Putin surpreende ao deixar de usar na Ucrânia lições aprendidas na Síria, diz analista

Mason Clark, do Institute for the Study of War, estranha número limitado de ataques aéreos russos

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Washington

Quando a Rússia declarou guerra à Ucrânia, analistas militares no restante do mundo pensaram na Síria.

Lembraram-se de que o presidente russo, Vladimir Putin, vinha treinando suas tropas e testando seu arsenal naquele país árabe desde 2015. Estava, em tese, mais do que preparado para tomar Kiev de supetão. Tamanha foi a surpresa, porém, quando viram a Rússia ignorar, uma a uma, as lições aprendidas em sete anos de intervenção militar no Oriente Médio.

O presidente da Rússia, Vladimir Putin, antes de reunião no Kremlin, em Moscou
O presidente da Rússia, Vladimir Putin, antes de reunião no Kremlin, em Moscou - Alexei Nikolski - 24.fev.22/Sputnik/AFP

"Estamos estupefatos", diz Mason Clark, analista-chefe para temas relacionados à Rússia e à Ucrânia no Institute for the Study of War (instituto para o estudo da guerra), baseado nos Estados Unidos. "São erros atrás de erros, contrariando sua própria doutrina militar."

Clark é autor de um relatório detalhado sobre a experiência russa na Síria e suas lições, publicado em janeiro do ano passado.

A hesitação de Putin em usar as estratégias testadas na Síria é ainda mais espantosa porque observadores externos sabem que a Rússia enviou à Ucrânia alguns dos líderes militares que atuaram anteriormente no Oriente Médio.

Moscou entrou na guerra civil síria em setembro de 2015, a pedido do país, quando parecia que rebeldes poderiam derrubar o ditador Bashar al-Assad, aliado de Putin. O apoio russo foi fundamental para virar a maré de areia e manter o regime no poder —onde segue até hoje.

Uma das primeiras vitórias foi a retomada da cidade histórica de Palmira, que havia sido capturada pelo grupo terrorista Estado Islâmico. O trunfo foi celebrado com a apresentação de uma orquestra nas ruínas de um teatro romano.

A Rússia também garantiu a retomada de Aleppo, fundamental à economia da Síria, e a estabilização de Deir Ezzor, ponto estratégico no deserto a meio caminho do Iraque.

A campanha de Putin na Síria foi crucial para o projeto mais amplo de atualização de seu Exército, em curso desde ao menos 2010. Foi no país árabe, por exemplo, que a Rússia corrigiu os cálculos de seus mísseis de cruzeiro Kalibr, aumentando a precisão e impressionando a Otan, a aliança militar ocidental.

Um dos pilares da estratégia russa na Síria foi a intensa campanha de ataques aéreos a partir da base de Hmeimim, ao sul da cidade síria de Latakia. Os bombardeios, que destruíram partes do país e deixaram milhares de mortos, desarticularam rapidamente as forças de oposição ao ditador Assad. Já não há risco de queda, mas as forças russas seguem no país, aparentemente sem prazo para a retirada.

Com esse histórico, diz Clark, analistas ficaram surpresos ao ver o número —proporcionalmente— limitado de ataques aéreos russos na Ucrânia. Também surpreendeu que Putin não tenha usado em larga escala os aviões que já havia testado na guerra síria, como os modelos Su-25 e Su-34.

Também chama a atenção, afirma o analista, que a Rússia ignore sua própria doutrina ao enviar "uma mistura esquisita de pequenas unidades, sem um comando unificado e uma estrutura de logística" para atacar a Ucrânia. Uma das principais lições aprendidas por Putin na Síria, segundo o relatório do Institute for the Study of War, foi o desenvolvimento de uma cadeia de comando azeitada, capaz de tomar decisões rápidas e desbaratinar o inimigo. Não é o que tem acontecido até aqui.

O presidente russo talvez tenha calculado que a declaração de guerra e o movimento de tropas fariam, sozinhos, com que os ucranianos largassem as armas e se rendessem. Ao contrário —nos últimos dias, o que se tem visto é a militarização de civis e resistência.

"As lições aprendidas na Síria não foram implementadas porque Putin esperava que as forças da Ucrânia entrassem em colapso rapidamente", diz Clark. "Os russos achavam que iam fraturar as forças ucranianas, desmoralizá-las. Mas o Exército ucraniano ainda tem um comando unificado."

Nada disso, é claro, significa que a Rússia vá perder a guerra. Movimentos recentes, como o de um comboio rumo a Kiev, indicam que Putin aprendeu com o erro e está ajustando sua estratégia. Analistas já falam em uma nova etapa da guerra ucraniana, e o mundo se prepara para o choque.

"Eles estão conduzindo essa guerra de uma maneira muito menos profissional e competente do que esperávamos depois da Síria", afirma Clark.

"Isso é bom para a Ucrânia, é claro, mas tememos que a Rússia recalibre sua campanha e use por fim as ferramentas que testou na Síria." Isso inclui bombardeios aéreos mais robustos, unidades mais coesas e melhor entrosamento entre suas lideranças. A Rússia pode, também, intensificar seus ataques cibernéticos contra o país do Leste Europeu.

Uma área em que a guerra parece definitivamente perdida, porém, é a da narrativa. A Rússia se empenhou em esconder suas ações na Síria, que incluíram o bombardeio de alvos civis e o deslocamento de massas de refugiados. Conseguiu. Ainda hoje, anos depois, não é necessariamente de conhecimento público que Putin tem forças no país.

Já o conflito ucraniano é um tema de intenso debate ao redor do mundo e alvo de protestos. "Eles perderam completamente o controle da narrativa dessa guerra."

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