Amy Coney Barrett, a indicada de Donald Trump para a Suprema Corte dos EUA, não era nenhuma estranha à revista Vine & Branches. O nascimento ou a adoção de alguns dos seus sete filhos, sua mera presença numa reunião só com mulheres, tudo isso virou assunto para a publicação.
Mas não adianta procurá-la no site da revista. Sete edições, entre 2006 e 2012, recentemente evaporaram de lá. Todas menciovam a juíza federal ou alguém de sua família.
O que não sumiu do mapa foi a associação entre a nomeada para a cadeira da progressista Ruth Bader Ginsburg e a People of Praise (pessoas de louvor), uma comunidade de católicos que até pouco tempo atrás chamava suas líderes femininas de "servas" —"handmaids", no original.
O termo mirou numa passagem bíblica que reconhece Maria como "serva de Deus", mas acertou em "Handmaid's Tale", o romance de Margaret Atwood sobre uma distopia teocrática em que jovens são forçadas a parir filhos para lares religiosos e punidas se questionarem a supremacia do homem.
Foram tantas as comparações com o livro transformado em série de TV que o jeito foi parar de usar a palavra. O depoimento de um ex-membro, o então estudante de filosofia e hoje professor universitário Adrian Reimers, não ajudou a diluir a imagem ultraconservadora da comunidade que estima reunir 1.700 pessoas em 22 cidades nos EUA, no Canadá e no Caribe.
"O grupo ensina que maridos são os comandantes de suas esposas e devem ter autoridade sobre a família", escreveu ele em 1986. Barrett nunca assumiu publicamente a filiação ao People of Praise, que edita a Vine & Branches. Também nunca negou.
O escrutínio público escolta a magistrada desde 2017, quando uma senadora democrata, durante a sabatina no Congresso que confirmou sua ida para uma corte federal, questionou até que ponto sua fé católica pesaria nas decisões judiciais: "O dogma fala alto dentro de você".
Barrett se declarou uma católica devota que sabia separar as coisas. O New York Times foi atrás e publicou, naquele ano, a reportagem "Alguns se preocupam com os laços [da juíza] com um grupo religioso". A comunidade que reunia centenas, então, veio à luz para milhares.
Reimers, o professor que deixou o People of Praise, fala num movimento em que "há uma forte ênfase no viril, ao ponto de ridicularizar o 'covarde'". E ali não há muito espaço para o empoderamento feminino.
"Segundo um ensinamento que circula entre os líderes, mulheres são por natureza manipuladoras. Este é um dos efeitos colaterais do pecado original sobre elas. O marido sábio levará isso em consideração em seu relacionamento com a esposa, reconhecendo que muito do que ela faz não é sincero."
Atuais e antigos adeptos narram uma dinâmica em que os líderes têm controle quase absoluto sobre a vida dos membros. Cabe a eles dar a palavra final sobre quem namorar ou com quem casar, como criar os filhos e qual emprego aceitar.
"Exagerar a importância da liderança no People of Praise é quase impossível", diz Reimers. Seus superiores, de acordo com o professor, chegaram a desencorajá-lo a se aconselhar com padres, como se a Igreja Católica fosse coadjuvante perto da onipresença do guia designado para cada integrante.
Em 2014, o papa Francisco sinalizou que formações como essa podem ter ido longe demais: "Precisamos resistir à tentação de usurpar a liberdade individual".
"Esses movimentos operam em grande parte num vácuo jurídico da lei canônica. Às vezes, são reconhecidos em nível local pelo bispo. O Vaticano tem monitorado cada vez mais esse tipo de grupos, devido à revelação de abusos dentro deles, espirituais ou sexuais", diz à Folha Massimo Faggioli, professor de teologia histórica na Universidade Villanova.
Reimers estava na fundação do People of Praise, em 1971, no estado americano de Indiana —o mesmo onde ele e Barrett se formaram, na Universidade Notre Dame.
O grupo veio na onda do catolicismo carismático, aparentado a evangélicos pentecostais em vários pontos. Em seu site, o People os Praise diz que "experimenta os dons do Espírito Santo descritos no Novo Testamento". Curas milagrosas e falar em línguas próprias são alguns deles. Hit entre pentecostais.
O movimento se diz ecumênico, mas quase todos nele são da religião da juíza que, em 1998, escreveu "Juízes Católicos em Casos de Pena de Morte". No artigo, Barrett entende que é aceitável um magistrado se recusar a mandar alguém para o corredor da morte se isso for contra sua fé, embora ela mesma, no cargo atual, já tenha votado a favor de algumas execuções.
A comunidade surgiu seis anos após o Concílio Vaticano 2º, que se descrevia como a abertura de janelas numa sala mal ventilada. A partir dele, a Santa Sé flexibilizou vários de seus ritos, como a obrigação de rezar missas em latim, com o sacerdote em geral de costas para os fiéis.
Lembra o ex-associado Reimers: "Foi um tempo de confusão na Igreja, um período de loucura religiosa. [...] O concílio havia pedido uma atualização da liturgia. De repente, discutia-se homilias com cerveja e pizza para a eucaristia. Teólogos de vanguarda publicavam artigos mostrando que não tínhamos mais que acreditar em todas aquelas coisas supersticiosas e que Adolf Hitler e alguns racistas eram os únicos pecadores de verdade".
"Já o People of Praise é de fato conservador, autoritário, hierárquico e patriarcal", afirma o antropólogo Thomas Csordas, que estuda religião na Universidade da Califórnia. Compará-lo a "Handmaid's’ Tale", contudo, "não é de todo justo".
"O paralelo distrai do assunto principal. A questão não é se o People of Praise tornou Barrett tão conservadora. A questão é que, como jurista, ela é o oposto de Ginsburg. Representa um perigo para nosso sistema de saúde e para o direito ao aborto. Espera-se que sua consciência cristã a leve a se opor a qualquer tentativa de Trump de roubar a eleição presidencial."
Isso se ela for aprovada pelo Senado, algo que Trump quer realizar antes da eleição, em 3 de novembro.
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