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Martim Vasques da Cunha

Poesia de Camões é salvação contra desconcerto do mundo

Cinco séculos depois de seu nascimento, poeta português é cada vez mais relevante

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Martim Vasques da Cunha

Doutor em ética e filosofia política pela USP, é autor de "A Tirania dos Especialistas" (Civilização Brasileira) e "O Contágio da Mentira" (Âyiné)

[RESUMO] Camões, que nasceu há cinco séculos, foi um poeta visionário, de imaginação poderosa, que ligou a história de Portugal à tradição greco-romana. Por vezes enigmática para o leitor de hoje, sua obra, sobretudo o épico "Os Lusíadas", parte de mitos como o de Perséfone para refletir a respeito de como a arte pode regenerar uma civilização destituída de valores.

O único tema que preocupava Luís Vaz de Camões era o impossível. No caso, era impossível Portugal se reerguer de uma decadência imperial já vislumbrada e que culminaria com o desaparecimento do rei dom Sebastião nas areias do Marrocos.

Era impossível o próprio poeta encontrar a expressão adequada para uma arte que sintetizaria o mundo antigo e o Renascimento. E era impossível ele descobrir alguma paz em um mundo dominado por um "desconcerto" que dilacerava a sua alma.

colagem de azulejos portugueses
Colagem a partir de retrato icônico do poeta português Luís de Camões, pintado por Fernão Gomes nos anos 1570 - Silvis

Após sua morte, também se tornou impossível compreender o enigma que o próprio Camões jogou para a posteridade. As pistas estão lá, nos versos, mas ninguém mais tem a bússola para decifrá-las.

A recepção crítica à obra camoniana se divide em dois grupos majoritários. O primeiro são os românticos que ainda acreditam em um vínculo biográfico direto entre os poemas e uma vida atribulada (representados por Almeida Garrett e Teófilo Braga, entre outros).

E os segundos são os modernos racionalistas, promotores da ideia de que Camões apenas imitava os clássicos e que, no fundo, pretendia ser um Petrarca lusitano (com expoentes como Vitor Manuel de Aguiar e Silva, Frederico Lourenço e Rita Marnoto).

Esse novo "desconcerto" implica que não há chance para o público ter acesso a uma terceira possibilidade. Camões foi, antes de tudo, um poeta visionário. Ele teve uma experiência interior, extremamente poderosa, a qual o religou a uma tradição cujos mestres foram Homero, Ovídio, Virgílio, Dante, depois Milton, Tasso e, surpresa das surpresas, Ezra Pound.

O que seria essa experiência? Voltamos ao tema do "impossível", em que a poesia está intimamente relacionada com o que significa viver em uma civilização e o que significa possuir alguma civilidade.

Este é o mote de "Os Lusíadas", épico concebido durante 12 anos, publicado em 1572 e que provoca comoção em algumas sensibilidades progressistas. Para muitos, é racista (por causa de suas observações antipáticas sobre os muçulmanos). Para poucos, é o último exemplar de um mundo que deveria ser redescoberto (devido às suas metáforas esotéricas, hoje tão distantes de nós quanto a Grande Muralha da China).

Na verdade, Camões não faz parte desta falsa dicotomia. Está acima disso tudo. A visão que o consumia era a de um mito que até hoje poucos conseguiram compreender adequadamente. É a história do rapto e estupro de Perséfone, filha de Zeus com Demeter, por Hades, o rei do inferno, que a desposou. A estadia da moça por lá durou seis meses tenebrosos. Depois, houve seu posterior (e miraculoso) retorno ao mundo dos vivos graças à persistência da mãe, passando Perséfone a se alternar em ambos os reinos.

Quem teve esta intuição é Guy Davenport, em seu livro clássico (mas pouco conhecido) "The Geography of Imagination" (1981, reeditado recentemente nos EUA). Para ele, a deusa do subterrâneo (pois assim ela passou a ser conhecida, sempre cercada de plantas, flores e ervas) é a prova do poder da regeneração. E é este mito que fundamenta tanto a relação da poesia com a civilização como a função específica do poeta em criar (e recriar) a nossa civilidade.

colagem de azulejos portugueses
Colagem sobre as navegações portuguesas narradas por Camões em "Os Lusíadas" - Silvis

Não era o artista que escolhia o tema de Perséfone. Era a própria donzela (ou "Koré", em grego, como também foi nomeada) que o selecionava. Ele seria parte de uma nobre linhagem. Inicia-se em Homero (a Circe da "Odisseia" é a primeira variante), passa por Virgílio (Dido na "Eneida") e Ovídio (no livro 5º das "Metamorfoses").

Atravessa Dante e Chaucer (Beatriz na "Divina Comédia", do primeiro, e a esposa de Bath de "Os Contos da Cantuária"), encontra Petrarca (a malfadada Laura do "Cancioneiro"), esbarra em Milton (a Eva de "Paraíso Perdido") e Shakespeare (a Dama Escura dos sonetos). E, finalmente, termina no modernismo de Ezra Pound, com a presença feminina invisível que salvaria o poeta de "Os Cantos" das loucuras ideológicas (o fascismo e o antissemitismo) que o possuíram durante o século 20.

Para Davenport, Perséfone simboliza o paradoxo entre civilização e civilidade: como a cultura pode sobreviver quando toda a virtude parece desabar? A história dela é a mesma narrada em qualquer grande épico produzido por esses poetas. Trata-se da metamorfose, na qual uma nação é forçada a cometer uma ação considerada impossível: morrer e ressuscitar diversas vezes no curso trágico da história humana.

Em "Os Lusíadas", Camões estrutura toda a sua grande obra ao redor deste mito, desde os mínimos detalhes até o panorama mais amplo. É um centro secreto, onde o "desconcerto do mundo" está registrado na aparente impossibilidade de que Portugal, desgastado após as grandes navegações, enfim tenha a sua primavera. Para o império lusitano daquela época, o labirinto da história já dava indícios de ser, com o passar dos anos, uma verdadeira descida ao submundo.

Assim, Portugal é Perséfone. Quem solucionou este enigma, concebido com incrível destreza artística por Camões, foi Ezra Pound.

As simetrias entre os dois poetas, separados por mais de três séculos, são espantosas. Ambos foram polêmicos em seu tempo (Camões seria boêmio, briguento e valente durante as conquistas lusitanas na Índia e na China; Pound era boêmio, briguento e defensor de Mussolini na Segunda Guerra); ambos tinham o virtuosismo do verso (tanto a lírica camoniana como os poemas curtos de Pound são modelos de precisão estilística); e ambos realizaram os épicos que registraram o fim de toda uma cultura humanista ("Os Lusíadas" são o canto do cisne de uma Europa que estava prestes se render ao Iluminismo; "Os Cantos" são um gigantesco fragmento sobre um mundo que jamais encontrará o seu paraíso, exceto nas ruínas do que foi o passado).

Apesar de Pound conhecer pouco da língua portuguesa e ter mínima estima por Camões quando jovem (disse que o lusitano era o "Rubens do verso", um insulto sofisticado para afirmar que ele era excessivamente barroco), claramente mudou de opinião durante a maturidade, como mostram os primeiros trechos de "Os Cantos".

Isto está registrado na coletânea organizada por Augusto de Campos e publicada recentemente aqui pela Editora Cobalto, intitulada apenas "Poesia". Pound cita explicitamente o famoso episódio sobre Inês de Castro, narrado em "Os Lusíadas" como o da amante de dom Pedro 1º (1320-1367) , que se tornou rainha depois de ter sido assassinada pelos inimigos do monarca. É um dos motes dos versos que o perseguiriam nas décadas que demorou para terminar o seu monumental ciclo.

No terceiro "Ur-Canto" (o experimento que Pound fez antes de iniciar de fato o seu épico), há referência à "voz altissonante" de Camões, e assim reconta o evento: "E Inês?/ Era uma aia da rainha,/ Sinecuras da corte em Portugal,/ E Pedro a amava, o jovem princípe/". Depois, ele incorpora um trecho de "Os Lusíadas": "‘A que depois de morta foi rainha.’/ "Que entre flores"/ Como, antes, Prosérpina".

Ora, Prosérpina é outro nome para Perséfone. Tanto Pound como Camões reconhecem que ambas as moças representam "outras coroas", as mesmas que levam, no papel de dançarinas, o "leve fruto da tua alma e da tua cegueira" à nossa "era moderna". O padrão se repete no definitivo canto 3 do painel despedaçado de Pound, em que o poeta, sentado nos degraus da mansão de Koré (o Palazzo del Leoni, em Veneza), também relembra o assassinato de Inês de Castro.

Para Camões, o destino de Inês de Castro —ser rainha após a morte— é uma miniatura da ressurreição de Portugal. Os versos antológicos deixam evidente a relação: "Assim como a bonina [pequena flor], que cortada/ Antes do tempo foi, cândida e bela, Sendo das mãos lascivas maltratadas/ Da menina que a trouxe na capela,/ O cheiro traz perdido e a cor murchada:/ Tal está, morta, a pálida donzela,/ Secas do rosto as rosas, e perdida/ A branca e viva cor, com a doce vida".

A donzela é a mesma, sem dúvida, e ela será desdobrada, no decorrer de "Os Lusíadas", no episódio da Ilha dos Amores; terá suas ressonâncias no aviso do Velho do Restelo; na profecia do Gigante Adamastor; e na releitura do martírio de São Tomé (numa evidente simetria com o de Inês de Castro).

Também joga sua sombra na revelação final —semelhante mais a um desejo—, com o surgimento da "máquina do mundo", que enfim resolveria os tormentos do pesadelo da história. Porém, o próprio poeta reconhece que isso tudo também se tornou impossível, ao perceber os limites da sua linguagem ("No mais, Musa, no mais, que a Lira tenho/ Destemperada e a voz enrouquecida,/ E não do canto, mas de ver que venho/ Cantar a gente surda e endurecida."). É então que ele apela para o supremo erro dos homens de letras: o da expectativa apocalíptica.

Camões e Pound foram carrascos (e vítimas) desta "vertigem das palavras". Trata-se de uma expectativa na qual o tempo em que vivemos é apenas um hiato, uma brecha entre um momento passado, o surgimento de Cristo como o Messias, e um momento futuro, quando Portugal (ou qualquer outro país) seria por definição o Reino Cristão que guiaria o resto da humanidade para uma época de mil anos, repleta de paz e prosperidade, até o dia do Juízo Final.

Os dois poetas tinham plena certeza de que, enquanto este tempo existir, somos como doentes, enfermos que não fazem sequer o possível para que o futuro tenha a sua plenitude. A enfermidade, para eles, é de amor.

O remédio só pode ocorrer por meio de um amor místico, aparentemente destacado da realidade das coisas passageiras, mas também capaz de impulsionar Camões e Pound a defenderem ações bem decisivas e diretas.

No caso do primeiro, a ação de aconselhar, no final de "Os Lusíadas", ninguém menos que dom Sebastião a partir para a batalha de Alcácer-Quibir, ocorrida em 1578, numa atitude desastrosa que o transformaria no "Encoberto", ao desaparecer sem deixar vestígios. E no segundo, defender o duce italiano Benito Mussolini. Para eles, ambos seriam os monarcas simbólicos que enfim retornariam e liderariam a Europa à "paz de Cristo".

Já no final da vida, na década de 1970, Ezra Pound é resgatado do Hades, que construiu para si mesmo, pela donzela Perséfone: "O que amas de verdade,/ o resto é escória/ O que amas de verdade não te será arrancado/ O que amas de verdade é tua herança verdadeira/ Mundo de quem, meu ou deles/ ou não é de ninguém? Veio o visível primeiro, depois o palpável/ Elísio, ainda que fosse nas câmaras do inferno,/ O que amas de verdade é tua herança verdadeira/ O que amas de verdade não te será arrancado" (tradução de Augusto de Campos).

A vertigem das palavras que contaminou Camões e Pound é o centro subterrâneo que anima até hoje a tensão entre civilização e civilidade. Nos nossos dias, por exemplo, até mesmo um pensador brasileiro perspicaz como Roberto Mangabeira Unger cai neste equívoco, ao defender, em seu tratado "A Religião do Futuro" (Leya), uma transcendência que seja uma "luta contra o mundo", na contramão de todas as revoluções que ocorreram na experiência religiosa da humanidade, o que implicaria uma mudança radical em "nossas relações com outras pessoas, não automática ou necessariamente, mas pelo esforço conjunto da imaginação e da vontade".

Contudo, a grandeza visionária de Camões —e é isso que falta aos seus intérpretes modernos— está no conhecimento de que a imaginação (ou a vontade do poeta) não é suficiente para retirar Perséfone do inferno e, assim, ressurgir a primavera de todo um país. É necessário buscar um outro mito, complementar ao da donzela do submundo, mas que também seja a ascensão além destas forças sombrias. Estamos falando, é claro, da história de Orfeu.

Este relato, também narrado em minúcias por Ovídio nas "Metamorfoses" (livro 10), fala do poeta-cantor que, apaixonado pela sua noiva, Eurídice, morta prematuramente, vai ao Hades para resgatá-la. Ele faz um acordo com ninguém menos que Perséfone —e esta aceita devolver Eurídice ao mundo dos vivos, desde que o poeta retornasse à superfície sem olhar para trás.

Infelizmente, o combinado não é cumprido, e Eurídice retorna ao inferno. Desolado, Orfeu canta sua tristeza para quem quiser ouvi-lo, até ser destroçado pelas Bacantes (seguidoras do deus Baco) em um rio e ter seu corpo espalhado pelo globo terrestre. Daí surgiu o conhecimento das artes, entre o da poesia, segundo alguns testemunhos.

Camões recria este drama ao seu modo em um dos seus poemas derradeiros, a célebre redondilha "Sôbolos Rios". É uma das sínteses mais perfeitas da arte ocidental.

Ela amarra o mito órfico com a trajetória do próprio poeta, fazendo a ponte entre o paganismo clássico, o Renascimento e o mundo judaico-cristão além de redimi-lo de sua desastrosa expectativa apocalíptica.

Há o exílio em Babilônia, a esperança de viver para sempre em Sião (Jerusalém), mas, no meio deste "desconcerto", há também a meditação sobre "aquele instrumento ledo/ [que] deixei da vida passada,/ dizendo: – Música amada,/ deixo-vos neste arvoredo,/ à memória consagrada.// Frauta minha que, tangendo,/ os montes fazíeis vir/ pera onde estáveis, correndo,/ e as águas, que iam descendo,/ tornavam logo a subir,[...]". Esses instrumentos (variantes da lira de Orfeu) são a própria obra de Camões, que aceitou outro impossível: o de que a perfeição da arte jamais reformará a precariedade da vida.

O que lhe resta é a lembrança de uma civilização que não existe mais, de uma Perséfone que nunca conseguirá se libertar do Hades. Neste ponto, a única alternativa é ser Orfeu, vitorioso no inferno, mas despedaçado no mundo dos vivos.

Como bem escreveu C.S. Lewis a respeito de outro épico gêmeo a "Os Lusíadas" —"Prefácio ao Paraíso Perdido", sobre a obra de John Milton, lançado agora no Brasil—, a arte deste tipo de poesia é "eminentemente civil". Não se trata de ser "civilizada", pois o poder e a luxúria vulgares "perverteram essa palavra além de qualquer redenção", justamente o ruído que há nos intérpretes modernos de Camões.

A arte do lusitano "é civil no sentido de que ela pressupõe naqueles que desejam fruí-la alguma disciplina em boas letras e boas ‘maneiras’. Ela demanda que nossas paixões meramente naturais já tenham sido organizadas nas ‘atitudes mentais’ preferidas por estados democráticos ordenados e magnânimos", recusando assim a "luta contra o mundo" defendida por Mangabeira Unger e outros.

Na verdade, o horror à civilização e à civilidade sempre esconde um outro mito que rivaliza com os de Perséfone e de Orfeu: o de Prometeu, responsável por roubar o fogo sagrado do Olimpo. Assim, o historiador Amin Maalouf acerta quando afirma, em seu elucidativo "O Labirinto dos Desgarrados", que vivemos em um "esgotamento do mundo", onde tudo perdeu o seu sentido perene.

E é por isso que precisamos, mais do que nunca, recuperar a experiência visionária de Camões. Será ele, na sua descida ao Hades, que nos ajudará a cometer outro ato impossível —o de sobrevivermos à nossa própria arrogância.


Luís Vaz de Camões

Nasceu em 1524, em dia e mês desconhecidos. Pouco se sabe também sobre sua vida. Teria recebido na juventude uma sólida formação nos moldes clássicos, dominando latim, literatura e história antigas. Segundo relatos, levou uma vida boêmia e turbulenta. Em razão de um amor frustrado,
autoexilou-se na África, alistado como militar, onde perdeu um olho em batalha. Depois partiu para o Oriente, onde enfrentou uma série de adversidades, foi preso várias vezes, combateu ao lado das forças portuguesas e iniciou sua obra mais conhecida, a epopeia "Os Lusíadas", publicada em 1572. Morreu em 10 de junho de 1580, pobre e isolado. Nas décadas seguintes, contudo, consolidou-se como o principal nome da literatura em língua portuguesa.

Algumas edições do poeta no Brasil

Obra Completa
Cerca de R$ 400; 1.032 páginas; ed. Nova Aguilar
Edição de luxo com biografia do escritor, bibliografia, notas interpretativas, análises e dicionário

Os Lusíadas
R$ 98,65;
696 páginas; ed. Nova Fronteira
Traz introdução e notas do poeta Alexei Bueno a respeito de mitologias, nuances históricas e linguísticas deste poema épico

Sonetos de Camões
R$ 48,90; 224 páginas; Ateliê Editorial
Coletânea da lírica camoniana comentada pelos professores Izeti Fragata Torralvo e Carlos Cortez Minchillo

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