O alarme de emergência tocou, mas a Europa não prestou atenção.
Nas ruas, o divórcio entre Reino Unido e União Europeia (UE) após 47 anos de casados era a notícia de 30 de janeiro, dia em que a OMS (Organização Mundial da Saúde) soltou alerta máximo de saúde por causa do coronavírus.
Presidentes e premiês lidavam com problemas próprios —greves e pancadaria na França, eleições acaloradas na Itália, movimentos da direita radical na Alemanha. Nos gabinetes da UE, a ameaça turca de abrir porteiras para uma nova onda de imigrantes querendo chegar à Europa era a prioridade.
Fazia só dois meses que Ursula von der Leyen ocupara a presidência da Comissão Europeia, tornando-se a chefe do Poder Executivo da UE.
Com uma pauta política ambiciosa, a alemã passou a morar dentro da sede da Comissão: transformou uma sala de banho em apartamento ao lado do seu escritório, no 13º andar do edifício, e se mudou disposta a lançar as bases de uma Europa “mais verde, mais digital e menos desigual”.
Distrações tão numerosas e barulhentas encobriram o coronavírus, cujo diâmetro é medido em milionésimos de milímetros, mas o poder destrutivo superou em muitas vezes o de todas as crises somadas.
Em 25 de janeiro, o inimigo invisível foi confirmado em solo europeu pela primeira vez, na França; até o alerta da OMS, já alcançara Alemanha e Finlândia. No dia seguinte, chegou a Espanha, Itália, Reino Unido, Rússia, Suécia e não parou mais. Até a tarde desta sexta (1º), havia cerca de 1,4 milhão de casos confirmados na Europa e quase 140 mil mortos, mais da metade das mortes globais.
Após três meses de pandemia, a maré de contágio está baixando em quase todo o continente, mas o refluxo deixa descoberto um esqueleto incômodo: lacunas da própria Europa, e não o coronavírus, causam alguns dos principais danos dessa crise.
“A Comissão estava despreparada para a pandemia. Quando reagiu, reagiu tarde, foi um pouco ingênua, caótica, confusa. Perdeu credibilidade. Governos nacionais já estavam em modo de crise total, e saiu cada um para o seu lado tentando responder a seus cidadãos”, diz Shada Islam, diretora de Europa e geopolítica no centro de estudos Friends of Europe (FoE), baseado em Bruxelas.
Pega de surpresa, a União Europeia foi afetada em três dimensões —saúde, economia e geopolítica.
Na saúde, foi nítido o efeito da política de austeridade dos anos anteriores, diz a diretora do FoE. Ficou clara também a falta que fazem instrumentos comuns em algumas áreas de política pública, acrescenta Sophie Pornschlegel, analista do Centro de Políticas Públicas Europeias (EPC).
“Saúde é uma área totalmente da alçada nacional. Se as nações entram em modo pânico, tomam decisões descoordenadas”, diz ela.
Na economia, o impacto veio não só das quarentenas, que poderiam ter sido evitadas ou adiadas numa reação mais precoce. Duas das principais fortalezas da UE —a liberdade de viajar no espaço Schengen e a liberdade de movimento de pessoas e produtos no mercado comum— foram atropeladas pela política do “meu país primeiro”.
“Países correram para barrar a entrada de estrangeiros e chegaram a impedir a exportação de produtos de saúde”, relata Sophie.
”Não houve coordenação nem transparência. Claro que os governos precisavam agir para proteger seus cidadãos, mas era preciso se comunicar com os outros”, acrescenta Shada.
Pelo caminho geopolítico, “a Europa foi pega entre os EUA e a China, esmagada entre os dois poderes e entrelaçada em seus jogos de acusação”, segundo a diretora do FoE.
Reconquistar presença no tabuleiro global vai exigir a atuação dos principais líderes europeus: a chanceler alemã, Angela Merkel, e o presidente francês, Emmanuel Macron. O principal desafio é justamente o que provocou o debate mais amargo desta pandemia: como financiar a recuperação econômica.
São disputas já presentes no que Sophie chama de “policrise europeia”, nos pelo menos 12 anos em que o continente emenda um conflito no outro.
Em 2008 e 2009, foi a crise financeira global. Em 2011 e 2012, o impasse das dívidas soberanas, que quase levou a uma ruptura com a Grécia. Em 2014 explodiram ataques terroristas e a Rússia arrancou da Ucrânia o controle da Crimeia. A crise dos refugiados, em 2015, foi seguida pelo brexit, em 2016.
Agora, porém, subiu o tom da discórdia, diz Shada: “As diferenças estão abertas, gritantes. Não será fácil construir uma ponte”. Segundo ela, a oportunidade a aproveitar nesta crise seria mais união fiscal, para superar a política de austeridade e manter o bloco coeso.
Um fundo trilionário baseado no Orçamento comum já está na base da proposta de Von der Leyen, e ela pode acabar tendo ajuda de Merkel.
“Criticada por não ser pró-Europa em crises anteriores, a Alemanha desta vez mostrou solidariedade”, diz a analista do EPC. Em 1º de julho, o país assume a presidência rotativa do Conselho Europeu, o que dá mais espaço a Merkel para pautar os temas de debate entre os 27 líderes nacionais.
Antes da pandemia, seu projeto incluía ambiente, digitalização, imigração e as relações com Reino Unido e China. Agora, as prioridades serão a reconstrução econômica e a integração do bloco. Não será um caminho fácil nem breve. Nesta sexta, o Banco Central Europeu disse que a recuperação da zona do euro pode levar três anos, nos cenários “ruim” e “médio” (queda de 12% ou 8% no PIB em 2020).
No menos pessimista, em que a economia encolhe 5%, os níveis de 2019 seriam atingidos em meados de 2021.
Sophie, especialista em democracia, diz que outra sequela da pandemia é o avanço do autoritarismo. “A Hungria deixou de ser uma democracia, e a Polônia está levando adiante uma eleição que não será justa. A Europa não está fazendo o suficiente.”
Shada também vê gravidade: “Fala-se de um ataque de desinformação vindo da Rússia, da China ou da Turquia, mas a principal ameaça é interna. Dentro do bloco surgem governos autoritários, e a Europa tem feito pouco para impor sua posição, proteger juízes, os jornalistas”.
Para Sophie, movimentos nacionalistas e anti-Europeus também não podem ser esquecidos. “A extrema direita não foi capaz de usar a crise como poderia. Mas, se o desemprego explodir e não houver uma boa resposta dos governos nacionais e da UE, ela pode se alimentar dessa crise”, afirma.
Se vista de dentro a Europa enxerga partes em conflito, de fora ela preserva a imagem de ator político capaz de promover a cooperação global. O bilionário casal Bill e Melinda Gates, fundador da maior organização privada na área de saúde pública, quer o continente na liderança de um projeto para desenvolver vacinas e remédios contra o coronavírus.
Para os Gates, só a Europa é capaz de colocar ao redor da mesma mesa interlocutores internacionais e evitar que os países mais poderosos pressionem por seus próprios interesses.
Europa em números
43 países integram o continente (mais parte de Rússia e Turquia)
27 fazem parte da União Europeia
26 estão em alguma zona onde não há controle de fronteiras
19 possuem uma moeda comum, o euro
594 milhões de pessoas é a população da Europa em 2020 (excluídas Rússia e Turquia)
US$ 20,25 tri era o PIB total em 2018 (excluídas Rússia e Turquia)
1.399.063 casos de coronavírus confirmado *
137.409 mortes por coronavírus confirmadas*
519.405 pessoas recuperadas da Covid-19*
*até 1º de maio
Cronologia
1939-1945 Segunda Guerra Mundial
1951 Comunidade Europeia do Carvão e Aço é o embrião da União Europeia. Reúne
Alemanha, Bélgica, França, Itália, Luxemburgo e Holanda
1957 Tratado de Roma institui a Comunidade Econômica Europeia (CEE)
1973 Dinamarca, Irlanda e Reino Unido ingressam na UE
1982 Grécia entra na UE
1986 Espanha e Portugal ingressam no bloco
1992 Tratado de Maastricht cria a União Econômica e Monetária
1993 Mercado Único institui livre circulação de mercadorias, de serviços, de pessoas e de capitais
1995 Entram Áustria, Finlândia e Suécia; instituído o espaço Schengen, de fronteiras internas abertas
1998 Criado o Banco Central Europeu
1999 Lançado o euro, moeda comum da Eurozona
2004 Adesão de dez países (Eslovênia, Eslováquia, República Tcheca, Chipre, Estônia, Letônia, Malta, Polônia, Lituânia, Hungria)
2007 Ampliação para Bulgária e Romênia
2014 Entra a Croácia
2016 Reino Unido aprova o brexit e deixa a UE em 2020
2020 Iniciado processo de adesão de Macedônia e Albânia
Seis crises
Em 2011, crise da dívida quase leva à saída da Grécia
Em 2014, Rússia invade a Ucrânia, controla a Crimeia e fica sob sanções da União Europeia
Em 2015, crise da imigração faz Hungria fechar fronteiras; Polônia e República Tcheca também recusam imigrantes
Em 2016, Reino Unido aprova saída da UE
Em 2019, Turquia ameaça permitir entrada de refugiados na Europa; Grécia tem campos superlotados
Em 2020, Itália é
país mais afetado pela pandemia, prevê recessão de 10% do PIB e exige solidariedade
Três desafios
Implosão
Crescimento de movimentos nacionalistas, autoritários e anti-UE ameaça abrir rachaduras no bloco
Inanição
Economia que já havia perdido vigor deve passar por séria recessão
Esmagamento
Entre as superpotências globais EUA e China, continente tenta manter relevância
Nove personagens
Angela Merkel
No cargo desde 2005, a primeira-ministra alemã se torna o grande poder moderador do continente
Ursula von der Leyen
Há cinco meses presidente da Comissão Europeia, alemã tenta levar UE unida para fora da crise sem comprometer suas prioridades, entre elas a descarbonização e a digitalização
António Costa
Premiê português desde 2015, se destacou na crise por oposição à Holanda e pelo sucesso no combate à pandemia
Emmanuel Macron
Presidente da França desde 2017, assumiu liderança no projeto de uma Europa que mantenha proeminência global
Wopke Hoekstra
Ministro das Finanças holandês desde 2017, é a face mais visível dos Frugais, os vilões da solidariedade
Viktor Orbán
Premiê da Hungria desde 2010, obteve poder para governar por decreto por tempo indeterminado
Boris Johnson
Há nove meses premiê do Reino Unido, liderou o divórcio da UE; nesta crise, sucumbiu ao coronavírus, recuperou-se e tornou-se pai
Vladimir Putin
Presidente da Rússia desde 2012, mantém vivo o temor europeu de um vizinho poderoso e imperialista
Andrzej Duda
Presidente da Polônia desde 2015, levou adiante uma política de cerco ao Judiciário; tenta a reeleição em meio à pandemia
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