Ascens�o da hero�na leva viol�ncia e medo ao interior do M�xico
Nesta cidade agitada � beira da "rodovia da hero�na" mexicana, civis armados com espingardas enferrujadas param carros de passagem, pedindo contribui��es para a defesa p�blica. A pol�cia foi desmembrada anos atr�s. O prefeito recebeu uma amea�a de morte recentemente e fugiu no helic�ptero do governador.
Mas � quando a rodovia 51 deixa as colinas ondulantes para tr�s e segue para oeste, atravessando o vale seco e quente em duas pistas solit�rias, que o perigo come�a a realmente envenenar a vida da popula��o. Chef�es do tr�fico conhecidos como "o Homem da Tequila" e "o Peixe" dominam a regi�o como senhores feudais, em guerra um com o outro e com os grupos de justiceiros que se formaram para combat�-los.
Moradores s�o sequestrados em grupos. Cad�veres torturados s�o atirados no vale, largados para apodrecer sobre as cal�adas quentes.
A epidemia de opi�ceos que vem causando tanto sofrimento nos Estados Unidos tamb�m est� devastando o M�xico, contribuindo para uma ruptura da ordem em �reas rurais. Para as quadrilhas do tr�fico, a hero�na � como um anabolizante que injeta dinheiro e for�a em sua luta pelo controle do territ�rio e das rotas de transporte da droga para os Estados Unidos.
Yuri Cortez - 7.mai.2017/AFP | ||
Mulheres fazem ato em solidariedade �s m�es dos 43 estudantes desaparecidos em Guerrero em 2014 |
Hoje o M�xico fornece mais de 90% da hero�na consumida nos EUA. Em 2003, fornecia apenas 10%; naquela �poca, a fonte principal era a Col�mbia.
A produ��o de papoulas cresceu cerca de 800% em uma d�cada, acompanhando o aumento da demanda nos EUA. O Estado ocidental de Guerrero est� no centro do neg�cio, produzindo mais de metade das papoulas-dormideiras, o ingrediente de base da hero�na. Guerrero tamb�m se tornou o Estado mais violento do M�xico, tendo registrado mais de 2.200 homic�dios no ano passado.
"Esses grupos se transformaram numa superpot�ncia criminosa", disse Ricardo Mejia Berdeja, diretor do comit� de seguran�a do Congresso do Estado de Guerrero. "A �ncora do crime organizado � a papoula com a qual se produz a hero�na."
Guerrero produz maconha e papoulas h� d�cadas. Mas no passado o crime organizado era mais estruturado, com um cartel principal no Estado subornando a pol�cia e autoridades e traficando as drogas. O crescimento vertiginoso do neg�cio da hero�na incentivou a ascens�o de novos bandos de traficantes armados, o que, por sua vez, levou ao surgimento de mil�cias civis.
Ao longo deste trecho de 180 quil�metros da rodovia 51, na �rea conhecida como Tierra Caliente (terra quente), sob as encostas acarpetadas de papoulas das montanhas da serra Madre do Sul, o colapso social � claramente vis�vel.
Mais de 200 escolas v�m fechando as portas periodicamente nos �ltimos meses, devido �s greves de professores para protestar contra a criminalidade deslavada. O Ex�rcito mexicano ocupou uma cidade este m�s para arrancar o controle das m�os de uma mil�cia civil que estava amea�ando um povoado vizinho. "Esta � uma terra sem lei", comentou um empres�rio que trabalha na regi�o.
EXTORS�O
Nicolas Bartolo saiu da rodovia 51 na cidade de Tlapehuala e seguiu na dire��o sul por uma estrada de terra, passando entre milharais secos. Era a esta��o da seca, e nuvens de fuma�a escureciam o c�u devido �s queimadas com que os agricultores preparavam suas terras para o plantio. Bartolo fez o sinal da cruz e continuou em frente. "Antigamente �ramos livres aqui", ele disse.
Bartolo trabalha na constru��o civil e toca guitarra numa banda chamada La Leyenda (a lenda) que se apresenta nas cidades de Tierra Caliente. Quase todo mundo aqui � obrigado a tratar com as quadrilhas do tr�fico, que diversificam suas atividades para abranger tamb�m a extors�o, sequestros e assaltos.
Nas obras em que Bartolo trabalha, pistoleiros roubaram caminh�es e um gerador movido a energia solar para usar nas montanhas, nas planta��es de papoula. Seu empregador � obrigado a pagar pelo menos US$ 300 por m�s a um cartel por cada m�quina pesada, como escavadeiras, usadas na obra. Se a empresa n�o paga, corre o risco de sofrer mais assaltos ou ataques.
A economia da regi�o est� sendo asfixiada pouco a pouco pelas quadrilhas criminosas. Empres�rios dizem que vendedores de mangas, pepinos e outros legumes ou frutas t�m que pagar um peso (cerca de US$ 0,05) por cada quilo vendido. Os restaurantes que precisam de frango s�o for�ados a comprar de fornecedores especificados pelas quadrilhas.
A mina de zinco de Campo Morado, operada pela empresa belga Nyrstar, era uma fonte importante de empregos na regi�o, mas fechou em 2015 devido a "problemas cont�nuos com seguran�a", segundo um representante. Moradores da �rea disseram que os extorsion�rios estavam exigindo demais.
H� dez anos, mais ou menos, um cartel de drogas dominava Guerrero: a organiza��o dos Beltr�n Leyva. Hoje h� pelo menos uma d�zia de quadrilhas que disputam territ�rios no Estado. Isso se deve em parte ao esfor�o concentrado das autoridades mexicanas de capturar os l�deres de cart�is e fragmentar suas organiza��es. Mas � tamb�m consequ�ncia do modo como funcionam a produ��o e o com�rcio de hero�na.
A hero�na � mais rent�vel que a coca�na, e seu transporte para os EUA � logisticamente mais f�cil. Diferentemente da coca�na, que se origina na Am�rica do Sul e � transportada por grandes cart�is mexicanos, a hero�na � produzida no pr�prio M�xico.
Quadrilhas menores surgiram para competir pelos lucros; algumas s�o formadas por apenas um punhado de amigos ou parentes. Com o neg�cio da maconha perdendo for�a � medida que mais Estados americanos permitem uma produ��o maior, a hero�na ganhou import�ncia ainda maior na economia das quadrilhas.
Um dos cart�is mais fortes em Tierra Caliente � La Fam�lia Michoacana, descendente de uma organiza��o criminosa que anunciou sua chegada mais de uma d�cada atr�s, rolando cabe�as decepadas sobre o ch�o de uma boate.
Seu l�der � Johnny Hurtado Olascoaga, conhecido como "El Pez" (o peixe), cuja base de opera��es fica em Arcelia, cidade � margem da rodovia 51. Por volta de 2012, um de seus principais pistoleiros, chamado Raybel Jacobo de Almonte, "El Tequilero", abandonou a quadrilha e formou seu pr�prio bando criminoso, com sede em San Miguel Totolapan, a 25 quil�metros de Arcelia.
Antes o cartel dos Beltr�n Leyva controlava os criminosos da regi�o. Desde seu decl�nio, as quadrilhas de drogas v�m tendo liberdade crescente para praticar sequestros e extors�es, diversificando suas atividades. "Elas tentam uma vez, d� certo, elas ganham dinheiro, ent�o fazem de novo", comentou o antrop�logo Chris Kayle, da Universidade do Alabama em Birmingham e especializado no estudo de Guerrero.
As gangues j� sequestraram convidados em casamentos, arrancaram professores de salas de aula e levaram enfermeiras de cl�nicas. Tamb�m sequestraram um amigo de Bartolo. No m�s passado Bartolo foi �s montanhas entregar um resgate de 200 mil pesos (cerca de US$ 10 mil). Encontrou seu amigo amarrado com arame farpado, com o sangue escorrendo das m�os, ao lado de dezenas de outras v�timas.
"Quando vi aquela gente toda ali, deu vontade de chorar", ele contou.
EXPANS�O
Nas montanhas que se erguem a partir de Terra Caliente, o tenente-coronel C�sar Bellizia Aboaf, da 35� Zona Militar do Ex�rcito mexicano, liderou um comboio que subiu a montanha, seguindo quil�metros de mangueiras pretas de borracha. Na esta��o das secas, os agricultores irrigam suas planta��es de papoula com �gua bombeada de po�os e riachos. As mangueiras traem sua localiza��o aos soldados.
Bellizia parou no alto de uma escarpa e olhou para um campo de 2,5 acres de flores rosadas. Seus soldados tinham encontrado o campo alguns dias antes, uma das dez a 15 planta��es de papoula que descobrem por dia, e ele os mandara queim�-lo.
Apesar dessa erradica��o regular feita pelos militares, al�m da pulveriza��o a�rea, a produ��o mexicana de �pio est� em franca expans�o, alimentada pela demanda americana.
O n�mero de americanos que informam ser consumidores de hero�na quase triplicou entre 2007 e 2014, chegando a 435 mil pessoas, segundo relat�rio do ano passado da DEA (ag�ncia americana de combate ao tr�fico de drogas). � parte de uma epidemia de consumo de opi�ceos que tamb�m inclui o abuso de medicamentos.
Em 2005, produtores mexicanos plantaram 8.000 acres de papoulas; dez anos mais tarde a �rea cultivada j� alcan�ava 69.400 acres, segundo as cifras mais recentes das Na��es Unidas. Nas montanhas de Guerrero, os produtores plantam o ano inteiro. Quando a flor amadurece, eles passam uma l�mina em volta do bulbo e recolhem em latas vazias de refrigerante ou suco a resina pegajosa, cor de cobre, que escorre dele.
Os traficantes pagam aos agricultores pobres cerca de US$ 800 por quilo de resina de �pio. Depois de ser processada em barracas nas montanhas, convertendo-se em hero�na branca de alta qualidade, cada quilo pode ser vendido por US$ 50 mil nas ruas de Chicago, segundo autoridades policiais dos EUA.
Para proteger suas planta��es e os laborat�rios de hero�na, as quadrilhas de traficantes de Guerreiro empregam olheiros para identificar visitantes desconhecidos na regi�o e montam barreiras em estradas vicinais. As quadrilhas procuram controlar as cidades ao longo da rodovia 51 porque elas s�o centros cruciais de fornecimento para a regi�o produtora de papoula, possuindo os �ltimos postos de combust�veis e as �ltimas mercearias encontradas antes das estradas de terra que sobem para as montanhas.
O policiamento na �rea � fraco, �s vezes virtualmente inexistente. Em 2014, em um esc�ndalo que abalou o pa�s, 43 estudantes de pedagogia desapareceram em Iguala, cidade na extremidade leste da rodovia 51, depois de serem detidos pela pol�cia.
O governo subsequentemente desmembrou um ter�o das pol�cias municipais do Estado por estarem supostamente em conluio com os traficantes, entregando a responsabilidade pelo policiamento das cidades �s pol�cias federal e estadual, j� sobrecarregadas. Autoridades locais sabem que podem ser assassinadas ou sequestradas se n�o cumprirem as exig�ncias das quadrilhas.
"Uma d�cada atr�s, os cart�is davam dinheiro ao governo local para poderem operar. Agora n�o: s�o os governos que t�m que dar dinheiro aos cart�is para poderem governar", falou um empres�rio que atua em Tierra Caliente e exigiu anonimato, temendo repres�lias por manifestar-se contra os traficantes. "Semear o terror entre a popula��o rende bons resultados."
Soldados mexicanos fazem patrulhas e montam barreiras, mas os moradores acham que os grupos criminosos s�o mais fortes que eles. O relevo acidentado, a malha vi�ria insuficiente e as autoridades locais comprometidas com o tr�fico dificultam o trabalho.
"Nenhum ex�rcito do mundo poderia operar com �xito nesta regi�o", disse o tenente-coronel Juan Jos� Moreno Orzua, vice-chefe e porta-voz da 35� Zona Militar.
SEQUESTROS
A �ltima de estimadas 200 v�timas a ser sequestrada em San Miguel Totolapan foi Isauro de Paz Duque, 37, dono de uma construtora, raptado na rua por pistoleiros em meados de dezembro.
Ele foi levado pelos homens de El Tequilero, que h� anos espalhava o terror na cidade de 3.000 habitantes, com sequestros e assassinatos. Muitos moradores haviam fugido, enquanto outros se escondiam atr�s de portas e janelas gradeadas, com medo de sair de casa.
Enfurecidos pelo sequestro de Paz Duque, os moradores formaram uma mil�cia, o Movimento pela Paz. Cidad�os de outras regi�es mexicanas marcadas pela viol�ncia do narcotr�fico v�m fazendo o mesmo.
Mas, em lugar de promover a ordem, os grupos de cidad�os tornaram-se mais um elemento desestabilizador em muitas �reas rurais. Chris Kyle, o acad�mico que estuda Guerrero, disse que desde 2015 houve um aumento acentuado nos tiroteios entre essas mil�cias que policiam comunidades.
Membros da mil�cia de San Miguel Totolapan rapidamente fizeram quase 20 pessoas de ref�ns, incluindo a m�e de El Tequilero. Em poucos dias j� haviam trocado seus prisioneiros por Paz Duque e outros sequestrados.
Os milicianos tomaram conta da seguran�a p�blica, erguendo barreiras refor�adas com sacos de areia nas entradas da cidade e construindo fortes toscos no alto de morros. Os moradores come�aram a voltar � cidade, aos poucos. Mas alguns moradores diziam � meia voz que El Pez, o chef�o do tr�fico rival, estava ajudando a financiar e armar a mil�cia.
Com o passar dos meses, enquanto El Taquilero continuava foragido, os milicianos estavam cada vez mais agitados. Alguns achavam que El Tequilero teria se refugiado na cidade vizinha de La Gavia.
"Se o governo n�o encontrar uma solu��o, teremos que cuidar disso n�s mesmos", disse Silvino Bernab�, 32, no final de abril.
No in�cio de maio, membros da mil�cia invadiram La Gavia e exigiram que os moradores lhes entregassem El Tequilero. Os homens de El Pez, os suspeitos aliados da mil�cia, os seguiram na manh� seguinte, segundo autoridades de Guerreiro. A troca de tiros entre os seguidores dos dois cart�is durou horas e deixou oito mortos.
Tr�s dias mais tarde, centenas de soldados e policiais estaduais chegaram a San Miguel Totolapan para desarmar a mil�cia. Mas os moradores da cidade sentiam pouca confian�a no governo. Eles foram para as ruas, incendiaram caminh�es e pneus e jogaram pedras nos soldados, que responderam com bombas de g�s lacrimog�neo.
O Ex�rcito conseguiu manter controle sobre a cidade, mas El Pez e El Tequilero continuam foragidos. E a hero�na que alimenta a viol�ncia continua a passar pela rodovia 51, indo para o norte.
Tradu��o de CLARA ALLAIN
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