Mandela se transformou num monumento � toler�ncia ap�s pris�o
O que esperaria a sabedoria convencional de uma pessoa normal que passasse 27 anos na pris�o, apenas por defender seus ideais, ali�s nobres? Que ele sa�sse da pris�o vomitando �dio e ressentimento e que buscasse a vingan�a contra os opressores, dele pr�prio e de seu povo, os negros sul-africanos.
Para sorte da �frica do Sul, Nelson Mandela Rolihlahla n�o era uma pessoa normal, mas "um tesouro perdido" para usar a express�o com que a ent�o secret�ria de Estado, Hillary Clinton, definiu o ex-presidente, ao encontr�-lo em 2009, j� aposentado --e como estadista, talvez o �ltimo do s�culo 20.
Mandela saiu da pris�o para apertar a m�o de Frederik Willem de Klerk, ent�o presidente do regime de apartheid, que segregava os negros de uma maneira t�o brutal que, quando come�ou a acabar, em 1994, havia no pa�s 750 mil piscinas, uma para cada duas fam�lias brancas, ao passo que, na outra ponta, 10 milh�es de fam�lias negras n�o dispunham de �gua pot�vel em suas habita��es.
O simples gesto j� era uma demonstra��o de toler�ncia e de esp�rito de concilia��o. Tanto que ele e De Klerk acabaram ganhando juntos o Nobel da Paz (1993).
Na sua primeira entrevista ap�s ser eleito presidente, em 1994, deu uma verdadeira aula magna de paci�ncia, certamente aprendida em seu longo cativeiro. Perguntei como ele pretendia fazer para evitar que a �bvia impossibilidade de atender rapidamente a demanda dos negros por uma vida mais digna, reprimida por s�culos, n�o provocasse uma explos�o de frustra��es capaz de dinamitar a transi��o.
Sereno, com o jeito de av� s�bio e bondoso que todo neto gostaria de ter (j� estava com 76 anos), respondeu:
"Quando dermos a primeira casa para quem n�o a tem, todos os seus vizinhos ficar�o com a certeza de que tamb�m ter�o a sua, mais cedo ou mais tarde, e esperar�o".
Esperaram, de fato, tanto que, na presid�ncia Mandela (1994/99), a �frica do Sul praticamente sumiu da m�dia internacional, o que
contrariou o padr�o africano dos anos recentes ou mesmo o de pa�ses que sa�ram de longos per�odos autorit�rios. A �frica do Sul de Mandela n�o viveu uma das duas seguintes situa��es, talvez ambas, que usualmente ocupam a m�dia:
1. Uma guerra tribal sangrenta e intermin�vel;
2. A fragmenta��o em diferentes pa�ses etnicamente homog�neos, com a consequente "limpeza" das etnias minorit�rias.
Esse esp�rito conciliador obviamente nasceu na pris�o de Robben Island, em que ficou confinado de 1963 a 1990. Afinal, Mandela foi um dos criadores do Umkhonto we Sizwe ("A Lan�a da Na��o"), o bra�o armado do CNA (Congresso Nacional Africano), o partido com o qual ele liderou a luta dos sul-africanos negros (e alguns poucos brancos) contra o apartheid.
No julgamento que o condenou, quando j� estava preso, definiu a sua luta assim:
"Eu celebrei a ideia de uma sociedade livre e democr�tica na qual todas as pessoas vivem juntas em harmonia e com oportunidades iguais. � um ideal pelo qual espero viver e o qual espero alcan�ar. Mas, se for necess�rio, � um ideal pelo qual estou pronto para morrer".
Viveu e alcan�ou. Foi de todo modo um longo e penoso percurso desde o nascimento (18/7/1918), na vilazinha de Mvezo (hoje parte da Prov�ncia de Cabo Leste), "um lugar distante, um pequeno distrito afastado do mundo dos grandes eventos, onde a vida corria da mesma forma h� centenas de anos", conforme escreveu em sua autobiografia.
Nascido Rolihlahla Madiba Mandela, coube a ele iniciar uma pequena mudan�a na rotina de sua vila, ao se tornar o primeiro membro da fam�lia a frequentar a escola, na qual ganhou o nome ingl�s "Nelson".
Estudou cultura ocidental, iniciou o curso de direito na Universidade de Fort Hare, na qual sua vida ganharia a inflex�o que o lan�aria na luta contra o apartheid, o que, por sua vez, o levaria � clandestinidade (1961), at� se tornar o prisioneiro 46.664 de Robben Island.
Saiu da cadeia (1990) quase diretamente para a Presid�ncia (1994).
Seu per�odo de governo parece um caso cl�ssico de copo meio cheio, meio vazio. Se a transi��o do apartheid para uma democracia multirracial foi pac�fica, a viol�ncia comum s� fez se agravar, a ponto de ter sido o centro da campanha eleitoral para a sucess�o de Mandela. Havia, ent�o, 50 mortes violentas por dia, a taxa mais elevada do mundo, segundo o Instituto de Estudos para a Seguran�a, de Johannesburgo.
Um dado, mais que todos, chocava: a cada 11 minutos uma mulher era violentada.
Outros problemas foram atenuados, mas permanecem graves: na educa��o, por exemplo, nos cinco anos Mandela, foram constru�das 100 mil novas salas de aula e 1,5 milh�o de crian�as, antes � margem do sistema, passaram a frequentar a escola.
Mas a qualidade do ensino continuava prec�ria e parte do gasto se perdia pelos ralos da inefici�ncia e da corrup��o.
Compara��es similares poderiam ser feitas para praticamente todos os setores.
Mandela, contrariando padr�o muito comum na �frica, n�o concorreu � reelei��o. Entregou tanto o CNA como o poder a seu disc�pulo Thabo Mbeki e retirou-se como uma esp�cie de monumento vivo. Tanto que as atra��es relacionadas a Mandela figuram entre as dez buscas mais populares na p�gina do Departamento Nacional de Turismo da �frica do Sul (www.southafrica.net). Sete delas foram declaradas Patrim�nio Nacional.
Ele se casou tr�s vezes. A primeira mulher de Mandela foi Evelyn Ntoko Mase, da qual se divorciou em 1957 ap�s 13 anos de casamento. Depois se casou com Winnie Madikizela, e com ela ficou 38 anos, divorciando-se em 1996, com as diverg�ncias pol�ticas entre o casal vindo a p�blico. No seu 80� anivers�rio, Mandela casou-se com Gra�a Machel, vi�va de Samora Machel, outro �cone africano, como l�der guerrilheiro primeiro e, depois, presidente de Mo�ambique.
Teve seis filhos, 17 netos e 14 bisnetos --e parecia mais � vontade no papel de av� do que no de estadista mundialmente celebrado.
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