanha foi liderada por um dos dois diretores de uma empresa israelense, Percepto International, presume-se que a pedido do governo burquinense.

Em seu site, a Percepto International se anuncia como "os mestres da percepção" e oferece serviços de inteligência e cibernéticos, entre outros. A companhia vende principalmente "influência", mas também se caracteriza como parte engajada na luta contra a desinformação. Em vários textos compartilhados no blog da Percepto International e em sua página na plataforma online Medium, funcionários analisam campanhas virais de influência para informar o público sobre técnicas de manipulação. Em seu site, a Percepto destaca a importância de "não subestimar o poder das fake news".

Aposentado da Direção de Inteligência Militar israelense, na qual serviu por 27 anos, Royi Burstien, CEO da Percepto International, foi anteriormente gerente-geral da Psy-Group, companhia pioneira de influência fechada devido a investigações sobre a interferência russa na eleição presidencial americana de 2016 (o próprio Burstien foi investigado e então inocentado).

Já o cofundador da Percepto Liov Chorev afirma ter participado de cerca de cem campanhas políticas em níveis local, nacional e internacional, segundo o site da empresa. Entre seus esforços bem-sucedidos, ele diz ter sido estrategista-chefe das campanhas vitoriosas de Ariel Sharon para se tornar premiê de Israel em 2001 e 2003. Em 2006, Chorev assessorou Ehud Olmert, que também foi eleito primeiro-ministro.

A campanha contra o CICV em Burkina Fasso poderia ter passado despercebida se Burstien não a tivesse mencionado em uma reunião com os jornalistas do consórcio, que se fizeram passar por clientes potenciais. Em outubro e novembro de 2022, repórteres da Radio France, TheMarker e Haaretz participaram de quatro reuniões com Burstien e funcionários da Percepto responsáveis por influência, estratégia e inteligência. Essa metodologia secreta tinha o objetivo de acessar informações sobre o mercado de influência e desinformação, que de outro modo continuariam ocultas.

Em uma reunião, mostrando um PowerPoint carimbado com o logo da empresa, Burstien apresentou um "estudo de caso" com um cliente descrito como "gov.". O título do slideshow era "Limitar a intervenção de ONG destacada". "Nosso cliente tinha um problema real com uma ONG específica. A questão era: como tirar essa ONG do jogo e colocá-la de escanteio?", disse Burstien aos jornalistas. (Na época da campanha contra o CICV, a Percepto não existia enquanto empresa, e Burstien era diretor de outra companhia que operava na mesma área, mas ele apresentou o estudo de caso como sendo uma realização da Percepto.)

No slideshow, a Valeurs Actuelles e artigos da imprensa burquinense apareceram desfocados ou editados, mas foi possível identificar algumas pistas e rastrear a trajetória da controvérsia. Começou com o artigo publicado no veículo francês, reproduzido pela imprensa burquinense. Em seguida, uma reportagem da agência de notícias AFP amplificou o texto, culminando no encontro de Kabore com Maurer.

Em resposta ao consórcio, Patrick Youssef, diretor para a região da África do CICV, disse que a organização tem "interações regulares e positivas com o governo de Burkina Fasso". Mesmo assim, o consórcio descobriu que a origem provável da campanha difamatória foram declarações do CICV no início de 2020 denunciando prisões arbitrárias e maus-tratos de prisioneiros no país.

Burstien disse aos jornalistas infiltrados que a Percepto escolheu a mídia francesa para implementar o plano porque "conseguimos inteligência muito boa e soubemos que, se publicássemos na mídia local, ela não repercutiria". "Trabalhamos com a mídia francesa de nível um. O artigo viralizou em Burkina Fasso."

Ele também se gabou de um artigo publicado no Figaro, veículo de mídia francesa de direita que reproduziu a reportagem da AFP sobre a entrevista coletiva concedida por Maurer em setembro de 2020.

Restam perguntas quanto a como a "inteligência muito boa" de Burstien foi aparecer num artigo da Valeurs Actuelles. "Publicamos esse texto pensando se tratar de um artigo normal de opinião, mas parece que ele promove um interesse... E que não é apenas a opinião de um especialista ou de um político eleito, como em geral é o caso. Fomos ludibriados", disse ao consórcio o diretor editorial da revista, Geoffroy Lejeune. O texto foi "um erro editorial". (O artigo ainda está disponível no site da Valeurs Actuelles.)

Dupuy, o autor, alega que nunca ouviu falar da Percepto International. Disse ao consórcio que foi contatado por "Samuel Sellem, da companhia StoryTling, que estava trabalhando na época como assessor especial de comunicação presidencial" em Burkina Fasso. Dupuy disse que foi Sellem quem o alertou para o fato de que "o CICV poderia ter ligações com grupos armados terroristas", sem a sede da entidade "ter plena consciência disso", e alegou que não recebeu remuneração pelo texto.

(A empresa não respondeu a pedidos de entrevista.)

Dupuy teria acessado informações sobre a equipe do CICV em campo, segundo uma fonte bem informada, por meio de telefonemas grampeados com funcionários da organização. Ele disse: "Eu havia, de fato, ouvido falar desses grampos telefônicos, presumivelmente emanados do aparelho de segurança burquinense, logo, autorizados pelo Poder Executivo burquinense da época". Dupuy disse que não usou a informação para seu artigo devido à "sua natureza ‘secreta’’, ‘fechada’ e ‘questionável’".

Mais tarde, quando o consórcio procurou a Percepto, um porta-voz da empresa disse que ela não tinha informações sobre os telefonemas grampeados. Em relação à campanha contra o CICV em Burkina Fasso, Chorev disse que a companhia não participou, não "criou reportagens" nem "procurou jornalistas".

Quanto ao estudo de caso "ONG" carimbado com o logo da Percepto, Chorev disse que "pode ser um estudo de caso não diretamente relacionado à empresa, mas um estudo de caso geral", destacando que sua empresa utiliza muitos exemplos desse tipo com clientes e "trabalha estritamente nos limites legais".

A campanha contra o CICV é apenas uma amostra dos serviços da Percepto. Nas reuniões com jornalistas, Burstien insistiu sobre a eficácia do que descreveu como "campanhas não atribuídas", que são impossíveis de ser vinculadas ao cliente ou à companhia de influência.

Como exemplo, disse que a Percepto criou uma ONG para um governo africano que ele não identificou. A Percepto alegadamente controla a organização, que utiliza como veículo para promover as ideias do governo sem o conhecimento de seus funcionários. Citando outro caso, ele disse que a Percepto inventou uma agência de notícias para apoiar um candidato numa eleição presidencial, sem o conhecimento dos jornalistas da agência (o Forbidden Stories não conseguiu verificar essas alegações).

A companhia também desenvolveu "avatares profundos", que, segundo explicou Burstien, são "entidades online que parecem reais". "Se um de nossos avatares profundos se comunicar com você, você sentirá certeza de que é uma pessoa real." Segundo informação que o consórcio checou com especialistas, ao menos dois desses avatares se apresentam como mulheres jovens que trabalham como jornalistas.

Em sua foto de perfil no Twitter, Chloé Boyer, a primeira avatar, usa rabo de cavalo loiro e óculos de sol. A segunda, conhecida como Anita Pettit, tem contas de Twitter e Facebook a partir das quais posta textos que ela publicou em seu blog "Pour la vérité" (pela verdade). Pettit parece tão real que, depois de escrever sobre líderes políticos burquinenses em seu blog, virou alvo de um ciberataque.

A Percepto negou responsabilidade pela conta falsa. Mas, em entrevista, Chorev compartilhou que "nosso negócio é criar ferramentas criativas". Quem sabe onde mais a inventividade poderá levá-la.

Tradução de Clara Allain

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