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Ismail Xavier explica revolução do cinema novo 60 anos depois

"Deus e o Diabo na Terra do Sol", "Vidas Secas" e os "Fuzis" sacudiram as telas em 1964

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Claudio Leal

Jornalista e mestre em teoria e história do cinema pela USP

[RESUMO] Principal teórico em atividade no cinema brasileiro, Ismail Xavier comenta em entrevista o impacto mundial de três filmes que sacudiram os principais festivais europeus em 1964 e consolidaram a entrada do país na cena do cinema moderno: "Deus e o Diabo na Terra do Sol", de Glauber Rocha, "Vidas Secas", de Nelson Pereira dos Santos, e "Os Fuzis", de Ruy Guerra. Autor de estudos essenciais a respeito de nossa cinematografia, Xavier analisa também os conceitos estéticos e políticos que nortearam esses filmes e traça um paralelo entre o cinema novo e a produção contemporânea.

Há 60 anos, o cinema novo atingia sua maturidade e consolidava a entrada do Brasil na geografia do filme moderno. Em 1964, os longas "Vidas Secas" (finalizado no ano anterior), de Nelson Pereira dos Santos, "Deus e o Diabo na Terra do Sol", de Glauber Rocha, e "Os Fuzis", de Ruy Guerra, chegaram a festivais da Europa e aprofundaram a visão da crítica estrangeira sobre o cinema brasileiro, dois anos depois da vitória em Cannes de "O Pagador de Promessas", de Anselmo Duarte. O movimento cinemanovista representava o subdesenvolvimento com dissonâncias estéticas e inspirava diretores do chamado terceiro mundo.

No Brasil, a ditadura militar abalava as teses promissoras dos seus jovens diretores, ainda assim persistentes na missão de alinhar o pensamento do cinema às reformas sociais.

Cartaz de "Deus e o Diabo na Terra do Sol" (1964), produzido por Rogério Duarte
Cartaz de "Deus e o Diabo na Terra do Sol" (1964), criado pelo artista Rogério Duarte - Reprodução

Professor emérito da USP, o teórico Ismail Xavier cursava em 1964 o último ano do secundário no Colégio de Aplicação, em São Paulo. Dali a duas décadas, ele seria autor de ensaios centrais na revisão crítica do ciclo de vanguardas do cinema novo e do cinema marginal. Mestre em teoria literária e literatura comparada pela USP, onde também se doutorou, Xavier foi orientado pelos críticos Paulo Emílio Sales Gomes e Antonio Candido. Tornou-se ainda PhD pela Universidade de Nova York (EUA).

A obra de Xavier abrange, entre seus trabalhos centrais, "O Discurso Cinematográfico: A Opacidade e a Transparência" (1977), "Sertão Mar: Glauber Rocha e a Estética da Fome" (1983), "Alegorias do Subdesenvolvimento – Cinema Novo, Tropicalismo, Cinema Marginal" (1993) e "O Cinema Brasileiro Moderno" (2001), além da organização da antologia "A Experiência do Cinema" (1983), com textos de teóricos, críticos, filósofos e cineastas.

Nossa conversa partiu da releitura de seus textos para repassar a ascensão do cinema novo na Europa e América Latina e analisar a permanência de suas questões na produção contemporânea.

"Foi num festival na Itália que Glauber leu seu manifesto ‘Por uma Estética da Fome’ pela primeira vez. Aqui, ‘fome’ se refere à estética de um cinema realizado com forte carência de recursos. Não advém dos temas comuns aos três filmes voltados para a representação das precárias condições sociais e conflitos vividos pelos camponeses pobres do sertão do Nordeste ou mesmo do entorno de pequenas cidades, como acontece em ‘Os Fuzis’", diz o crítico, ao apontar as diferenças dos projetos de Nelson, Ruy e Glauber.

"Cada qual afirmou sua forma original de trabalhar dentro da ‘estética da fome’ no plano do estilo e com narrativas bastante distintas: Nelson com ‘Vidas Secas’, sua excelente adaptação do romance de Graciliano Ramos; Glauber com ‘Deus e o Diabo na Terra do Sol’; Ruy Guerra com ‘Os Fuzis’, no espaço do sertão."

Da posição de discípulos dos diretores europeus, acima de tudo dos neorrealistas, os realizadores do cinema novo se tornaram jovens mestres do cinema, com voz persuasiva em mostras e revistas estrangeiras.

"Aspectos do estilo de Glauber e do cinema novo foram partilhados com as invenções dos cineastas da nouvelle vague, em especial Jean-Luc Godard, que marcou o seu estilo pela ênfase dada ao uso da câmera na mão desde ‘Acossado’ (1960), seu primeiro longa-metragem. É nítida a presença da nouvelle vague, especialmente Godard, no desenvolvimento do cinema novo e da ‘estética da fome’. Não surpreende o interesse destes cineastas europeus pelo cinema novo como um movimento de grande importância e atualidade dentro do cinema moderno."

Uma breve meditação sobre o conceito de "cinema moderno" pode favorecer o percurso desta entrevista. Assim, peço a Ismail Xavier para explicitar os elementos técnicos, estéticos e narrativos definidores da modernidade nas telas. Em sua síntese, o crítico absorve o enquadramento do estilo moderno pelo francês André Bazin, que analisou longas de Orson Welles, Jean Renoir e neorrealistas italianos. Por sua vez, dentro das vanguardas dos anos 1960, os filmes de Alain Resnais, Antonioni e Godard nutriram as formulações do próprio Xavier.

"No cinema moderno, há maior liberdade de trabalhar com os movimentos de câmera na filmagem de uma cena acionando a chamada ‘câmera na mão’: o fotógrafo empunha a câmera e a movimenta com liberdade sem o uso do aparato técnico do cinema clássico industrial. A captação do som começou a se fazer com o uso de um gravador, o ‘Nagra’, que trabalha acoplado com a câmera, de modo a garantir a sincronia som-imagem, ambos captados neste momento: temos o chamado ‘som direto’, este próprio ao documentário agora utilizado na realização de filmes de ficção."

"Isto produz uma linguagem mais solta, menos convencional do que aquela sujeita às regras do estilo clássico na composição das cenas. E o mesmo ocorre com os efeitos da montagem, operação em que é feita a escolha, a ordenação e é decidida a duração de cada tomada de cena a partir do material obtido na filmagem."

O professor emérito da USP Ismail Xavier, um dos principais teóricos de cinema do país, em sua casa - Zanone Fraissat/Folhapress

Essas mudanças técnicas e estéticas beneficiaram cineastas brasileiros de diferentes vertentes, como Glauber Rocha, Carlos Diegues, Leon Hirszman, Joaquim Pedro de Andrade, Rogério Sganzerla, Julio Bressane e Andrea Tonacci. O choque do moderno fica mais evidente em contraste com as características predominantes no período clássico, reconhecíveis na indústria de Hollywood.

"O cinema clássico adota um princípio de continuidade, forma de garantir a clareza de sucessão e o ritmo na exibição das cenas. No cinema moderno, valem outros princípios ordenadores. As novas formas de captação de imagem-e-som e, em seguida, de montagem do material obtido têm criado uma nova percepção das ações dramáticas: há maior liberdade na forma de captar as cenas e na forma de trabalhar a montagem. Tais procedimentos de operação técnica se organizam de modo a produzir outro efeito junto ao espectador."

"O cinema clássico-industrial é o cinema da chamada ‘montagem invisível’, em que a experiência do espectador é de não ser chamado a perceber os procedimentos técnico-formais de produção do filme, sendo convidado a mergulhar dentro da tela para fruir as ações e os dramas das personagens, mergulhando no mundo ficcional. O moderno amplia o leque de procedimentos a adotar, incluindo construções técnico-formais que subvertem o princípio da montagem invisível. Um deles é a ‘câmera na mão’, já comentado. O outro é a montagem das ações de forma a tornar a passagem de um plano a outro se dar aos saltos, suprimindo uma pequena parte da ação em foco: em inglês, esta forma de montagem é chamada de ‘jump-cut’; em francês, ‘faux-raccord’ (falsa continuidade)."

Filmados antes do golpe militar de 1964, no sertão baiano, "Os Fuzis" e "Deus e o Diabo" aclimataram as conquistas do cinema moderno e responderam a um horizonte reconhecido então como pré-revolucionário por grupos políticos à esquerda e à direita. Xavier compara a representação do país nos filmes de Ruy e Glauber.

"Dentro dos aspectos estilísticos comuns à estética da fome e à dimensão política de focalização da pobreza dos camponeses do Nordeste, o enredo de ‘Os Fuzis’ se concentra mais na violência desencadeada pela polícia volante contra os pobres considerados uma ameaça numa pequena cidade do sertão. Seu desfecho é a morte de um chofer de caminhão —espécie de comentarista de tudo que se passa em volta—, que lá chegou trazendo mercadorias e se envolveu em briga com os soldados, sendo morto por eles ao final."

"O filme de Glauber trata das duas formas de rebeldia assumidas pelos camponeses pobres do sertão no início do século: o movimento religioso liderado pelo líder messiânico que afasta os seguidores do trabalho nas fazendas e gera a repressão (inspirado no caso da Guerra de Canudos); e a forte militância do cangaceiro Corisco sobrevivente do bando de Lampião. O cangaceiro era a versão brasileira do chamado ‘bandido social’ que marcou presença no campo em distintos países. O filme italiano de Francesco Rossi, ‘O Bandido Giuliano’ (1962), contemporâneo de ‘Deus e o Diabo na Terra do Sol’, é um bom exemplo desta vertente do cinema moderno. Nestes filmes, há este tom de quem faz do cinema um espaço de militância política."

"Ao conduzirem o seu projeto, estes cineastas trabalham o tema da pobreza dos sertanejos nordestinos assolados pela exploração e pela miséria como ação de um cinema político que demonstra a urgência de uma transformação social radical. Naquele momento político havia em setores da esquerda um senso de que tudo estava preparado para desencadear uma revolução. O cinema novo assumiu a sua militância neste clima. Podemos tomar o final de ‘Deus e o Diabo’ como um exemplo emblemático: o camponês Manoel dispara numa corrida depois de escapar da violência de Antônio das Mortes. A trilha sonora traz a música de Sérgio Ricardo cujo refrão é a profecia —‘o sertão vai virar mar, e o mar virar sertão’—, seguido de um recado sobre este mundo que anda errado: ‘a terra é do homem, não é de Deus nem do Diabo’."

Ismail Xavier discute um período do cinema brasileiro em que a consciência da nação e da história aflorava na cabeça de diretores do cinema novo e cinema marginal, do fim dos anos 1950 ao início dos 1970. No cenário atual, ele ressalta o enfraquecimento das polêmicas sobre a "questão da autoria" e admite uma redução das intervenções críticas dos cineastas como intelectuais públicos.

"Efetivamente, o debate em torno do cinema de autor não tem a mesma presença que tinha naquele momento em que este era uma força nova na realização de filmes, tendo seu momento polêmico de forte postura anti-industrial e, como era dito, ‘não concessões ao mercado’. Houve alterações no cinema, mesmo o mais industrializado, nesta questão do diretor do filme como autor com relativo poder de controle do processo. E no Brasil isto ocorre com maior força em função de que, mesmo com produtoras ditas ‘mais comerciais’, a base maior continua sendo o financiamento de entidades estatais. O modo de produção é mais híbrido e estamos num momento em que há muitas nuances no processo de formação de equipes."

No universo de filmes brasileiros contemporâneos, "O Som ao Redor" (2012), de Kleber Mendonça Filho, se vincula à tradição de filmes com reflexão histórica.

"Gostei muito de ‘O Som ao Redor’, de Kleber Mendonça, que trabalha a sobrevivência do passado no presente. Num bairro do Recife, mora um rico senhor dono de muitos apartamentos: seu Francisco. Ele controla com rigor todo o bairro; nada acontece sem a sua anuência. Postura típica de um senhor de Engenho. Para a ‘manutenção da ordem’, contrata jovens armados recém-chegados à cidade. Estes ‘jagunços urbanos’ vigiam as ruas a seu mando. Há o momento em que ele visita sua enorme propriedade lá no interior do estado, guardando as ruínas do seu engenho de açúcar. Temos, portanto, em plena cidade grande, relações de mando próprias ao passado colonial com proeminência típica da Casa Grande (agora o apartamento da cidade)."

"A trama do filme envolve sua morte como resultado de um projeto de vingança de dois destes vigilantes (cena final). Filhos de um camponês que foi um trabalhador nos arredores do Engenho, estes jovens visitam seu Francisco a pretexto de assunto do trabalho, mas quando já não são vistos por ninguém, avisam a ele a razão de terem vindo: nasceram na área agrícola na região do Engenho, área onde o pai deles trabalhava, tendo sido morto, há cerca de 20 anos, a mando do seu Francisco. ‘Tudo por causa de uma cerca’, explicam; e logo em seguida o matam —vingança . Típico filme afinado ao tema ‘o passado no presente’."

Em tempos recentes, o crítico estudou a figura do ressentimento no âmbito político e familiar, indo a filmes como "Ação entre Amigos" (1998), de Beto Brant, "Cronicamente Inviável" (2000), de Sérgio Bianchi, "Lavoura Arcaica" (2001), de Luiz Fernando Carvalho, e "Árido Movie" (2006), de Lírio Ferreira. Questiono se a ocorrência desse tema foi menos sistêmica no cinema nacional do que o do subdesenvolvimento nas décadas de 1960 e 1970.

"Foi menos sistêmica. Na verdade, é difícil determinar. São dois recortes temáticos que não se excluem, pois a questão do subdesenvolvimento tem um leque enorme de nuances geradoras de possíveis enredos nos quais ganhem destaque personagens ressentidos. Da mesma forma, personagens ressentidos são encontráveis na variedade de enredos com temas distintos e situados em diferentes momentos da vida social. Enfim, os dois temas podem conviver num mesmo filme", afirma o professor.

"Para mim, o aspecto a destacar é o fato de subdesenvolvimento ser algo que diz respeito a todo o país e estar ligado a tudo que tenha alcançado uma evidência muito forte em função de sua presença como noção chave no momento de fazer referência ao cinema novo e ao cinema marginal, definindo inclusive o tom de manifestos, ganhando maior visibilidade. O tema do ressentimento não encontrou ampla ressonância nos debates sobre os filmes brasileiros, a não ser naquele conjunto de adaptações de peças de Nelson Rodrigues, notadamente os filmes de Arnaldo Jabor."

"A partir de minha experiência de análise crítica destas adaptações, prestei mais atenção ao tema, o que permitiu observar sua presença em amplo leque de filmes mais recentes. De qualquer modo, a presença deste tema não repercutiu de forma a que se generalizasse uma busca desta questão no cinema brasileiro no cenário da crítica."

Cena do filme "Os Fuzis" (1964), de Ruy Guerra - Divulgação

Os cineastas em atividade mantêm uma distância estética e temática, não só histórica, do movimento que produziu as obras-primas "Vidas Secas", "Deus e o Diabo" e "Os Fuzis". Ismail Xavier explicita os pontos que chamariam sua atenção se fosse escrever um texto panorâmico sobre o cinema brasileiro do presente.

"Sua notável diversidade temática. Sua força e resistência num momento em que o cinema se insere num contexto desfavorável no plano da exibição. A menor ênfase na composição de movimentos estéticos que agreguem um número considerável de cineastas. A ampliação da variedade dos autores no plano de gênero: masculino, feminino, LGBT. A ampliação da presença da autoria numa ampla variedade de estilos e núcleos temáticos, de modo a tornar a expressão ‘um filme de...’ um senso comum que corresponde, dentro de minha referência, a um consenso dos comentaristas", avalia o crítico.


Ismail Xavier, 76

Vida
Nasceu em Curitiba, em 1947. Formado em comunicação pela USP, é mestre e doutor em teoria literária pela mesma universidade, e doutor em cinema pela New York University. É professor emérito da USP.

Principais livros
"O Discurso Cinematográfico: A Opacidade e a Transparência" (1977), "Sertão Mar: Glauber Rocha e a Estética da Fome" (1983), "Alegorias do Subdesenvolvimento – Cinema Novo, Tropicalismo, Cinema Marginal" (1993) e "O Cinema Brasileiro Moderno" (2001), "O Olhar e a Cena: Hollywood, Melodrama, Cinema Novo, Nelson Rodrigues" (2003).


"Deus e o Diabo" sai em blu-ray no Brasil e nos EUA

Principal filme do cinema brasileiro, "Deus e o Diabo na Terra do Sol", de Glauber Rocha, volta ao mercado de mídia física nos 60 anos de seu lançado. A cópia restaurada do filme exibida no Festival de Cannes em 2022, de alta definição, foi lançada em blu-ray no Brasil pela distribuidora Versátil (a partir de R$ 209,90). O disco contém mais de duas horas de extras —incluindo comentários em áudio com o ator Othon Bastos (que interpreta o cangaceiro Corisco no filme) e o diretor Walter Lima Jr., que foi assistente de Glauber no longa—, além de um livro de ensaios de 100 páginas. Em julho, o clássico de Glauber será lançado em blu-ray nos EUA pela Criterion Collection, o mais prestigiado selo de filmes de arte no mundo, também repleto de materiais extras. Com o título "Black God, White Devil" ("Deus Negro, Diabo Branco"), a versão americana reproduz na capa o icônico cartaz original do filme, concebido pelo artista Rogério Duarte

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