No ano da proclamação da Independência, o Brasil contabilizava aproximadamente 1,2 milhão de homens e mulheres escravizados em território nacional, um quarto da população brasileira, segundo um levantamento do Banco de Dados de Tráfico de Escravos Transatlântico, disponível no site Slave Voyages, plataforma que pode ser facilmente acessada.
A data, que se comemora hoje (7), lembra o rompimento entre Brasil e Portugal. Mas o que significa tudo isso para os brasileiros descendentes de povos arrancados do continente africano?
Existem pontos fundamentais dessa história que precisam ser tema de reflexão nos dias atuais.
O primeiro é o papel desempenhado pela oligarquia brasileira, sustentadora daquele evento, também conhecido como Grito do Ipiranga, oriunda ou ligada diretamente a proprietários de gente escravizada e/ou de terras.
O segundo, muito relevante, é o lugar dessa gente escravizada, desterrada desde a origem, e cujo papel foi —ao que parece, estrategicamente— subalternizado para que, não dividindo o protagonismo, permanecesse à margem de todo processo, mantendo-os como mão de obra brutalizada e "mercadoria".
No caso brasileiro, a escravidão, do ponto de vista econômico, foi moeda de troca valiosíssima, não só em relação ao sucesso da Independência, mas para manter o regime monárquico.
Por outro lado, "a onda negra", desde o final do século anterior, marchava a galope, e não só no Brasil.
Como exemplo temos o Haiti, que se revolta em 1791, quando negros liderados por Toussaint Louverture, um ex-escravizado, toma uma das mais ricas colônias francesas, grande produtora de cana-de-açúcar. A vitoriosa Revolução Haitiana libera um "alerta" para as nações escravistas, como a nossa.
Por aqui, a guerra de negros só aumenta, desde antes da Independência. Portanto, a nação "independente" já nasce sobressaltada com o fantasma haitiano tupiniquim: além de incendiar canaviais e fazendas, era previsível que cabeças rolassem de pescoços de nobres e barões.
Essa ideia de poder, a partir de um "partido negro", só assusta. Na memória, os levantes no Recôncavo Baiano, no final do século 18, a Revolução Pernambucana, de 1817, e suas culminâncias: a Revolta dos Malês, na Bahia, de 1835, e —por que não arrolar?— a de Manuel Congo e Mariana Crioula, de 1838, em Paty do Alferes (no interior do estado do Rio de Janeiro), entre outras, maiores e menores.
Em linhas gerais, temia-se tudo: o perigo de dar cidadania a negros, por meio da Carta Constitucional de 1824, e de outro, dos próprios negros, cuja insatisfação era cada vez mais crescente e ameaçadora.
O bicentenário da Independência do Brasil, todavia, festejado com toda pompa e circunstância (e coração real), precisa passar por uma séria revisão histórica, a começar por fazer uma mea-culpa, dadas as condições de desigualdade social dos afrodescendentes, representados por 54% da população.
Não só pela frustração do pós-abolição. É que os nossos heróis e símbolos nacionais precisam, de fato, ser outros, a começar pelo quilombola Zumbi dos Palmares.
Com isso, fica evidente que a ideia de comemorar a tal Independência não se coaduna com a ideia de liberdade de homens e mulheres, negros e negras —de hoje e de ontem.
O que leva a esse raciocínio se impõe pela lógica de que a manutenção do regime escravista no fragor da luta pela libertação do país, no passado, e a condição geral de desigualdade vivida pelos afro-brasileiros, aqui e agora, é resultado direto de uma visão colonialista, forjada pela violência, o revezamento de poder e a manutenção de privilégios.
Até quando esta nação vai continuar a fazer ouvidos moucos e glorificar uma data que, na verdade, não representa nossa gente?
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