Ap�s fugir do Boko Haram, refugiados s�o for�ados a retornar � Nig�ria
Os soldados chegaram no meio da noite, ocupando a aldeia de refugiados nigerianos e invadindo os casebres nos quais fam�lias dormiam espalhadas pelo ch�o.
Os refugiados haviam passado anos fugindo dos insurgentes do Boko Haram, at� que cruzaram um leito seco de rio que marca a fronteira entre Nig�ria e Camar�es. Eles se assentaram na aldeia de Majina, onde cultivavam feij�o e pain�o. "Um lugar pac�fico", � como eles a definem. E ent�o, em mar�o, chegaram os soldados camaroneses.
Afolabi Sotunde - 26.abr.2017/Reuters | ||
Refugiadas carregam mantimentos em campo em Banki, na Nig�ria |
Os militares recolheram os refugiados de modo desorganizado, e os embarcaram em caminh�es militares, em muitos casos separando pais e filhos, de acordo com testemunhas.
Os refugiados logo perceberam para onde estacam sendo levados: de volta a uma das �reas mais perigosas da Nig�ria. Hoje, eles vivem em um campo de refugiados em Banki, cidade avassalada por uma das mais graves ondas de fome do planeta.
As Na��es Unidas por fim rotulariam o que aconteceu naquela noite –e em muitas noites posteriores– como "retorno for�ado". Nos �ltimos meses, pelo menos 5.000 refugiados nigerianos foram arrebanhados em aldeias e campos de refugiados camaroneses e expulsos para uma regi�o sob frequente ataque dos insurgentes, de acordo com representantes das Na��es Unidas.
Alguns funcion�rios de organiza��es assistenciais acreditam que o n�mero de pessoas repatriadas � for�a seja de mais de 10 mil, se inclu�das as pessoas expulsas em opera��es espor�dicas realizadas desde 2013. O governo camaron�s nega a expuls�o de nigerianos;
Enquanto o n�mero de refugiados espalhados pela planeta dispara –superando os 20 milh�es–, cresce a hostilidade dos pa�ses anfitri�es quanto a eles, e as prote��es oferecidas pela estrutura legal criada d�cadas atr�s proteger essas popula��es vulner�veis est�o perdendo a for�a. Um retorno for�ado como o reportado nos Camar�es simboliza a rea��o mais extrema e impiedosa �queles que buscam ref�gio.
Muitos pa�ses est�o tomando medidas menos dr�sticas, mas que ainda assim alarmam os defensores dos refugiados. Nos �ltimos tr�s anos, o Paquist�o est� pressionando centenas de milhares de afeg�os refugiados no pa�s h� muito tempo para que voltem ao seu pa�s, a despeito da pobreza exacerbada e da violenta insurg�ncia em sua terra natal.
No Qu�nia, um tribunal impediu o governo de devolver mais de 200 mil refugiados do campo de Dadaab, em sua maioria somalis, a um pa�s assolado pela guerra e por uma crise de fome. Mas grupos de defesa dos direitos humanos dizem que muitos dos moradores est�o sendo pressionados a sair, mesmo assim.
No ano passado, grupos internacionais de defesa dos direitos humanos acusaram a Turquia de expulsar milhares de refugiados s�rios, o que o governo turco negou.
Nos termos da Conven��o sobre Refugiados de 1951, ratificada por 145 pa�ses –entre os quais Camar�es–, v�timas de guerras ou persegui��o n�o devem ser devolvidas a na��es onde enfrentar�o amea�a s�ria. Mas o documento est� sendo ignorado, de acordo com organiza��es de defesa dos direitos humanos.
"Os pa�ses mais pobres, que abrigam grande n�mero de refugiados h� muitos anos, a exemplo do Qu�nia, Paquist�o e Turquia, recentemente for�aram centenas de milhares de refugiados e pessoas em busca de asilo a retornar �s suas terras de origem", disse Gerry Simpson, especialista em migra��o da Human Rights Watch.
"Eles parecem estar seguindo o exemplo de pa�ses mais ricos, como a Austr�lia, a Uni�o Europeia e os Estados Unidos, que est�o fazendo tudo que que podem para limitar a entrada de refugiados".
O Acnur (Alto Comissariado das Na��es Unidas para Refugiados) vem tentando chegar a acordos com pa�ses que est�o repatriando refugiados, para garantir que eles s� retornem voluntariamente.
Mas a assist�ncia da organiza��o chegou tarde demais para milhares de nigerianos em Camar�es.
As organiza��es assistenciais n�o est�o certas sobre a causa daquilo que est�o definindo como uma expuls�o em massa. Alguns funcion�rios das Na��es Unidas dizem que � prov�vel que os refugiados tenham sido for�ados a deixar a �rea antes de uma grande opera��o militar.
Outros grupos assistenciais dizem que Camar�es, um dos pa�ses mais pobres do mundo, simplesmente se cansou de sustentar os nigerianos. Camar�es est� superlotado de refugiados nos �ltimos anos, tendo recebido mais de 300 mil pessoas em fuga das guerras da Rep�blica Centro-Africana e da Nig�ria.
O governo camaron�s rejeitou as afirma��es do Acnur quanto aos retornos for�ados.
"Estou dizendo que n�o houve expuls�es for�adas", afirmou Richard Etoundi, diretor de protocolo do Minist�rio do Exterior camaron�s, em entrevista por telefone.
Al�m dos milhares de pessoas que teriam supostamente sido for�adas a deixar Camar�es, muitas outras foram persuadidas a retornar ao nordeste da Nig�ria depois de ouvirem mentiras sobre a situa��o na �rea, de acordo com refugiados e trabalhadores assistenciais.
Ao chegar em casa, os refugiados encontram falta de abrigo, superlota��o severa e escassez de comida e �gua. Este m�s, Filippo Grande, o comiss�rio do Acnur, se declarou "extremamente preocupado" com o influxo de refugiados nigerianos repatriados de Camar�es, e quanto � situa��o de "perigoso despreparo" para receb�-los.
As For�as Armadas camaronesas agiram com tamanha pressa para remover os refugiados que terminaram apanhando um grupo de mulheres e crian�as camaronesas em uma a��o na aldeia de Kearoua. O grupo agora est� acomodado em uma constru��o inacabada em uma rua de Banki destru�da por bombas.
Abba Goni, 76, fugiu de Banki quase tr�s anos atr�s em uma bicicleta verde com a palavra "China" carimbada no quadro –um velho muito mais veloz sobre duas rodas do que sobre seus dois p�s encarquilhados.
Goni nasceu e se criou em Banki, uma cidade de 150 mil habitantes cercada por f�rteis terras agr�colas, localizada a menos de dois quil�metros da fronteira com Camar�es.
Em setembro de 2014, a fac��o extremista isl�mica Boko Haram invadiu a cidade, chegando em caminh�es e motocicletas, disparando tiros aleatoriamente e queimando edifica��es. A primeira fuga de Goni na bicicleta verde aconteceu na calada da noite. Ele foi acompanhado por suas duas mulheres e nove filhos.
Por algumas semanas, eles viveram a c�u aberto, se alimentando das frutas que encontrassem. Quando o Boko Haram come�ou a se aproximar, Goni montou de novo em sua bicicleta, e pedalou para Camar�es.
Desde que Goni era menino, membros de seu grupo �tnico, os kanuri, se movimentavam livremente atrav�s da fronteira, sem qualquer documenta��o.
O Boko Haram tamb�m cruzava a fronteira com impunidade. Mas o basti�o da fac��o continua a ser a Nig�ria, e Goni sabia que, se penetrasse o bastante no territ�rio camaron�s, provavelmente ficaria livre. Em 2015, ele e a fam�lia chegaram a Majina, onde alguns moradores locais permitiram que ele cultivasse uma pequena �rea ar�vel.
"Era uma vida decente", ele disse.
Enquanto isso, partes da Nig�ria se aproximavam mais e mais de uma onda de fome. Quando a organiza��o M�dicos Sem Fronteiras por fim conseguiu acesso a Banki, na metade do ano passado, depois que as For�as Armadas nigerianas expulsaram o Boko Haram da cidade, encontrou uma crise de fome, com mais de 10% das crian�as sofrendo de desnutri��o severa aguda e pessoas morrendo de doen�as que poderiam ter sido prevenidas.
Para Goni e sua fam�lia, a aldeiazinha que os recebeu em Camar�es era n�o s� um ref�gio contra o Boko Haram mas prote��o contra a fome.
No entanto, o governo camaron�s estava enfrentando dificuldades para manter tantos refugiados abastecidos. Moradores da regi�o norte de Camar�es atribu�am aos refugiados a culpa pela escassez de alimentos. Em alguns casos, houve choques entre as duas popula��es.
Especialistas veem essa frustra��o refletida em outros pa�ses dos quais refugiados foram pressionados a partir.
"Creio que os governos anfitri�es est�o um tanto cansados por tamanha propor��o dos encargos recair sobre eles, sem ajuda internacional suficiente", disse Kathleen Newland, cofundadora do Instituto de Pol�tica de Migra��o, uma organiza��o de pesquisa sediada em Washington.
Em Majina, Goni jamais experimentou esse tipo de antagonismo. Naquele dia de mar�o, quando ouviu o som dos caminh�es e os gritos dos soldados, a primeira impress�o dele foi a de que o Boko Haram tinha chegado. Mas quando olhou para fora, viu homens de uniforme.
"Quem aqui � nigeriano?", os soldados gritavam, recorda Goni.
Ele perguntou se podia apanhar suas roupas, cobertores, comida e bicicleta. Os soldados recusaram. Tudo aconteceu rapidamente. Quando ele olhou em volta, da ca�amba de um caminh�o militar que j� se movia em alta velocidade, encontrou apenas uma de suas mulheres e dois de seus nove filhos. Os demais haviam sido deixados para tr�s.
Na manh� seguinte, Goni p�de observar o que restava de Banki. Quarteir�es inteiros haviam sido demolidos, mais provavelmente por ataques a�reos das for�as armadas nigeriana. Pessoas desabrigadas haviam ocupado as casas abandonadas.
Ainda que organiza��es assistenciais tivessem come�ado a distribuir comida e estivessem operando cl�nicas rudimentares, as For�as Armadas continuavam a controlar o acesso � cidade, com postos de controle nas estradas, e impediam os moradores de deixar Banki. Isso quer dizer que n�o � poss�vel cultivar os campos vizinhos, recolher lenha, ou fugir novamente de Banki.
Depois de ser interrogado por soldados nigerianos, Goni foi encaminhado a um edif�cio abandonado. O Acnur lhe deu um cobertor e uma esteira. Era l� que ele passaria a morar: 18 pessoas dormindo no ch�o.
Passado um m�s de seu retorno a Banki, Goni e muitos outros dos deportados continuam comendo apenas uma refei��o por dia.
A alguns quarteir�es de dist�ncia, em outro edif�cio cinzento e inacabado, 32 mulheres e crian�as camaronesas agitam seus documentos –certid�es de nascimento e de eleitor camaronesas– ao ver o jornalista visitante.
"N�s insistimos com os soldados, dizendo que �ramos camaroneses, mas eles nos trouxeram para c� de qualquer jeito", disse Fati Kadi, 40. Os dois filhos dela ficaram para tr�s, no dia da opera��o, diz Kadi.
Faruk Ibrahim, gerente de programa da Acnur, disse que a ag�ncia esperava que os camaroneses fossem repatriados rapidamente. "Mas j� faz mais de dois meses."
Hist�rias sobre outros retornos for�ados surgiram em mar�o e abril. Mais de dois milh�es de pessoas est�o desabrigadas na Nig�ria por conta da guerra com o Boko Haram. Com o influxo dos repatriados vindos de Camar�es, o n�mero aumentou.
A 320 quil�metros de Banki, na cidade de Ngala, o superintendente de fronteira testemunhou em abril a deporta��o de centenas de nigerianos pelos camaroneses, atrav�s de uma ponte que une os dois pa�ses.
"Eles queriam tirar os nigerianos de l�, e s�", disse Mohammed Gadam, o funcion�rio de fronteira, em entrevista.
Muitas outras pessoas em Ngala escolheram voltar depois de serem convencidas por camaroneses e soldados nigerianos de visita de que a vida era muito melhor em seu pa�s de origem, com suprimentos de assist�ncia fluindo livremente e grandes melhoras na seguran�a.
Quando Falta Ali, 23, voltou a Ngala, em mar�o, depois de dois anos foragida, ela descobriu que a cidade estava em ru�nas. Grupos assistenciais haviam montado algumas barracas, mas n�o em n�mero suficiente. A comunidade internacional estava perto de esgotar suas verbas de assist�ncia alimentar.
Yagana Buhama, a filha de seis meses de Ali, logo adoeceu.
"� por causa do ambiente aqui", disse uma m�dica, Beauty Nwuba, que estava atendendo Buhama em uma cl�nica improvisada. "Tudo est� superlotado".
Em mar�o, o Acnur chegou a acordo com os governos da Nig�ria e Camar�es nos termos dos quais s� os interessados em retornar voluntariamente seriam repatriados para a Nig�ria. O n�mero de retornos for�ados parece ter ca�do recentemente, disse o Acnur.
"H� agora uma estrutura para retornos volunt�rios", disse Cesar Tshilombo, que dirige o escrit�rio do Acnur no nordeste da Nig�ria.
Mas outros trabalhadores assistenciais dizem que as pessoas continuam sendo pressionadas a voltar a um lugar perigoso e desesperado.
"As autoridades camaronesas as amea�am at� que concordem em voltar", disse um trabalhador assistencial em Banki que conversou com refugiados no m�s passado. Ele pediu que seu nome n�o fosse revelado porque n�o est� autorizado a falar publicamente sobre o assunto.
Outros pa�ses tamb�m foram acusados de compelir refugiados a retornar para lugares prec�rios. Em um relat�rio publicado em fevereiro, a Human Rights Watch afirmou que, no Paquist�o, refugiados afeg�os estavam sujeitos a persegui��o policial, deten��o arbitr�ria e amea�as de deporta��o.
Mais de 350 mil pessoas registradas como refugiados voltaram ao Afeganist�o nos seis meses anteriores � publica��o do estudo, "o que caracteriza o maior retorno for�ado de refugiados dos �ltimos anos", escreveu a organiza��o. Segundo o relat�rio, as Na��es Unidas estavam facilitando o �xodo ao oferecer um subs�dio de US$ 400 por refugiado.
A ONU negou a acusa��o e disse que oferecia apoio aos refugiados para que decidissem seu futuro "com base em uma considera��o bem informada sobre as melhores op��es". O governo paquistan�s negou as acusa��es de coer��o.
Por enquanto, os milhares de refugiados que, como Goni, foram for�ados a retornar � Nig�ria t�m perguntas pragm�ticas a fazer. Quando ser�o reunidos com suas fam�lias? Como recuperar�o seus pertences deixados em Camar�es? Poder�o voltar para l� um dia?
"Eles nos mant�m aqui como se f�ssemos prisioneiros", disse Goni. "N�o est�vamos prontos para voltar".
Tradu��o de PAULO MIGLIACCI
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