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20/11/2012 - 16h38

Quando Ian Fleming tentou fugir de James Bond

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RICHARD WILLIAMS
DO "GUARDIAN"

Vivienne Michel talvez seja a menos conhecida das mulheres que Ian Fleming escalou para miss�es ao lado de James Bond, mas nenhuma das suas irm�s mais celebradas --de Vesper Lynd � condessa Teresa di Vicenzo, passando por Tatiana Romanova e Pussy Galore-- conseguiu despertar tamanha aten��o do autor. S� a ela foi conferida a honra de ter um livro de Bond escrito inteiramente na sua voz, com 007 aparecendo tardiamente, como coadjuvante. E embora, ao contr�rio de algumas das outras, ela tenha sobrevivido para contar a hist�ria, estava fadada a sofrer um tipo diferente de morte liter�ria.

Poucos romancistas na posi��o de Fleming, galopando no voraz apetite do p�blico pelas aventuras de um her�i ficcional, optariam pelo tipo de risco que ele assumiu em 1962 com "The Spy Who Loved Me" [lan�ado no Brasil como "Espi�o e Amante"]. Na �poca em que ele escreveu o nono livro do seu personagem Bond, a popularidade da sua cria��o, ent�o j� enorme, estava prestes a ser transformada em um fen�meno cultural pelo lan�amento do filme "007 Contra o Sat�nico Dr. No", em 1962.

Divulga��o
James Bond no filme rec�m-lan�ado "007 - Opera��o Skyfall", vivido pelo ator Daniel Craig
James Bond no filme rec�m-lan�ado "007 - Opera��o Skyfall", vivido pelo ator Daniel Craig

Sua sa�de, no entanto, come�ava a declinar, junto com seu interesse em manter a f�rmula estabelecida com a publica��o de "Cassino Royale", a estreia de Bond, nove anos antes. Sua resposta a um impulso interior pela novidade, e talvez ao desejo de um tipo mais elevado de aclama��o, foi empregar uma voz completamente diferente e retardar a apari��o do seu celebrado protagonista at� depois de metade da hist�ria.

Embora em "Moscou Contra 007", cinco anos antes, ele j� tivesse preenchido as 77 p�ginas iniciais com Rosa Klebb, Donovan Grant e Tatiana Romanova antes de colocar Bond em cena, nunca houve qualquer d�vida sobre a identidade do personagem central, e o dispositivo foi um sucesso. No caso de "Espi�o e Amante", por�m, a demora n�o era respondida com gratifica��o, e a aposta de Fleming terminou deixando a cr�tica e os leitores de Fleming se sentindo tra�dos pela repentina mudan�a de rumo e tom.

"Sua capacidade de inventar uma trama lhe fugiu quase inteiramente", refunfou o cr�tico do "Glasgow Herald", "e ele precisou substituir uma hist�ria acelerada pelas lament�veis desventuras de uma vadia de classe alta, contadas em tristes detalhes". Arrependido, Fleming escreveu a Michael Howard, seu editor na Jonathan Cape, para insistir que os planos para uma edi��o em brochura fossem abandonados; autores e editores atuais talvez se surpreendam ao saber que seu desejo foi honrado, pelo menos at� sua morte, dois anos depois.

Sabiamente, a atual edi��o em capa mole omite o envergonhado pr�logo escrito por Fleming para a publica��o original, uma nota ao leitor na qual ele afirma que o manuscrito de "Espi�o e Amante" havia simplesmente se materializado um dia sobre sua mesa, junto com um bilhete de uma certa "Vivienne Michel", assumindo a autoria dessa narrativa que ela dizia ser um incidente real.

"Fiquei interessado nesta vis�o de James Bond, embora pelo lado errado do telesc�pio, por assim dizer", escreveu Fleming, "e, depois de obter a libera��o por causa de certas pequenas infra��es � Lei de Segredos Oficiais, tenho muito prazer em patrocinar sua publica��o".

A narradora dele relembra sua inf�ncia no Canad�, sua educa��o e o come�o da vida profissional na Inglaterra, e sua decis�o, aos 23 anos, de voltar � Am�rica do Norte e embarcar em uma viagem rodovi�ria do Qu�bec � Fl�rida. Nos montes Adirondacks, com pouco dinheiro, ela aceita uma oferta de US$ 60 para passar uma noite cuidando de um hotel vazio de beira de estrada, prestes a ser fechado para o inverno.

Dois bandidos chegam de Nova York (direto da Central de Tipos: seus nomes s�o Sluggsy ["lesmento"] e Horror), aparentemente trabalhando para o propriet�rio. Eles estavam prestes a violent�-la, preparando-se para causar um inc�ndio que permitisse a posterior cobran�a de seguro, deixando o cad�ver dela para levar a culpa. � ent�o que Bond aparece no meio da noite tempestuosa, depois de ter um pneu furado vindo de Nassau (e da conclus�o da Opera��o Thunderball) a caminho de Toronto, onde estava encarregado de proteger um desertor russo.

SADISMO

A partir da�, Fleming nos proporciona a habitual confus�o na qual Bond d� uma li��o nos salafr�rios antes de dormir com a garota, numa cena que leva o autor a usar sua narradora para expressar uma opini�o pela qual ele � rotunda e regularmente condenado: "Todas as mulheres amam um semiestupro. Elas adoram serem pegas. Foi a doce brutalidade dele contra o meu corpo arranhado que havia tornado seu ato de amor t�o penetrantemente maravilhoso".

Fleming, um f� confirmado do sadismo no seu pr�prio relacionamento, certamente queria dizer isso mesmo. Em "Cassino Royale", ele fez Bond refletir em termos semelhantes sobre a perspectiva de sexo com Vesper Lynd: "E agora ele sabia que [...] a conquista do corpo dela, por causa da privacidade central dela, teria o travo doce do estupro". O que torna um pouco menos do que surpreendente o fato de o trecho mais interessante e convincente do livro, e o que d� mais peso ao argumento de que Fleming realmente sabia escrever, ser aquele em que Vivienne Michel se apresenta e descreve as circunst�ncias da sua vida at� o ponto em que ela � perturbada por Sluggsy e Horror.

Como Jay McInerney, que sucedeu ao sucesso e badala��o de "Brilho da Noite, Cidade Grande" com o mal recebido "A Hist�ria da Minha Vida", em meados da d�cada de 1980, escrito na voz de uma baladeira nova-iorquina de 20 anos, Fleming tenta localizar o vocabul�rio e as f�rmulas que sua narradora usaria na escrita de um di�rio ou falando a um gravador: algo bastante diferente da sua prosa habitual. Mas, enquanto McInerney produzia o fluxo de consci�ncia exaltado (ou degradado) de uma cheiradora, Fleming convoca a voz de uma jovem inteligente e de classe m�dia da d�cada de 1950.

Claramente se valendo amplamente das experi�ncias de conhecidas da sua ativa vida privada e da sua posi��o profissional como o bem relacionado editor de internacional do "Sunday Times", ele permite que Michel conte a hist�ria � sua maneira, com direito ao ocasional ponto de exclama��o t�pico das meninas.

�rf� desde cedo, ela � criada por uma tia que a envia, aos 16, para a Inglaterra, a fim de ser "terminada" num tipo de estabelecimento da Grande Londres --ainda achado na d�cada de 1960, mas hoje supostamente extinto-- onde o arranjo de flores e a culin�ria "Cordon Bleu" lideravam o curr�culo. Para sua temporada de debutante ela se muda para Londres, divide um apartamento perto da Kings Road e vai parar na cena do Chelsea. Logo ela est� perdendo sua virgindade de forma bastante tumultuada com um aluno de Oxford chamado Derek; h� uma cena vividamente evocada, aparentemente tirada da lembran�a de Fleming da sua pr�pria deflora��o, em que o casal � apanhado em flagrante por um gerente de cinema empunhando uma lanterna.

Descartada por Derek, ela arruma emprego em um jornal local e, tendo aprendido a localizar e vender uma hist�ria, se inspira num elenco de figuras da vida real na Fleet Street [rua londrina da imprensa]: "Meus deuses, ou melhor, deusas (Katharine Whitehorn e Penelope Gilliatt estavam fora da minha �rbita), foram Drusilla Beyfus, Veronica Papworth, Jean Campbell, Shirley Lord, Barbara Griggs e Anne Sharpley." Ela entra para a equipe em Londres de uma ag�ncia de not�cias estrangeira dirigida por um alem�o, que a engravida e a manda a Zurique para abortar, enquanto lhe d� um m�s de sal�rio no lugar do aviso pr�vio. Sua sensa��o de perplexidade e humilha��o durante essas v�rias prova��es � tra�ada com surpreendente empatia, refletindo acuradamente os humores e os costumes prevalecentes nos tempos pr�-feministas.

Fleming tinha passado um pouco dos 50 anos e sua sa�de j� causava preocupa��o quando ele escreveu "Espi�o e Amante", durante sua habitual temporada anual na Goldeneye, sua casa na costa norte da Jamaica. Naquele Natal, ele j� n�o tinha mais condi��es de esquiar nas f�rias familiares em St. Moritz. Sua rela��o com sua esposa, Ann, a ex-Lady Rothermere, estava em dificuldades, provocadas em parte pelas escancaradas infidelidades deles, mas tamb�m pela tend�ncia do c�rculo de amigos literatos de Ann, que inclu�a Evelyn Waugh, de olhar de cima para baixo para um mero escritor de "thrillers" de espionagem, desd�m esse que foi quase certamente exacerbado por seu sucesso comercial.

MANUSCRITO

Houve uma preocupa��o adicional quando "Chantagem At�mica", em que ele resistiu a um forte impulso para matar Bond de uma vez por todas, foi publicado, em mar�o de 1961, apesar da prolongada e tenaz tentativa feita por Kevin McClory, produtor irland�s de cinema com quem ele havia inicialmente trabalhado no enredo, para obter uma liminar que proibisse o livro.

Duas semanas antes do lan�amento, Fleming sofreu um ataque coronariano durante uma reuni�o editorial do "Sunday Times", e passou um m�s na London Clinic. Durante sua convalescen�a, um acordo com a Eon Films foi conclu�do, dando-lhe US$ 100 mil por filme e 5% de participa��o nos lucros dos produtores, come�ando com "007 Contra o Sat�nico Dr. No". A� ele viajou para a Goldeneye, onde, ignorando as rigorosas instru��es do seu m�dico para reduzir o consumo de �lcool e cigarros, se p�s a trabalhar em "Espi�o e Amante".

O manuscrito foi revisto, e as sequ�ncias ambientadas nos EUA foram conferidas por um bibliotec�rio americano que lhe escrevera em meados de 1961 para apontar erros nos cap�tulos transatl�nticos de "Chantagem At�mica". A capa, no habitual estilo "trompe l'il" das edi��es de capa dura de Bond, foi preparada pelo artista Richard Chopping, cujo cach� de 250 guin�us estourou o or�amento da Cape, de 25 guin�us, sendo coberto pelo pr�prio autor. Enquanto isso, "Chantagem At�mica" se revelava um enorme sucesso, fortemente impulsionado nos EUA por uma reportagem da revista "Life" em que o jovem presidente John F. Kennedy citava o criador de James Bond entre seus autores favoritos.

Talvez Fleming esperasse usar "Espi�o e Amante" para demonstrar que era capaz de ampliar seu espectro liter�rio. Apesar de toda a falta de arte na voz de Vivienne Michel, ele preservou sua capacidade de inundar a hist�ria com interessantes detalhes incidentais, matizados com seu habitual esc�rnio divertido pelos h�bitos americanos. Aqui ele pega leve nos nomes das marcas t�o amadas por Bond, com a men��o � Vespa Gran Sport 150 cc de Michel e �s suas sand�lias Ferragamo entre as relativamente poucas exce��es.

Mais importante, esse autor t�o facilmente e frequentemente parodiado tamb�m exibe seu apre�o, raramente notado, pela cad�ncia das frases e par�grafos, algo que surge em todos os seus livros em meio a passagens de mec�nicos ru�dos met�licos, e que consistentemente escapou ao ex�rcito de romancistas, incluindo Kingsley Amis, Sebastian Faulks e, mais recentemente, Jeffery Deaver, que tentaram escrever aqueles que s�o conhecidos como volumes de "continua��o".

"Eu estava fugindo", inicia a narrativa de Michel. "Estava fugindo da Inglaterra, da minha inf�ncia, do inverno, de uma sequ�ncia de relacionamentos amorosos desarrumados e desinteressantes, dos poucos m�veis e da bagun�a de roupas excessivamente usadas que minha vida em Londres havia acumulado ao meu redor; e eu estava fugindo do t�dio, do fedor, do esnobismo, da claustrofobia dos horizontes fechados e da minha incapacidade, embora eu fosse uma ratazana bastante atraente, de avan�ar na corrida de ratos. Na verdade, eu estava fugindo de quase tudo, menos da lei."

N�o �, pela linguagem de qualquer um, uma m� abertura, e h� mais, inclusive uma divertida digress�o algumas p�ginas depois acerca da veemente ojeriza da narradora por pinheirais: ojeriza que era certamente tamb�m de Fleming, j� que os livros de Bond crescem a partir dos preconceitos e descobertas dele pr�prio. Este � o Fleming capaz de frases que poderiam se instalar na lembran�a pela vida inteira, como sua descri��o da plataforma da esta��o Sirkeci, em Istambul, na hora em que Bond se prepara para embarcar no Expresso do Oriente, em "Moscou Contra 007", "palpitando com a tr�gica poesia da partida".

O longo desenrolar de "Espi�o e Amante" � desajeitado e cheio de clich�s, como que dizendo que a hist�ria pregressa de Michel havia esgotado o interesse de Fleming. Mas o livro continua sendo uma curiosidade digna de ler, cuja m� recep��o deve ter causado dor ao autor. O fracasso tamb�m o obrigou a voltar a um modo mais familiar. Um ano depois, Bond estava presente na primeir�ssima p�gina de "007 a Servi�o Secreto de Sua Majestade", em uma das mais eficazes sequ�ncias de abertura de Fleming, ambientada na praia de Royale-les-Eaux, o inventado balne�rio da Picardia onde os leitores se encontraram com ele pela primeira vez, em "Cassino Royale". A experi�ncia tinha acabado. E quando, 15 anos depois, foram filmar "007 - O Espi�o Que Me Amava", a �nica coisa mantida foi o t�tulo original.

Tradu��o de RODRIGO LEITE.

 

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