O primeiro-ministro do Haiti, Ariel Henry, demitiu nesta terça-feira (14) o procurador-geral do país, Bed-Ford Claude, adicionando um novo capítulo à crise política local. De acordo com o jornal Le Nouvelliste, o motivo apontado para a saída foi uma "falta administrativa grave".
Mais cedo, Claude havia pedido à Justiça que Henry fosse considerado suspeito de participação no assassinato do presidente Jovenel Moïse, morto em um ataque a tiros há dois meses.
Em carta ao juiz Garry Orelien, responsável por supervisionar a investigação do caso, o procurador havia afirmado que registros telefônicos indicavam que o premiê se comunicou ao menos duas vezes com Joseph Badio, um dos principais suspeitos de envolvimento no assassinato de Moïse, na noite do crime.
Badio, ex-funcionário do Ministério da Justiça que Henry defendeu publicamente, está foragido. Na semana passada, Claude emitira uma intimação policial convocando o primeiro-ministro a prestar depoimento e esclarecer a natureza do seu contato com o suspeito.
A relação ainda não está clara, mas os investigadores afirmam que Henry e Badio conversaram por algumas horas depois da morte do presidente. Assim, o procurador pediu que o premiê fosse "proibido de deixar o território nacional por via aérea, marítima ou rodoviária devido a grave presunção relativa ao assassinato do presidente", segundo o documento enviado às autoridades nacionais de migração.
Nesta terça, após a confirmação da saída de Claude, o primeiro-ministro divulgou uma mensagem em que diz ter "o prazer de informar que foi decidido destitui-lo do cargo". A carta de demissão tinha data de segunda-feira (13); a da nomeação do novo procurador, Frantz Louis Juste, desta terça.
O governo havia chamado de ilegal o pedido de proibição de viagem, afirmado que tudo não passava de um teatro político e que não fora diretamente informado das ações. Segundo o jornal americano The New York Times, há um debate sobre se Claude teria autoridade para investigar o primeiro-ministro depois de o caso ter sido encaminhado a um juiz. A lei haitiana proíbe que essa figura jurídica processe um servidor público de cargo elevado sem autorização do chefe de Estado.
Outro debate que se impõe agora, porém, segundo a agência Reuters, tem a ver com a demissão do procurador. A Constituição diz que só o presidente —cargo que continua tecnicamente vago— pode apontar ou remover o ocupante desse posto.
No último sábado (11), Henry já havia reagido às acusações que começavam a recair sobre ele e acusou as autoridades de promoverem "manobras de distração para criar confusão e impedir que a Justiça faça seu trabalho com calma".
“Os verdadeiros culpados, os autores intelectuais e os patrocinadores do assassinato hediondo do presidente Jovenel Moïse serão encontrados, levados à Justiça e punidos por seu crime”, acrescentou o primeiro-ministro na ocasião.
O Escritório de Proteção ao Cidadão do Haiti já havia exigido, no sábado, que Henry renunciasse e se entregasse à Justiça. O órgão pleiteia ainda na Organização das Nações Unidas (ONU) a criação de uma comissão internacional de inquérito sobre o assassinato.
Moïse foi morto em sua casa na madrugada do dia 7 de julho. Até agora, não há conclusão sobre quem foi o mandante do crime nem a possível razão. Segundo o governo haitiano, o presidente foi assassinado por um grupo de mercenários —48 pessoas, incluindo 18 colombianos e 2 americanos de origem haitiana, já foram presas. A primeira-dama Martine também foi ferida no ataque, mas sobreviveu e recebeu tratamento médico em Miami (EUA).
As denúncias contra o premiê Henry, que assumiu o cargo há menos de dois meses, vêm na esteira de um cenário político conturbado no país caribenho. No sábado, após dias de negociações, um acordo firmado com as principais forças de oposição formalizou um governo de transição que será formado por um conselho de ministros e terá Henry na chefia. As eleições gerais, inicialmente programadas para setembro, foram postergadas para o final de 2022.
Uma assembleia constituinte composta por 33 membros indicados por instituições e organizações da sociedade civil terá três meses para preparar uma nova Constituição, que também será levada às urnas.
Principal liderança da oposição, o professor universitário André Michel, do Setor Democrático e Popular (SDP), classificou o acordo como uma "posição política histórica para assegurar a governabilidade".
À acentuada crise política soma-se uma grave crise social no Haiti. Henry tem a missão de guiar o país em uma ampla reconstrução após um terremoto de magnitude 7,2 deixar mais de 2.200 pessoas mortas e cerca de 400 feridas em 14 de agosto. O sismo, que atingiu com maior intensidade a parte sudoeste do país, abalou também a infraestrutura urbana. Mais de 130 mil casas tiveram a estrutura comprometida.
A Agência das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO, na sigla em inglês) afirmou na última semana que cerca de 980 mil pessoas que vivem nas regiões mais atingidas no país correm risco de passar fome, já que, entre outras coisas, o terremoto destruiu toda a infraestrutura para produção agrícola e distribuição de alimentos —como mercados, estradas, armazéns e sistemas de irrigação. A tempestade tropical Grace, cujo núcleo passou pelo país dois dias após o sismo, agravou a situação.
Em documento liderado pela FAO e elaborado com outras 15 agências da ONU e organizações internacionais sobre o tema, a projeção feita é a de que o contingente de quase 1 milhão de haitianos sofra de insegurança alimentar severa entre setembro deste ano e fevereiro de 2022. Cerca de 320 mil pessoas enfrentariam a fase 4 (são cinco, ao todo) na escala de insegurança.
Para atenuar a situação, a FAO solicita aos governos e organizações internacionais o montante de US$ 20 milhões (mais de R$ 105 milhões) para ajudar cerca de 160 mil pessoas que vivem em áreas rurais, por meio da distribuição de sementes, equipamentos agrícolas e gado.
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