A cena começa no meio das árvores. Ele aparece segurando um rifle, carregado com a bala sacada do bolso da jaqueta verde-oliva. Diz que vai proteger o direito a armas, previsto na Constituição dos EUA, e atira em cheio na folha de papel que representa a lei de energia limpa, proposta pelo então presidente Barack Obama.
Gravado em 2010, o vídeo poderia ser da campanha de um futuro aliado de Donald Trump, mas seu protagonista é, na verdade, Joe Manchin, que à época concorria ao Senado pelo Partido Democrata. Eleito e reeleito pela Virgínia Ocidental, estado de maioria branca e forte tendência republicana, o democrata mais conservador do Capitólio é hoje um dos principais focos de preocupação da Casa Branca, com posições capazes de frear ou impulsionar a agenda legislativa de Joe Biden.
Aos 73 anos, Manchin suavizou sua imagem e calibrou posturas públicas desde que alvejou —literalmente— a proposta de lei do governo Obama, mas ainda segue na defesa de ideias pró-armas, antiaborto e contrárias a bandeiras da ala progressista de seu partido, em um aceno à grande parte da população do estado que o elegeu.
Com Biden na Presidência, Manchin passou a dividir com a moderada Kyrsten Sinema, do Arizona, o posto de voto democrata decisivo em um Senado rachado —50 votos para democratas e 50 para republicanos, com desempate feito pela vice-presidente, Kamala Harris.
Recentemente, porém, duas posições do senador o isolaram como figura-chave para o governo: a reforma eleitoral, alçada por Biden como uma das prioridades de sua gestão, e o debate sobre o fim da obstrução no Senado, que implica nas votações dos mais ambiciosos projetos que o presidente quer aprovar nos próximos anos.
Manchin é o único democrata que se recusou a apoiar a Lei para o Povo, proposta de seu partido, com apoio de Biden e Kamala, para realizar uma ampla reforma eleitoral no país. Se aprovada, a lei anularia uma série de restrições ao ato de votar, aprovadas em estados republicanos e que atingem, principalmente, pessoas negras e pobres.
O argumento do senador é que nenhuma legislação sobre o voto deveria ser uma medida partidária, mas uma construção entre os dois lados da política americana, para proteger, e não "dividir ou destruir", os EUA.
Manchin também é contrário ao fim do "filibuster" —mecanismo que permite a obstrução das votações no Senado pela minoria, por tempo indeterminado. Parte dos democratas quer acabar com a regra e, assim, aprovar projetos por maioria simples, já que muitas das medidas —inclusive a reforma eleitoral— precisam do voto de ao menos 60 dos 100 senadores para serem chanceladas.
Há duas semanas, Manchin havia abalado colegas ao cristalizar publicamente que não assinaria o projeto, mas, na quarta-feira (16), fez circular um memorando de três páginas com sua proposta alternativa para a lei, o que animou os democratas.
O partido de Biden sabe que a reforma eleitoral não tem chance de passar enquanto a obstrução no Senado existir, mas viram no gesto de Manchin uma oportunidade de remodelar a pressão sobre o senador.
Agora, querem mostrar que nem mesmo a união de todo o partido em torno da sugestão mais moderada será suficiente para atrair o apoio dos republicanos e que Manchin precisa mudar de opinião sobre o "filibuster" se quiser aprovar o próprio projeto —e todos os outros que exigem maioria qualificada, ou seja, os que não envolvem orçamento.
O senador, que no primeiro ano de mandato marcou reunião com os 99 colegas de Senado para "conhecê-los melhor", insiste que há espaço para diálogo com a oposição, apesar dos sinais no sentido contrário.
Essa não é a primeira vez que Manchin dá dor de cabeça aos democratas. Formado em administração pela Universidade de Virgínia Ocidental, entrou para a política aos 35 anos e chegou a Washington depois de ter passado pela Câmara, pelo Senado e pelo governo do estado.
Em 2010, foi empossado senador por Biden, então vice-presidente de Obama, e, quatro anos depois, em entrevista ao jornal The New York Times, disse que sua relação com o primeiro presidente negro dos EUA era "praticamente inexistente."
Ancorado no discurso do bipartidarismo, esteve ao lado dos republicanos em diversas pautas e adotou uma postura inicialmente bastante amigável a Trump, quando ele chegou à Casa Branca. Apesar dos avós imigrantes, apoiou as propostas anti-imigração e foi o único democrata a dar aval à indicação do republicano ao juiz conservador Brett Kavanaugh —acusado de agressão sexual— para a Suprema Corte.
De acordo com o site FiveThirtyEight, Manchin votou a favor das medidas de Trump em 50,4% das vezes. Mas, em momentos cruciais para os democratas, como nos dois processos de impeachment do republicano, acompanhou seu partido.
A lei eleitoral foi a primeira dissidência pública de Manchin neste ano, mas se tornou um debate de primeira ordem para o governo Biden.
No memorando com sua versão das regras, o senador propõe transformar o dia da eleição em feriado —a que os republicanos se opõem— e exigir um documento de identificação dos eleitores na hora do voto —medida que os democratas não queriam implementar.
Apesar das diferenças, progressistas abraçaram o meio-termo de Manchin nas primeiras horas, inclusive a democrata Stacey Abrams, que deve concorrer ao governo da Geórgia em 2022 e é uma das principais ativistas por maior acesso ao voto. Em entrevista à CNN, ela elogiou o projeto de Manchin e disse que o apoiaria "absolutamente".
Como esperavam os mais céticos, porém, o gesto não convenceu os republicanos de que é possível trabalhar sobre uma proposta democrata mais moderada. Pelo contrário. Deu munição para que eles atrelassem o novo projeto ao que chamam de radicalismo de esquerda, sob o argumento de que a ala mais progressista do partido, da qual Abrams faz parte, apropriou-se das ideias.
Roy Blunt, senador republicano pelo Missouri e um dos principais opositores ao projeto democrata, resumiu a estratégia: "Acho que, quando Stacey Abrams apoia imediatamente a proposta de Manchin, vira o substituto de Abrams, não de Manchin".
Ao se deparar com a realidade de que nenhuma conversa com os 99 colegas vai fazer com que republicanos apoiem uma proposta de acesso ao voto —que eles querem restringir, e não ampliar—, Manchin terá que decidir seu novo alvo. O senador precisa escolher se mantém a dissidência em nome do improvável bipartidarismo ou se, como em outras bifurcações históricas, alinha-se de vez ao partido ao qual é filiado.
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