Na Feira do Livro, Brasil e Argentina se encontram em trauma que ecoa boate Kiss

Camila Fabbri participa de mesa sobre 'O Dia em que Apagaram a Luz', e Lilia Guerra fala sobre 'O Céu para os Bastardos'

São Paulo

Neste sábado (6), a Feira do Livro virou um enclave literário na metrópole. Ao fundo da praça Charles Miller, no estádio, as obras estavam a todo vapor e o alarme de caminhões dando ré e máquinas operando se misturava às palestras. Na entrada, uma feira —essa, de frutas e legumes— dificultava o fluxo de carros. Pastel e caldo de cana viram uma opção para o almoço, porém.

O palco da praça, principal do evento, recebeu a escritora e cineasta argentina Camila Fabbri para falar do livro "O Dia em que Apagaram a Luz", lançado pela editora Nós, sobre uma tragédia parecida com a da boate Kiss que aconteceu em Buenos Aires em 2004.

Danilo Verpa/Folhapress
A autora argentina Camila Fabbri participa da Feira do Livro

Do outro lado da fronteira, em 30 de dezembro de 2004, a banda Callejeros se apresentava numa famosa casa de show em Buenos Aires chamada República Cromañón.

Por volta das 23h, um incêndio começou e, aos moldes da boate Kiss, se tornou um desastre ao se espalhar rapidamente e fazer muitas vítimas, uma vez que elas não conseguiam deixar o local tão rapidamente devido a portas de emergência trancadas.

Fabbri havia visto um outro show da mesma banda na noite anterior, no dia 29. A tragédia, também chamada de massacre, atravessou essa geração de jovens argentinos e mudou a história de Buenos Aires, que passou por um processo de revisão da legislação e expurgo das suas casas noturnas.

Quinze anos e crises de pânico depois da tragédia, Fabbri começou um trabalho quase jornalístico de apuração para escrever seu livro, que é um romance, ela ressalta, não uma reportagem. A autora começou a entrar em contato com pessoas que estavam na casa noturna no dia para "tomar café com medialunas", café com bolo dos hermanos, e ouvir suas histórias.

"Eu não queria escrever ficção sobre o tema, parecia desrespeitoso", diz Fabbri.

Ela foi ouvida em pleno espanhol nos alto-falantes por praticamente toda a plateia. Isso porque a feira mudou sua política de transmitir a tradução do espanhol e agora reserva isso aos fones de ouvido. Quase ninguém recorreu ao recurso nesta primeira mesa.

O Cromañón, lembra a mediadora e repórter da Folha Anna Virginia Balloussier, se tornou uma espécie de 11 de Setembro, em que todos sabiam o que estavam fazendo quando receberam a notícia do acontecimento.

Ela diz que não se vê escrevendo um livro sobre os anos Javier Milei, presidente de extrema direita eleito na Argentina em dezembro passado. "Há um desânimo tão grande, todos falando as mesmas coisas, é como com a Covid."

Mas ela acredita que o presidente argentino vai impulsionar a boa literatura em seu país, com autores usando sua hostilidade e aos cortes de orçamento na área da cultura como combustível para a escrita.

Mais tarde, a mesma tenda recebeu, cheia, a autora paulistana Lilia Guerra, nome por trás do título "O Céu para os Bastardos", lançado pela editora Todavia.

Guerra, que vive em Cidade Tiradentes, no extremo da zona leste de São Paulo desde 1986, disse ter feito as pazes com seu desejo de deixar o bairro periférico. Ela se divide entre a escrita e o trabalho como auxiliar de enfermagem, que adora —"viva o SUS", diz, entre sorrisos.

A autora reconhece que seus vizinhos talvez não sejam seus leitores. Como poderiam, com a rotina de sair de casa às 4h da manhã e voltas às 23h? Mas ela diz querer pavimentar caminho para que se tornem futuros leitores, mesmo que não dos seus livros.

"Não dá para trazer a Cidade Tiradentes para o lado da catedral da Sé", afirma. Mas algumas coisas ali dá para resolver, diz Guerra. Essas coisas, para ela, são da ordem prática do cotidiano, como a aguardada chegada do monotrilho, mas também cultural, como a instalação de equipamentos culturais no bairro.

Ela diz que se emocionou ao cadastrar a mãe na biblioteca que abriu no bairro, um complemento às iniciativas comunitárias que já existiam por ali.

Todo mundo queria mudar da Cidade Tiradentes. Inclusive Guerra. Ela se lembra que costumava passar no bairro um carro de som que fazia propaganda dos mercadinhos, das padarias. Ao final, ele dizia: não mude da Cidade Tiradentes, ajude a mudá-la. Guerra diz que aquilo a fazia sentir raiva. Hoje, não mais —e ela aguarda ansiosamente a chegada do monotrilho. O público aguarda ansiosamente pelos seus próximos lançamentos. A Todavia diz que "Perifobia", livro de contos publicado pela Patuá em 2018, deve ser relançado no ano que vem.

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