Não é de hoje que existe uma disputa acirrada entre historiadores acadêmicos e escritores de obras de história para o público geral.
No meio universitário, os acadêmicos profissionais se veem obrigados a se superespecializar em áreas de estudo progressivamente menores. Do outro lado, o mercado editorial e o público leitor não querem ler "Uma História das Relações Trabalhistas na Indústria Têxtil de Campos dos Goytacazes, 1910-1915", e sim macro-narrativas globais e totalizantes. Por exemplo, "Sapiens", de Yuval Noah Harari, "Armas, Germes e Aço", de Jared Diamond, e este "Uma História da Imaginação", de Felipe Fernández-Armesto.
O principal foco da discórdia é que um livro de história de tema amplo é maior do que a possibilidade de especialização de qualquer pessoa e, por isso, precisa ser escrito sobre os ombros de muitos especialistas.
Quando faz sucesso, esses experts muitas vezes se sentem sub-apreciados, invisibilizados e até mesmo mal-interpretados, quando os popularizadores precisam resumir em poucas frases de efeito contundentes o conteúdo nuançado de toda uma obra. No Brasil, o fato de nossos autores mais vendáveis desse gênero serem jornalistas, como Pedro Doria, Laurentino Gomes e Eduardo Bueno, só faz acirrar o corporativismo dos historiadores.
Esse não é o problema de Fernández-Armesto, que, apesar do nome hispânico, é um historiador britânico autor de vários livros sobre as Grandes Navegações. Fugindo da tendência popularizada por Harari e Diamond —que narram a aventura humana no contexto de fatores naturais— Fernández-Armesto escreve uma história das ideias à moda antiga: "as ideias moldam o mundo", diz ele.
Nos primeiros dois capítulos, não por acaso os melhores, existe uma tentativa de explorar a origem biológica das ideias e de dar uma análise mais aprofundada às ideias pré-históricas. Mas já os títulos dos dois capítulos seguintes indicam que estamos repisando um caminho muito bem trilhado: "O Pensamento Civilizado" e "Os Grandes Sábios".
Há uma intenção de não falar apenas das ideias ocidentais, citando aqui e ali a China, mas são tentativas tão esporádicas que só ressaltam o viés da obra. O Brasil não é nem mesmo citado. Uma leitora desavisada dessa "história da imaginação" poderia bem imaginar que essa é uma capacidade basicamente ocidental.
Fernández-Armesto se esforça para parecer neutro: faz pouco dos excessos do pensamento direitista, especialmente quando resvala no racismo ou no autoritarismo, mas tripudia sem dó de todas as ideias de esquerda, como o existencialismo —uma "doutrina fracassada" que justificou "todas as formas de descomedimento pessoal"— e o anarquismo —promotor de "violência por meio de células terroristas" e "extermínio de policiais".
O catolicismo é a única ideologia que esse conservador católico retrata com indisfarçável simpatia: "o ressurgimento político da Igreja resultou de eleitores democráticos buscarem uma ‘terceira via’ —nem um comunismo desacreditado nem um capitalismo insensível— e encontrá-la na tradição social católica".
No último mês de agosto, no site Catholic Herald, ele lamentou "a falta de catolicismo nas universidades católicas", inclusive o fato de sua instituição, Notre-Dame, ter achado necessário "esconder um mural" que "celebrava Cristóvão Colombo e a chegada do cristianismo nas Américas".
Não existe nada parecido em "Uma História da Imaginação", um crédito ao bom senso do autor, mas essa é a ideologia que informa sua escrita. Leitoras de centro e de direita lerão o livro com prazer e proveito, talvez sem nunca perceber a ideologia por trás do "bom-senso" do Fernández-Armesto.
Já quem procura uma interpretação da história do mundo a partir da esquerda estará melhor servida lendo David Graeber, especialmente "Dívida: Os Primeiros 5 Mil Anos", recém-republicado depois de anos fora de catálogo, e "O Despertar de Tudo: Uma Nova História da Humanidade", de Graeber com David Wengrow.
Comentários
Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.