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Fábio Zuker

Extrema direita usa descolonização para projetos reacionários

Hamas, Netanyahu, Putin e Trump subvertem o conceito de esquerda em exaltação racista de direitos de 'grupos nativos'

Brinquedos em meio a escombros de residência queimada em ataque de colonos israelenses na aldeia de Al-Mughayyir, na Cisjordânia - Zain Jaafar - 17.abr.24 / AFP

Fábio Zuker

Antropólogo e jornalista, com doutorado pela USP e pós-doutorado pela Universidade de Princeton. Autor de "Vida e Morte de uma Baleia-minke no Interior do Pará e Outras Histórias da Amazônia"

[RESUMO] As noções de descolonização e decolonialidade, forjadas no pensamento crítico latino-americano, vêm sendo apropriadas por movimentos autoritários cujos projetos nativistas, sustenta o autor, concebem uma relação essencializada da população com o território que ocupa, o que impulsiona o ódio contra grupos considerados invasores e medidas que podem resvalar em extermínio.

As primeiras décadas do século 21 têm sido marcadas por um fenômeno curioso e assustador. Novos movimentos autoritários encontraram nas ideias de descolonização e decolonialidade uma justificativa para seus projetos políticos.

São movimentos ultraconservadores de amplo apoio popular na Rússia, na França e nos Estados Unidos ancorados em uma ideia de nativismo. Essa apropriação também tem sido feita pelo sionismo messiânico judaico em Israel e pelos grupos jihadistas na Palestina, cada um almejando estabelecer um Estado nativo entre o mar Mediterrâneo e o rio Jordão.

Grafite crítico a Vladimir Putin em fachada de edifício destruído por bombardeio em Borodyanka, na Ucrânia - Francisco Proner - 17.abr.24/Folhapress

Originada no campo acadêmico por intelectuais latino-americanos de esquerda como Walter Mignolo, Aníbal Quijano e Enrique Dussel, preocupados em criticar o traço multifacetado e contínuo do poder colonial, a ideia de decolonialidade encontrou terreno fértil na extrema direita. Trata-se de uma essencialização da relação de pertencimento entre um grupo étnico e um território que leva o nacionalismo anterior à formação dos Estados-nações ao campo da supremacia étnico-religiosa com os Estados já formados.

Esse movimento de apropriação de conceitos críticos elaborados pela esquerda, subvertendo o seu significado original, também definiu a extrema direita no século passado. Não é à toa que o Partido Nazista se chamava, precisamente, Partido Nacional-socialista dos Trabalhadores Alemães.

Como defende Hannah Arendt, os nazistas, enquanto erigiam um partido e um governo para transformar a estrutura do Estado alemão e torná-lo antibolchevique e antijudaico, propositadamente tornaram obsoletas denominações políticas ao incorporar a palavra socialismo no nome de seu partido.

Em um curto ensaio publicado recentemente, a historiadora das ideias políticas Miri Davidson apontou o que ela chama de "descolonização da extrema direita". Para que não sobrem dúvidas: essa apropriação da ideia de decolonialidade vem a serviço de projetos políticos retrógrados, racistas e muito distantes do espírito crítico que moveu os intelectuais latino-americanos mencionados que forjaram o conceito.

Rússia

O caso de Vladimir Putin é significativo. A invasão da Ucrânia é defendida pelo presidente-czar e seus ideólogos como um movimento anticolonial e, simultaneamente, parte de um projeto imperialista.

O que permite a articulação dos dois conceitos contraditórios é o entendimento de que a ordem global existente é fruto de um imperialismo norte-americano que opera em termos culturais, econômicos e militares. Daí, segundo essa lógica, o imperialismo russo ser decolonial, se contrapondo ao imperialismo dominante, chamado de atlantismo pelo místico russo Alexander Dugin.

É impossível compreender a racionalidade política da Rússia contemporânea sem entender Dugin, considerado o mais influente filósofo político do país e responsável por moldar, no século 21, sua ideologia pós-soviética. Dugin tem grande inserção na elite russa e defende que o país não é nem ocidental nem oriental, mas uma civilização própria que luta para estabelecer um império eurasiano ancorado em uma mística cristã ortodoxa.

Assim, enquanto os EUA e seus aliados europeus trabalhariam pela extensão de um império centrado em uma ideia de um espaço vazio, neutro e homogeneamente concebido, a territorialidade russa e seu império estariam baseados em uma concepção concreta, em que um povo particular é inseparável do território que ocupa.

A batalha russa contra o imperialismo ocidental não seria, portanto, uma batalha política qualquer. Para Dugin, se trata de uma luta espiritual, uma batalha existencial pela alma russa, já que a globalização exportada pelos Estados Unidos seria uma forma de mascarar o lado "espiritual" do imperialismo, marcado pela imposição dos valores liberais norte-americanos em todo o globo.

Dessa forma, na sua visão, o surgimento de movimentos nativistas ao redor do mundo acontece como vulcões que entram em erupção um depois do outro, desfazendo a promessa de paz almejada pelo duplo projeto democracia liberal/economia de mercado. Para a Rússia, é fundamental minar o imperialismo norte-americano, fomentando movimentos populistas isolacionistas nos EUA —daí o apreço por Donald Trump— e a extrema direita europeia.

Ao lado do renascimento da Eurásia, Dugin prevê também uma ala islâmica, uma xiita, uma africana, uma chinesa e uma latino-americana, completando o quadro. Trata-se de um projeto geopolítico centrado na descolonização dos povos ao redor do globo e em uma ideia fascista da relação entre povos e territórios.

Teoria da grande substituição

Longe de se restringir à Rússia, ideias similares têm sido disseminadas amplamente na França e nos EUA. O escritor francês Renaud Camus é o autor de "A Grande Substituição" (2012), livro em que defende a tese racista e islamofóbica de que a Europa está sendo invadida por árabes e africanos. Aqui, a ideia de descolonização da Europa se volta contra a suposta invasão que tiraria o caráter nativo do povo branco e cristão.

A teoria tem sido apropriada por movimentos supremacistas brancos na Europa, nos EUA, na Austrália e na Nova Zelândia e utilizada frequentemente para legitimar marchas neonazistas ou assassinatos em massa. Este foi o caso do terrorista australiano que, depois de postar um manifesto inspirado na teoria da grande substituição, transmitiu online o massacre em uma mesquita em Christchurch, na Nova Zelândia, em que assassinou 51 pessoas.

Nos EUA, a teoria da grande substituição deixou de ter uma circulação marginal e passou de grupos supremacistas brancos para o mainstream do Partido Republicano, a ponto de Trump estar propondo medidas de deportação em massa caso seja eleito em novembro. Na versão norte-americana, os judeus seriam os principais responsáveis por traficar latinos e outros povos para destruir o caráter branco e cristão do país.

O fato de os EUA terem se tornado, nas últimas décadas, um país mais diverso é utilizado por políticos ultraconservadores para amedrontar a população branca, afirmando que eles perderiam seus privilégios e que seus votos se tornariam menos valiosos. Para grupos extremistas dos EUA e de diversos países da Europa, descolonizar passou a ser sinônimo de projetos autoritários em defesa da população branca "nativa".

Israel e Palestina

Talvez em nenhum outro lugar a cooptação reacionária da ideia de descolonização tenha gerado tanta violência quanto no conflito Israel-Palestina. A extrema direita israelense e movimentos islâmicos teocráticos como Hamas e Jihad Islâmica têm travado uma brutal dança da morte na disputa a respeito de quem tem o direito de ser descolonizado.

Se há uma simetria no desejo de varrer o outro da terra com o propósito de extirpar aquele considerado invasor, há uma assimetria brutal no que diz respeito às capacidades militares e ao apoio internacional para de fato fazê-lo. Assim, de um lado, o genocídio perpetrado por Binyamin Netanyahu e seu governo é, em grande medida, guiado pelo delírio fundamentalista que vislumbra que a construção de uma Grande Israel precipitaria a vinda do Messias e o fim dos tempos.

Complementarmente, Yahya Sinwar, Ismail Haniya, Mohammed Deif e demais líderes do Hamas são corresponsáveis nesse genocídio, já que usam as mortes de palestinos alheios ao movimento para a efetivação de um projeto político teocrático. Para tanto, afirmam que a autodeterminação judaica sob um Estado nacional equivaleria a um projeto colonial a ser extirpado.

O retorno de Netanyahu ao cargo de premiê ocorreu em 2022, apenas um ano e meio depois da sua saída. Acuado pelo Judiciário em acusações de suborno e corrupção, o político do partido tradicional de direita Likud avançou em sua virada para a extrema direita ancorando seu governo em siglas extremistas como os partidos Religioso Sionista e Poder Judaico.

Anos antes, Netanyahu já havia aprovado a controversa lei que estabelece que Israel é um Estado exclusivo aos judeus, entendida por muitos como uma norma que institui um regime de apartheid, já que cerca de 20% da população israelense é composta de árabes cristãos e muçulmanos.

Figuras outrora marginais da política israelense, como Bezalel Smotrich e Itamar Ben-Gvir, que construíram suas carreiras políticas incentivando a violência de colonos israelenses contra palestinos na Cisjordânia e em Gaza, foram alçados a cargos centrais no governo Netanyahu. Smotrich é ministro das Finanças, e Ben-Givr comanda a pasta da Segurança Nacional. Ambos dedicam suas vidas à empreitada de "descolonizar" o território localizado entre o Mediterrâneo e o rio Jordão, defendendo a formação de um Estado com território ampliado em que judeus sejam considerados indígenas e árabes, invasores.

A arqueologia, nesse sentido, se tornou em Israel uma ciência a serviço não apenas do Estado, mas de uma visão radical e expansionista do país, baseada em uma espécie de destino manifesto, mobilizado para justificar décadas de ocupação ilegal da Cisjordânia e da Faixa de Gaza. A situação é particularmente drástica em Jerusalém, onde estudos arqueológicos conduzidos por grupos de colonos em busca de vestígios da cidade do rei Davi são usados para expulsar bairros palestinos inteiros.

O Hamas também tem um projeto reacionário e teocrático de descolonização. Seus inimigos são tanto os judeus quanto as organizações palestinas seculares e de tendência socialista.

A criação de um Estado islâmico na Palestina, do rio ao mar, está apoiada na ideia racista de que os judeus não pertencem ao Oriente Médio, apesar de a maior parte dos judeus que vivem em Israel ter origem no Norte da África, na região do Levante (da qual a Palestina histórica faz parte) e na Península Arábica. Entre os anos 1940 e 1970, cerca de 800 mil judeus sofreram limpeza étnica em países árabes e muitos encontraram refúgio em uma Israel em plena formação.

Além disso, ninguém é nativo do território entre o rio e o mar, já que todos os impérios dos últimos 3.000 anos que dominaram a região forçaram pessoas a irem para um lado e para o outro, dos babilônios aos britânicos.

A perspectiva fundamentalista do Hamas, que ganha adeptos de esquerda ao redor do mundo, trabalha precisamente para apagar que a ideia de formação de um Estado judaico surgiu concomitantemente a outros nacionalismos, à medida que os impérios de Habsburgo, Otomano e Russo iam se esfacelando.

No caso do Império Otomano, a emergência de nacionalidades modernas, sejam as hegemônicas (turcas e árabes), sejam as minoritárias (entre as quais a judaica), buscaram estabelecer uma lógica de Estado-nação avessa à dos impérios multiétnicos, que foi atrasada pelo colonialismo britânico e francês.

Historicamente, as mesmas tendências políticas que defendiam a criação dos Estados árabes eram a favor do Estado judaico. Do contrário, seriam saudosistas do otomanismo ou simpáticas à colonização pelas potências europeias. A criação de um pequeno Estado judaico em meio à vastidão de Estados árabes era lida como um projeto anti-imperial e anticolonial, inclusive por líderes árabes. A tragédia é que Israel esteja há décadas se valendo de táticas coloniais para impedir a emergência de um Estado palestino como vizinho —o que, invariavelmente, implicará a concessão de terras.

Ao longo das décadas, a cooptação de dois movimentos anticoloniais legítimos por grupos extremistas gerou dois projetos de descolonização mutuamente excludentes, que têm minado qualquer possibilidade de diálogo e coexistência de dois povos cujo destino histórico foi entrelaçado, em grande medida, independentemente da sua vontade.

Em nome da descolonização, tudo se tornou superlativo. O ataque de 7 de outubro foi o maior assassinato de judeus em um só dia desde Auschwitz. A resposta de Netanyahu é uma carnificina sem precedentes e já assassinou quase 40 mil palestinos, com bombardeio indiscriminado em Gaza e o uso da fome como arma de guerra —ações que levaram a Corte de Haia a determinar medidas contra atos de genocídio em Gaza, embora as decisões pareçam ter surtido poucos efeitos concretos em deter a máquina de guerra israelense.

Estamos diante de um fenômeno político novo. Os novos autoritarismos ganham tração na Europa, na Rússia e nos EUA, bem como junto aos movimentos fundamentalistas judaicos e islâmicos, cada qual justificando seu projeto político no nativismo e na essencialização do pertencimento étnico-religioso a um território.

Esses casos tornam evidente que a apropriação da lógica da descolonização pela extrema direita pode rapidamente resvalar em projetos supremacistas, que, para prosperar, dependem do cultivo do ódio e, em última instância, do extermínio do outro.

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